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PROJETO GENOMA, REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E TRABALHO

3.3 Análise do processo de trabalho no PGHC/Fapesp

O caso da organização do trabalho no Projeto Genoma Humano do Câncer de São Paulo (PGHC) é ilustrativo desse tipo de situação. Não é possível entrar aqui em detalhes, mas vale fazer uma breve referência. O PGHC vem de um acordo, firmado em 26 de março de 1999, entre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o Instituto Ludwig de Pes- quisa sobre o Câncer, instituição internacional sem fins lucrativos, que previa, inicialmente, um investimento de US$ 10 bilhões em dois anos, com o objetivo de gerar entre 500 e 750 mil sequências de genes a partir de material retirado de tumores de maior incidên- cia no país (cabeça e pescoço, gástricos, mama e colo do útero), utilizando um novo método de sequenciamento desenvolvido no Brasil por Andrew Simpson, coordenador do projeto, e Emanuel Dias Neto — o Open Reading Frames ESTs, conhecido pela sigla Orestes —, que uti- liza uma estratégia, para obter resultados mais rápidos, partindo do centro do gene, onde se encontram as informações mais relevantes34. Menos de um ano e meio após a assinatura, em

julho de 2000, o projeto passava por uma ampliação, em função do sucesso obtido, incluindo outros tipos de tumores e chegando ao montante total de US$ 20 milhões. No ano seguinte, no mês de março, o projeto se encerra, tendo produzido mais de um milhão de sequências, caracterizando um caso de sucesso indiscutível em nível internacional.

A vantagem brasileira, segundo os coordenadores do projeto, residiria, fundamen- talmente, na competência em relação à bioinformática, portanto, na articulação entre TICs e Biotecs e na capacidade de coordenação. O projeto estava estruturado pela rede Organização para Sequenciamento de Nucleotídeos (Onsa), ligando via internet o Hos- pital do Câncer, onde se situa a sede local do Instituto Ludwig, e os cinco centros de

em “capital intelectual”, mas jamais, como seria mais correto, em “trabalho intelectual”. Essa forma renovada de mascaramento, como sempre recuperada pelo discurso hegemônico, mas presente na própria materialidade das relações sociais, tem impedido, ao lado de outros fatores, o desenvolvimento das condições subjetivas que pode- riam levar à superação do atual sistema de dominação do capital. Nessas condições, e dado que as contradições inerentes à Economia do Conhecimento, que acabamos de ver, não deixam de se manifestar, o que se observa é uma espiral regressiva, de exclusão social e violência crescentes, o que faz parecer que o sistema está vivendo um fenômeno semelhante a um big crunch. A ideia de uma “guerra civil global”, reforçada pelas atitudes imperialistas dos EUA, após os atentados de 11 de setembro de 2001, que coincidem com o início de uma consistente tendên- cia recessiva naquele país, a qual representa uma nova fase da longa crise do capitalismo iniciada nos anos 70, faz parte desse movimento, que infelizmente não podemos analisar nos limites deste trabalho.

sequenciamento das três universidades estaduais de São Paulo, localizados em São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto, cada um com quatro laboratórios interligados, e mais cinco laboratórios autônomos, diretamente vinculados à coordenação geral do projeto, espa- lhados pelo interior (São José do Rio Preto, Botucatu, São José dos Campos e Araraquara). Cada centro de sequenciamento foi dotado de uma máquina Mega Bace 1000, da Merchant Pharmacie, que substituía as velhas ABI 377, da Applied Biosys- tems. A superioridade da primeira reside na utilização de capilares, adquiridos do próprio fabricante da máquina (assim como o polímero utilizado), ao invés do gel, produzido no próprio laboratório, como se fazia anteriormente. Apesar da maior dependência em relação ao fornecedor, a produtividade da Mega Bace compensaria o investimento. Os técnicos são unânimes em considerar, no entanto, as suas limitações quando comparadas com o modelo 3700, da Applied Biosystems, ainda não disponível no mercado, segundo nos informaram, quando da aquisição do equipamento pela coor- denação do projeto.

