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Por aí assim aqui mesmo, mas já morei dez ano morei, deixa eu ver 7 , morei em Nova Iguaçu [vinte] vinte e dois anos e morei no Largo do Bicão dez anos, agora faz sete que

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

MARCADO + MARCADO deixar mandar fazer

F: Por aí assim aqui mesmo, mas já morei dez ano morei, deixa eu ver 7 , morei em Nova Iguaçu [vinte] vinte e dois anos e morei no Largo do Bicão dez anos, agora faz sete que

eu moro aqui. (Inf. 27, Amostra 00 (C), Primário, p. 08)

Os exemplos (01), (02) e (03) ilustram, respectivamente, diferentes sentidos de ‘permitir’: (a) ‘permitir ou não que um outro referente-sujeito faça algo’; (b) ‘permitir ou não ser controlado por um outro referente’; (c) ‘permitir que algo aconteça voluntariamente ou não’. Em (01), a informante diz que, quando leva o seu cachorro à praia, não permite que ele fique na areia, a fim de que ele não a suje. Em (02), o falante, ao expor sua opinião sobre juventude e religião, afirma que o comportamento de um rapaz é bastante influenciado pelas atitudes da sua namorada. Em (03), o informante, ao narrar fatos de sua experiência profissional, declara que sempre há, no quartel, algum policial que permite involuntariamente que a arma caia, ocasionando algum acidente.

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As nuances semânticas de ‘permitir’ supracitadas implicam diferenças entre (01), (02) e (03) quanto à presença de controle sobre os referentes-sujeitos da completiva: esse controle se dá em (01) e (02) e inexiste em (03). Em (01), é o referente-sujeito da cláusula matriz (a própria informante, codificada sintaticamente por um eu implícito) que exerce controle sobre o referente- sujeito da encaixada (o cachorro da informante, que está expresso pelo pronome ele). Já em (02), o constituinte controlador é expresso pelo sintagma preposicional pela namorada, que exerce a função sintática de agente da passiva.

Vale ressaltar que, com deixar com a acepção de ‘permitir ou não que um outro referente- sujeito faça algo’, nem sempre o referente-sujeito da matriz consegue exercer controle sobre o referente- sujeito da completiva, como se pode ver no exemplo a seguir:

(06) E o meu filho caiu, ficô se bateno, ficô cum a boca torta, ficô cum a cara de... como se ficasse uma criança quando é < mocolóide> (est) Ficô cum uma cara toda torta, toda esquisita, essa mão dele batia muito, eu achei que tinha quebrado, ele ficô todo se bateno, ele ficô:... estado crítico. Aí corremos chegamos sabe aonde? No hospital Duque de Caxias. (inint) Aí ficô lá. Não sei o quê, aí vai, olha: “Seu filho tá dormino, você num deixa ele dormir.” Aí ele dormiu, dormiu num acordava mais.(Inf. 08, Amostra 00 (C), Primário, p. 06)

No exemplo acima, a informante, ao narrar um acidente que aconteceu com o seu filho, diz que, quando chegou ao hospital, não conseguiu impedir que ele dormisse antes de ser atendido.

Outra observação a ser feita sobre o parâmetro controle diz respeito ao terceiro tipo de ‘permitir’ citado acima para deixar: nesse uso, quando esse verbo tem o significado de ‘permitir que algo aconteça voluntariamente’, o referente-sujeito da matriz é controlador do referente-sujeito da completiva. O exemplo (07) fornece respaldo a essa observação. Percebe-se que, como (07) não está inserido em um contexto discursivo, deixar admite duas interpretações: ‘permitir que algo aconteça voluntariamente’ ou ‘permitir que algo aconteça involuntariamente ’Assim, se (07) for interpretado como um ato voluntário do referente-sujeito da matriz, o controle existe.

(07) Eu deixei o bebê cair8.

Também percebem-se diferenças entre (01), (02) e (03) quanto à atuação do fator animacidade. De acordo com essa propriedade, os sentidos de deixar, exemplificados em (01) e (02), se aproximam pelo fato de subcategorizarem sentenças que têm sujeito com o traço [+ animado] enquanto a acepção desse verbo em (03) e (07) ocorre com sentenças encaixadas que possuem sujeitos com traço [ + animado].

