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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

CAPÍTULO 4 ANÁLISE DOS DADOS

Neste capítulo, analiso, qualitativa e quantitativamente, os verbos mandar, deixar e fazer (causativos) e ver, ouvir, sentir (perceptivos) e suas cláusulas encaixadas. Para esse fim, valho- me de dados de dois momentos distintos da língua portuguesa: dos séculos XV e XX. Busco, com isso, confrontar os usos encontrados para os verbos supracitados e suas completivas no português atual com os arrolados na fase arcaica dessa língua e, assim, identificar se, no curso do tempo, há continuidade ou mudança de aspectos sintáticos e semânticos (cf. Votre, 1999, 2001) dessas construções encaixadas. Inicialmente, contemplo os dados sincrônicos e subseqüentemente, os diacrônicos.

Vale ressaltar que apenas os dados sincrônicos serão submetidos a um tratamento quantitativo. Como já foi dito, nesta tese, os resultados quantitativos fornecem respaldo às interpretações aqui sugeridas em relação ao padrão distribucional das completivas de causativos e perceptivos (às possíveis superposições e às suas singularidades) e ao uso de cada verbo isoladamente, no português contemporâneo.

4.1 Construções complexas com verbos causativos e perceptivos no português contemporâneo

Nesta seção, examino o comportamento semântico e sintático das estruturas complexas com os verbos causativos e perceptivos aqui investigados no português do século XX. Para tanto, destaco (a) os sentidos que foram atribuídos a esses verbos, (b) as codificações sintáticas de suas completivas empregadas com cada sentido apreendido e (c) as propriedades semânticas e gramaticais de cada verbo analisado e de seus complementos oracionais.

4.1.1 Os verbos causativos

Os verbos causativos, em frases complexas, são utilizados em estruturas em que se evidencia uma relação de causatividade1 entre o evento descrito na sentença matriz (que possui o verbo causativo) e o evento da encaixada2. Assim, as cláusulas subcategorizadas por esses verbos podem expressar, entre outras coisas, uma ordem (01) ou uma permissão (02) dada pelo referente-sujeito da matriz sobre um outro ser.

(01) E- (est.) E, como é que você trata, normalmente, as pessoas lá do prédio, os moradores do prédio?

F- Como é que eu trato? E- É.

F- Eu trato é "sim senhor", "sim senhora". Às vez, uma pessoa manda fazer aquilo, apanhar uma bolsa do carro, levar no apartamento. Aí, eu vou, apanho, levo, aí, né, sempre sai na gorjetinha- é até bom. É legal! (Inf. 19, Amostra 80, Ginásio, p. 16)

(02) Meu irmão é casado. Aí meu irmão casô, aí meu pai morô sozinho durante um tempo naquele apartamento... Só que a minha irmã foi morá cum meu pai, aí botô meu pai pro fundo do poço, depois dele tá lá em cima ele teve que vendê o apartamento que meu irmão deixô pra ele... Nem era do meu pai, era do meu irmão! Mas o meu irmão deixô ele morá... entendeu? Que agora o meu irmão poderia tá cum uma situação boa, tá morano em morro... tá morando lá no morro do Dendê mas a casa é dele, entendeu? (Inf. 12, Amostra 00 (C), Ginásio, p. 14)

1

Uma situação causativa compreende dois eventos: o causador e o causado. De acordo com Shibatani (1975:239- 240), para que dois eventos possam ser interpretados como integrantes de tal situação, eles devem preencher as seguintes condições: (a) deve haver uma relação temporal entre eles (a ocorrência do evento causado se dá num tempo 2, ou seja, depois do tempo 1, que é o do evento causador); (b) deve haver uma relação de dependência entre os dois eventos (a ocorrência do evento causado é completamente dependente da ocorrência do evento causador no sentido de que aquele não se realiza em um tempo particular, se este não tiver acontecido).