Os centros de sequenciamento recebiam o cDNA produzido pela coordenadoria de bibliotecas, no Instituto Ludwig, e distribuíam para os laboratórios associados (um deles no próprio centro), que preparavam os clones e os devolviam aos centros onde se rea- lizava o sequenciamento35. Estes remetiam as sequências à coordenação de bioinformá-

tica que, após crítica, as inseria no banco de dados do projeto e no banco internacional público, GenBank.

Constituíram-se, assim, pelo menos dois bancos de dados (se deixarmos de lado aque- les produzidos nos próprios centros, como ocorre, por exemplo, com o do Instituto de Química da USP, que possui um setor de bioinformática importante) e dois bancos físi- cos, contendo os clones arquivados, um no Instituto Ludwig, ligado à Coordenação de RNA, e outro, duplicado, por acordo entre as partes, no Instituto de Química da USP36.

Os passos do processo de trabalho coincidem basicamente com os do processo bio- químico. A divisão de trabalho coincidirá também com as etapas deste último. Assim, a

35 Os laboratórios independentes ligados diretamente à coordenação geral, acabaram funcionando como pequenos centros de sequenciamento, dotados de máquinas ABI 377, em parte ao menos devido à distância geográfica em relação aos centros.

36 Em princípio, esses dois bancos físicos deveriam ter a mesma quantidade de clones, mas, até o momento, o segundo deles só dispõe de cerca de 70% do total arquivado no primeiro.

extração do mRNA será realizada, no caso do PGHC, no laboratório onde se localiza a Coordenação de RNA, a produção do cDNA, naquele da Coordenação de Bibliotecas, a dos clones, nos 25 laboratórios vinculados aos 5 centros de sequenciamento e nos 5 laborató- rios autônomos, diretamente ligados à coordenação central, enquanto que o sequencia- mento propriamente dito será feito nos centros e nos laboratórios autônomos, seguindo o fluxo de trabalho geral.

Não se verificou, por outro lado, uma divisão de trabalho marcante no interior de cada uma dessas etapas. Em certos casos, como na extração do mRNA, um único técnico realizou, durante um determinado período, todo o trabalho. No momento em que passou a trabalhar com outro colega, a rotina tampouco se alterou fundamentalmente. Há, isso sim, uma proporcionalidade que deve ser mantida entre a produção dos clones pelos laboratórios associados e o sequenciamento nos centros, para que as máquinas possam funcionar de forma mais econômica. Nesse caso, notaram-se diferenças de produtividade (em termos de quantidade de clones produzidos) entre os diferentes laboratórios, não sabemos ainda se por determinações de ordem quantitativa ou qualitativa.

Em todo caso, o que se observa, é um processo de trabalho de tipo essencialmente manufatureiro, em que as habilidades dos técnicos (de nível superior, aparentemente sem outra especialização anterior ao projeto) parecem ter importância significativa. Na ver- dade, cada laboratório particular é responsável por um processo de trabalho autônomo. A articulação entre eles se dará pela via da organização geral dos fluxos de material e informação e pela presença da máquina de sequenciamento que, se não chega a deter- minar o ritmo do trabalho de cada indivíduo, define um ritmo global do projeto que, não obstante, segue sendo determinado pela produtividade de cada um dos laboratórios. A proporcionalidade se verifica também, evidentemente, entre o trabalho dos centros e o dos laboratórios de extração do mRNA e de produção do cDNA.