O significado de ‘aguardar/esperar’ para deixar é exemplificado em (04). Esse uso aparece muito no que tem sido designado de relato de procedimentos (por exemplo, quando se fornece uma receita culinária). Em (04), mais precisamente, ocorre quando o informante fala de duas etapas da preparação do arroz: um momento, em que é preciso que se aguarde o alho ficar dourado no óleo e, um outro momento, em que se deve aguardar o arroz cozinhar depois que se põe água.

Segundo Cezario (2001:175), o sentido de manipulação, permissão ainda se mantém em deixar com acepção de ‘aguardar/esperar’: nesse caso, esse verbo “poderia ser interpretado como ‘permitir que o evento codificado na cláusula completiva aconteça’ ou ‘aguardar que o evento aconteça’ ”. Note-se que, em exemplos como (04), o sujeito da cláusula completiva é um ser inanimado, que constitui o alvo da manipulação do sujeito da matriz.

Cumpre destacar que foi documentada uma ocorrência de deixar com o sentido de ‘aguardar/esperar’ que não se encontrava em relatos de procedimento:

(08) Ah, tinha ... não, isso aí ... é realmente poderia, mas, inclusive ele num ... quando ele deu a primeira, quando ele caiu a primeira vez, o que que o juiz falô? "Se ele agora agüentô, tudo bem", aí, na segunda, o juiz pensô que ele ia ... (...) Agüentá mais, aí deixô passá um pouquinho, aí, o que aconteceu? aí Popó arriô ele. (...) É, agora se vê que ele tá melhor, o cara foi lá no hospital visitá ele e tudo, e tal. (Inf. 20, Amostra 00 (C), Primário, p. 14-15)

Em (08), o falante, ao descrever uma das lutas de Popó, se refere a dois momentos em que esse pugilista derrubou o seu adversário. Repare-se que, nesse exemplo, o uso de deixar, da mesma

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forma que acontece em (04), continua relacionado ao fator temporal: o informante está falando de duas fases de uma luta.

O uso do verbo deixar integrando um marcador conversacional com o verbo ver é ilustrado em (05). Note-se que, nesse exemplo, deixar não apresenta mais o sentido causativo: a falante não pede permissão para fazer algo; ela se dá um tempo para se lembrar da informação solicitada pelo entrevistador: no caso, dos lugares onde a informante já morou. Em outras palavras, nesse contexto, deixar não mais possui suas características de verbo pleno, já que há uma perda de seus traços semânticos de origem.

No entanto, não há dúvida de que o uso desse marcador foi gerado em um contexto de valor causativo. Nos termos de Cezario (2001:178), “o sentido original pode ser ambíguo: ‘permita-me ou espere-me ver’, com o verbo ver usado metaforicamente como pensar (ver no plano mental)”.

Atente-se ainda para o fato de que, em contextos como o de (05), a expressão deixa eu ver não desempenha função gramatical mas, sim, pragmática. Nesse caso, essa expressão ilustra um processo de mudança lingüística diferente da gramaticalização, denominado de discursivização9, que “leva o elemento lingüístico a perder suas restrições gramaticais, sobretudo de ordenação vocabular, e assumir restrições de caráter pragmático e interativo” (Martelotta et al., 1996b:60). Uma das características desse processo é o desgaste fonético do elemento que se tornou marcador conversacional; por exemplo, a expressão deixa eu ver tende a ser realizada como [šo’ve], conforme ilustrado em (05).

Convém salientar que o uso de deixa eu ver com sentido causativo ainda permanece na fase atual da língua portuguesa, conforme mostra (09). Nesse exemplo, o falante relata uma situação em que pediu permissão à sua filha para ver a boneca dela.