2

Neste caso, estou me referindo às chamadas estruturas causativas analíticas (aquelas que possuem dois predicados, um indicando a noção de causa e outro, a de efeito), que, nos termos de Comrie (1981), são codificadas com verbos causativos seguidos de cláusulas completivas no subjuntivo ou no infinitivo. Além desse tipo de estruturas causativas, há as morfológicas (aquelas em que o predicado causativo relaciona-se ao predicado não-causativo através de mecanismos morfológicos, por exemplo, de afixação) e as lexicais (aquelas em que a noção de causatividade se exprime por meio de itens lexicais, configurando-se como um componente semântico do predicado) (cf. Comrie, 1981: 160-161). No português do Brasil (PB), ocorrem os três tipos de construções causativas citados por Comrie. Diferentemente de Comrie (1981), Bittencourt (1995, 2001), ao estudar as construções causativas do PB, faz a distinção entre as formas analíticas e semi-analíticas. As primeiras compreendem as construções com sentenças completivas de (a) subjuntivo e (b) “nominativo + infinitivo” flexionado ou não; as segundas englobam as construções com sentenças completivas de (a) “acusativo + infinitivo” e (b) predicado não-verbal, isto é, de mini- oração.

Observa-se que, nos exemplos supracitados, os conteúdos semânticos expressos nas matrizes implicam os eventos descritos nas completivas; daí decorre a relação de causatividade entre esses eventos. Em (01), as ações realizadas pelo informante (que é porteiro) ocorrem em função de ordens dadas por algum morador do prédio onde aquele trabalha. Em (02), o pai da informante morava no apartamento do filho porque este permitiu isso, já que era o proprietário do imóvel.

Outra propriedade que tem sido relacionada a verbos causativos diz respeito à noção de manipulação de um ser. Para Givón (1990:518), estruturas com verbos manipulativos apresentam as seguintes características:

(a) a cláusula principal codifica uma manipulação de um agente sobre um outro agente potencial; (b) o agente manipulador é codificado como sujeito da cláusula principal e o manipulado, como objeto3;

(c) a cláusula completiva codifica o evento realizado – ou a ser realizado – pelo manipulado; (d) o manipulado é o sujeito-agente da cláusula completiva.

Note-se que todos os exemplos citados anteriormente ilustram situações em que ocorre uma manipulação bem sucedida. Em outras palavras, o agente manipulador consegue impor sua vontade sobre o manipulado.

Como já foi dito, do rol dos verbos causativos da língua portuguesa, só serão estudados aqui os verbos mandar, deixar e fazer. Na amostra, foi registrado um total de 237 ocorrências de sentenças complexas com verbos causativos. A tabela 1 mostra a distribuição dessas sentenças de acordo com o verbo causativo que constitui o predicador da matriz.

Verbos Causativos

mandar deixar fazer TOTAL

72 30% 132 56% 33 14%% 237

Tabela 1 – Cláusulas complexas com os verbos mandar, deixar e fazer no corpus.

3

Vale ressaltar que, no português do Brasil, o agente manipulado pode ser codificado sintaticamente tanto na forma de objeto (nesse caso, apenas em estruturas não-finitas) como na de sujeito da sentença encaixada (em construções finitas e não-finitas).

Esses mesmos resultados estão expressos no gráfico 1. 56% 14% 30% fazer deixar mandar

Gráfico 1 – Distribuição dos verbos causativos mandar, deixar e fazer no corpus.

O exame da tabela 1 e do gráfico 1 indica que, em sentenças complexas, deixar é o verbo que mais ocorre com valor causativo enquanto fazer é o menos empregado. O alto índice de ocorrência de deixar pode ser explicado pelo fato de esse verbo, entre os causativos, ser o que mais apresenta significados diferentes em construções encaixadas. Curiosamente, mandar, apesar de não ter uma variabilidade de sentidos, é o segundo verbo causativo mais utilizado. Entende-se que isso se dá em função do tipo textual em que mandar se atualiza: o narrativo, que ocorre muito nas entrevistas analisadas, mais especificamente, nos trechos em que os informantes relatam alguma situação vivenciada por eles ou por outras pessoas. Já a baixa ocorrência de fazer em estruturas complexas contradiz a afirmação de Bittencourt (1995:154) de que esse verbo, por ter um maior rendimento no português, é considerado o causativo por excelência. O tipo de rendimento a que essa autora se refere não é explicitado. O que se pode afirmar é que, levando-se em conta o critério freqüência de uso, tal rendimento não se verifica nos dados sincrônicos de fazer examinados nesta tese.

De acordo com a freqüência de uso, nas construções encaixadas, os verbos causativos podem ser alocados no seguinte continuum de marcação4:

- MARCADO --- + MARCADO