Esse é o nível máximo de automatização a que se chegou durante o perí- odo de execução do projeto37. Posteriormente, a tendência entre os laborató-

37 A discussão no momento do chamado pós-genoma, sobre as dificuldades para a automatização da técnica da eletroforese bidimensional que, comparada com os métodos de sequenciamento do genoma, depende cru- cialmente das capacidades de pesquisadores altamente experientes e habilidosos, limitando a economia de tempo e os ganhos de produtividade (SOUSA, 2001), é um exemplo claro — assim como o desenvolvimento da bioinformática e dos colossais bancos de dados que fazem com que boa parte da pesquisa em biologia e genética seja realizada in silico — dos problemas relativos ao atual processo de subsunção e desqualificação

rios estudados parece ter sido a retomada de um modelo ainda mais artesanal ou tradicional de trabalho científico, em grande medida devido ao fato de que, uma vez constituídos os grandes bancos de dados, todo o trabalho deverá concentrar-se naquilo que se pode chamar de pós-genoma, isto é, no estudo sistemático das funções dos genes, o que pode envolver diferentes estratégias de ação (análise dos transcriptomas, genoma funcional, proteoma), dependendo dos interesses de pesquisa de cada liderança acadêmica, de cada laboratório.38

O laboratório do Instituto de Química da USP, coordenado pelo Dr. Sergio Ver- jovski, pode ser tomado como uma espécie de paradigma dessa nova fase. Lá está localizado um dos bancos de clones gerados pelo PGHC de São Paulo. Nas salas con- tíguas àquela em que se encontram os freezers que contêm os clones, devidamente organizados e classificados individualmente por um sistema de código de barras, fica o laboratório em que se realizam os experimentos de genômica funcional referentes aos estudos sobre cânceres de próstata lá desenvolvidos. Nesse laboratório trabalham três técnicos de nível superior (não doutores), que recebem ordens diretamente do coorde- nador, que trabalha em outro laboratório, com outros 9 pesquisadores (8 doutorandos e 1 pós-doutorando). O trabalho aí é o tradicional trabalho científico de levantamento de hipóteses e pesquisa bibliográfica, que incorpora agora a possibilidade de acesso aos diferentes bancos de dados criados pelo projeto (além, evidentemente de outros, como o GenBank, que possam ser acessados à distância em qualquer lugar do mundo). Num terceiro compartimento situa-se o laboratório de bioinformática, no qual trabalham também três técnicos de nível superior (não doutores) da área de informática, desen- volvendo permanentemente programas e métodos de análise.

relativa do trabalho intelectual. O método alternativo da análise de transcriptomas, que possui tecnologia mais simples, mais facilmente automatizável e de grande escala, apresenta resultados significativamente pio- res (SOUSA, 2001). É na solução desse problema que trabalhará, a partir de então, a indústria da produção de equipamentos científicos.

38 Na verdade, há consenso entre os cientistas de que o sequenciamento do genoma humano, como o que foi feito pelo projeto genoma internacional, ou como o do PGHC de São Paulo, constituiu uma espécie de desvio em relação ao trabalho convencional em genômica, para a produção de uma mega infraestrutura represen- tada pelos bancos de dados que passaram a constituir uma base importante para pesquisa na área a partir de agora. Muitos apontam que o sequenciamento, na verdade, não pode ser considerado estrito senso como um trabalho científico, na medida em que não se trabalha sobre hipóteses a serem testadas etc. Um trabalho para os “próximos cem anos”, como se costuma dizer, que se inicia precisamente agora.

Um fluxo de trabalho padrão inicia-se, digamos, na mesa do coordenador ou, melhor, em uma reunião de trabalho entre o coordenador e seus alunos, em que se formula uma determinada hipótese, a partir da qual serão mobilizadas as dife- rentes capacidades técnicas do grupo localizadas nos laboratórios de biologia e de infor- mática a partir dos quais se podem acessar os bancos de dados disponíveis39. Alguns

experimentos mais simples podem ser realizados no próprio laboratório em que atuam o mestre e seus discípulos. O resultado de um processo desse tipo pode ser um artigo científico, envolvendo ainda, digamos, a colaboração de outros profissionais, de outras instituições (universidades ou hospitais) nacionais ou internacionais com que o labora- tório mantenha relações.