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Martelotta et al. (1996b:59) mencionam que outro rótulo dado a esse processo é o de pós-gramaticalização, que se encontra em Vincent, Votre e Laforest (1993). Os autores esclarecem que rejeitaram esse rótulo pelo fato de ele “sugerir um processo posterior à gramaticalização, o que, de fato, nem sempre ocorre” (Martelotta et al., 1996b:60). Ainda informam que, na literatura, outros nomes também têm sido utilizados para designar os marcadores

(09) O que que tem que (hes) ver com boneca, não é? Aí ela está brincando com a filha da vizinha, eu digo: “Marina, deixa eu ver a tua boneca?” “Não!” Aí a filha da vizinha, não é? Pediu, ela deu a boneca. Aí eu fiquei danado, não é? Tomei a boneca da mão da filha da vizinha (...). (Inf. 33, Amostra 80, Primário, p. 07)

Embora se trate de um caso de discursivização, pode-se considerar que a convivência entre o marcador conversacional deixa eu ver e a sua construção original (a estrutura causativa que tem essa mesma forma fonológica) serve de ilustração para o princípio da divergência proposto por Hopper (1991) para a gramaticalização. Tal princípio estipula que, quando um item lingüístico passa por gramaticalização, a forma ou construção que lhe deu origem permanece como um elemento autônomo (cf. Hopper, 1991:22). Observe-se, pois, que esse princípio parece não só atuar na gramaticalização mas também na discursivização, o que nos sugere que esses dois processos de mudança lingüística possuem características comuns.

Nos dados examinados, também foram registrados usos de deixar que, sincronicamente, parecem não estar relacionados à noção de causatividade, como se pode ver em (10) e (11):

(10) Eu rezo muito muito, eu tô sempre falando em Deus. Deus, Deus, Deus. Ele deve tá falando assim: “Pô, esse cara é chato pra caramba (riso e), esse cara, pô!” mas Ele pode me chamá de chato, Ele pode: mas hora alguma vou deixá de falá no nome d’Ele. (est) Que o Brasil, o Rio de Janeiro tá muito violento. (Inf. 19, Amostra 00 (C), Ginásio, p. 06)

(11) Eu acho que... se droga fosse bom, não teria esse nome droga. Eh... droga é uma coisa que... (latidos de cachorro) é que nem cigarro, cigarro não deixa de ser droga, (ruídos) você vai lá, fuma maconha por exemplo... você gosta, você vai fumar como se fuma cigarro, isso é conseqüência é uma coisa, que você não pensa na hora que você vai lá e faz. Você não pensa que você tá se matando, (“tu”) não pensa que você tá acabando com você. (Inf. 09, Amostra 00 (C), Ginásio, p. 14)

Em (10), deixar possui o significado de ‘parar’ ou ‘terminar’: o informante, ao falar sobre sua crença religiosa, diz que, mesmo podendo ser tachado de chato pelo próprio Deus, ele não vai parar de evocar o Seu nome. Essa acepção se atualiza lingüisticamente na estrutura verbo deixar seguido da preposição de e de outro verbo no infinitivo. Nesse contexto estrutural, deixar se gramaticalizou e passou a ser utilizado como verbo auxiliar, marcando aspecto terminativo. De

(em Risso, Silva e Urbano, 1995 e Martelotta et al., 1996b), pontuantes (em Vincent, 1983 e Vincent, Votre e Laforest (1993), bordões (em Marques, 1993).

todos os usos arrolados para deixar (independente de esse item verbal ter ou não valor causativo), esse configura-se como o mais integrado e o mais gramaticalizado: sempre se realiza com verbos na forma não-finita no infinitivo (como já foi dito), tem sujeitos correfenciais, o sujeito do verbo no infinitivo é codificado pelo que tem sido designado de anáfora zero obrigatória10 e não há restrição de sujeito quanto ao fator animacidade. É preciso lembrar que o emprego de um verbo como auxiliar constitui um dos estágios mais avançados do processo de gramaticalização (cf. continuum de Lehmann (1988) na seção 2.3.2 desta tese).

Já em (11), não se pode atribuir um sentido específico a deixar. Nesse uso, o contexto estrutural em que esse verbo se realiza é o mesmo de (10), mas sempre com polaridade negativa. Observe- se, no entanto, que, apesar de deixar ocorrer em uma estrutura negativa, o enunciado do qual faz parte tem valor afirmativo: o informante, ao pronunciar (11), na verdade, quer afirmar que o cigarro, assim como a maconha, é uma droga.

A partir dos usos encontrados para deixar seguido de completiva11, esse verbo foi categorizado da seguinte forma:

deixar1 que equivale ao sentido ‘permitir ou não que um outro referente- sujeito faça algo’;