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PROJETO GENOMA, REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E TRABALHO

3.1 Produção científica e economia do conhecimento

Em seu interessante trabalho de apresentação da Cientometria, Callon, Courtial e Penan representam as cinco dimensões da pesquisa científica, lembrando que ela é, em primeiro lugar, avaliada e certificada por uma comunidade de pesquisadores em que a concorrên- cia estimula a produção e garante a validação daqueles resultados que resistam à crítica coletiva dos pares. Esse é o conceito de pesquisa acadêmica. Uma segunda dimensão é a da eventual valorização econômica das inovações de processos ou produtos decorrentes da pesquisa, que se inscreve, assim, nas estratégias das firmas em busca de vantagens competitivas, obedecendo a uma lógica também de concorrência, mas no sentido eco- nômico referente à atividade mais propriamente industrial. A terceira dimensão está relacionada ao interesse público, a quarta, à sua relação com as atividades de formação e a quinta, ao o conjunto da sociedade circundante, seja através de formas de divulgação científica, seja da atuação dos cientistas como experts em diferentes situações30.

O que nos interessa reforçar aqui é a ideia da existência de uma vasta esfera pública no interior da qual a Ciência é validada socialmente, o que é fundamental para o funcio- namento da Economia do Conhecimento, cuja questão central é a da passagem do conhe- cimento tácito ao codificado (FORAY, 2000). Essa passagem, ligada, na nossa perspectiva, ao problema da subsunção do trabalho intelectual, é problemática e — o mais importante para nossos interesses específicos aqui — estrutura-se como uma espiral em que a codifica- ção gera novos conhecimentos tácitos, que poderão ser subsequentemente codificados. O caráter recorrente desse movimento está ligado às especificidades do trabalho intelectual e faz com que a dinâmica competitiva dependa da existência de um espaço de diálogo no interior do qual um determinado código é compreensível. Assim, se, por um lado, o conhecimento tácito não é apenas um problema para o capital, mas pode ser também uma fonte de vantagens competitivas para aquela empresa capaz de manter em seus quadros os

30 Sobre o tema da formação, em particular, os autores apontam que “os conhecimentos e savoir-faire elaborados pelos pesquisadores são […] transformados em competências incorporadas em seres humanos (estudantes, assalariados que seguem cursos de formação profissional) que os põem em prática, em seguida, nos diferentes setores de atividade: indústria, serviços públicos, ensino […] ou pesquisa. A formatação dos conhecimentos e sua organização tendo em vista a sua transmissão obedecem a uma lógica que é estreitamente dependente da con- corrência entre as instituições de formação e as relações que elas mantêm com o mercado de trabalho” (CALLON; COURTIAL; PENAN, 1993, tradução nossa).

trabalhadores-chave para a dinâmica do mercado específico em que está inserida; isso só faz sentido na medida em que existe um espaço — formal ou informal — em que o diálogo entre os trabalhadores intelectuais das diferentes empresas em concorrência pode ocorrer. Assim, a forma de funcionamento da Economia do Conhecimento se assemelhará cada vez mais àquela da comunidade científica, ao mesmo tempo em que esta última será crescentemente influenciada pela dinâmica competitiva industrial. Há algo, portanto, entre aquela esfera pública acadêmica relativamente restrita (e de geometria variável) e a esfera mais ampla em que se podem incluir os sistemas de divulgação científica. Esse espaço (ou esses espaços) intermediário(s) é (são) responsável(is), ao final das contas, pela interlocução entre os diferentes agentes que compõem os campos paralelos da ciên- cia certificada e da ciência aplicada ao processo inovador, adquirindo uma importância geral na articulação global da Economia do Conhecimento, só inferior ao sistema educa- tivo, no sentido proposto por Callon e seus colegas no referido trabalho. Se pensarmos, ademais, na importância da participação, nessa nova esfera pública, dos agentes estatais (por exemplo, nos arranjos institucionais visando o desenvolvimento local sustentável), incluindo o sistema público de ensino, teremos a dimensão da convergência das lógicas acadêmica, empresarial e pública que está por trás dela.

Nota-se, por outro lado, na organização dessa nova esfera pública, a importância renovada do trabalho com informação: a Economia do Conhecimento, centrada, como vimos, na recorrente interação entre conhecimento tácito e codificado, depende hoje da existência de enormes bancos de dados informatizados, que deverão ser constantemente renovados, não simplesmente no sentido de que novos dados serão agregados, mas no de uma codificação ininterrupta, que exige o manejo de códigos em permanente atuali- zação, articulando os trabalhadores intelectuais dos diferentes campos do saber, usuários daqueles bancos, e os trabalhadores da informação responsáveis pela sua manutenção como ambientes vivos de comunicação produtiva. A bioinformática talvez seja o caso mais emblemático desse tipo de estrutura. Pode-se dizer que o trabalho com informação é produtivo num sentido semelhante ao da produtividade que Marx imputa ao trabalho dos setores de comunicação e transportes, como trabalho que vivifica ininterruptamente aqueles bancos de dados que, de outra forma, não passariam da condição de trabalho morto (Cf. MARX, 1980, pp. 12 e ss.; MARX, 1980, L. I, pp. 404, 517 e 549; L. II, cap. I e VI; L. III, p. 79; BOLAÑO, 2000, cap. 1).

Nessas condições, a dialética cooperação-concorrência adquire um significado espe- cial, que pode ser sentido, por exemplo, do ponto de vista da teoria do desenvolvimento econômico, no nível da dinâmica espacial, referendando as estratégias de cluster, arran- jos produtivos locais, sistemas locais de inovação (BOLAÑO; SICSÚ, 2001). A explicação mais fundamental do fenômeno en-contra-se não na própria concorrência, mas na forma como se organizam os processos de trabalho numa situação como a atual, de subsunção do trabalho intelectual, levando à necessidade de constituição daquele espaço de diá- logo em que certo código é socializado. Espaço que, por sua vez, tem também geometria variável, podendo ser mais ou menos estendido, dependendo do tipo de conhecimento específico, da magnitude dos interesses envolvidos, do tipo de estrutura de mercado etc.

É assim que a Ciência se integra hoje nos processos globais de poder, apon- tando, ao mesmo tempo, na medida das contradições inerentes à subsunção do trabalho intelectual e da inédita socialização da produção que a Economia do Conhecimento significa, para possibilidades também inéditas de constru-ção de for- mas mais justas de organização da sociedade. Ocorre, cada vez mais, com o conjunto do campo econômico, aquilo que é inerente à Ciência, marcada pelo debate aberto entre os pares, como vimos, de modo que “a pesquisa científica não é uma aventura individual” (CALLON; COURTIAL; PENAN, 1993, p. 16), mas atividade coletiva organizada no inte- rior de um campo que funciona como esfera pública inerentemente crítica.