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A obra Educação é, acima de tudo, de um filme político que discute, através de uma reunião de imagens de origens diversas, o tema de como as escolas públicas brasileiras foram afetadas pelas medidas políticas comentadas no capítulo anterior, ocorridas no período durante e após o golpe da presidenta Dilma Rousseff.

Para concepção da obra, os diretores trabalharam com a seleção de imagens videográficas públicas que – em sua maioria – inicialmente não produziam qualquer sentido ideológico de crítica à gestão governamental. O uso destas imagens, que anteriormente ao filme já se encontravam acessíveis a qualquer telespectador pela televisão ou pela internet, permite ao espectador crítico e aos próprios diretores chegarem a uma conclusão, já também abordada por Pipano e Migliorin no capítulo do livro Cinema de Brincar no qual falam sobre o processo do filme Educação: “o capitalismo não tem nada a esconder” (2019, p. 110). Isso porque, ao assistir aos arquivos isolados fazendo jus ao uso inicial das imagens, chega-se a uma conclusão totalmente distinta da trazida pela montagem do filme Educação, mas ao reorganizá-los pode-se chegar a um ponto de vista crítico, simplesmente através do uso de uma montagem politizada.

Portanto, antes mesmo de Migliorin e Pipano se tornarem diretores, eles foram, primeiramente, espectadores críticos destes arquivos públicos utilizados pela mídia e pela internet para estigmatizar a escola pública brasileira. Para Consuelo Lins (2010), é exatamente neste momento de discernimento do caráter dessas imagens que Migliorin e Pipano realizam uma interferência pessoal, e transformam-se então no que seria o espectador-montador, aquele que cria a própria versão do que experimentou da imagem. Ao anunciar que o capitalismo nada tem a esconder, os autores então já deixam claro que qualquer outra interpretação da imagem é passível, desde que haja uma mínima noção crítica no imaginário do espectador. O que eles fazem, portanto, é meramente estimular este pensamento através da montagem trazida pelo filme Educação.

Para Negri e Hardt (2014), o sujeito midiatizado – que nesta ocasião, seria especificamente o espectador da montagem de Educação – tem suas barreiras da percepção completamente borradas, tornando-se, portanto, incapaz de compreender por si só as interpretações possíveis que estão implícitas na imagem. Isso torna-os sujeitos absortos na mídia comunicativa, distanciando-os de quaisquer afetos políticos. É por isso então que na pedagogia da montagem de Migliorin e Pipano, cria-se, através da reunião dos arquivos brutos e da comparação entre as imagens – quando um plano conversa com o outro – , uma didática

capaz de colocar o telespectador em um profundo momento de reflexão, momento este que se mostra capaz de inserir e transmitir a crítica trabalhada pelos diretores-montadores.

Na conversa trazida sobre o filme no livro Cinema de Brincar, os diretores-montadores afirmam que, apesar da obra em sua totalidade apresentar uma função política ao desmontar e remontar a razão das imagens, a crítica foi criada para não ser explicitada no filme como seria em um cinema propriamente militante. Segundo eles, esse caminho foi optado por duas hipóteses: “a primeira, é que não poderíamos perder espectadores que se distanciam de nós, ética e ideologicamente. A segunda é que o espectador deveria ser convidado a se perguntar sobre cada sequência do filme: como me posiciono diante do que o filme mostra?” (2019, p. 112). Essa didática se torna especialmente interessante ao analisarmos que, de fato, pessoas que não possuem uma ideologia política militante – ou que simplesmente não compactuam com qualquer diálogo político que tenha uma mínima intenção progressista – se afastariam prontamente de assistir a obra. Entretanto, ao se abster de um posicionamento ideológico inicial, e ao mesmo tempo promover um estranhamento causado por imagens chocantes e constrangedoras utilizadas pela mídia e promovidas pelos governantes da época, os diretores-montadores propõem um exercício mental que interroga e leva o espectador a pensar “será que realmente compactuo com estas posições imorais?”.

Para Consuelo Lins (2010), este seria o princípio da criação de um espectador emancipado, onde o diretor infunde algumas poucas pistas para guiar o espectador a estabelecer sua própria verdade, que, nesse caso, ocorre por meio da dissociação da imagem (promovidas por Migliorin e Pipano) e da provocação de um pensamento analítico no espectador. Para Negri e Hardt (2014), é neste processo também que há a quebra da pós-verdade, que é aquela produzida inicialmente nos “arquivos brutos” retirados diretamente da mídia televisiva. A violação do “feitiço” criado pela televisão acaba, portanto, renovando a potência daquela imagem e rompendo o domínio dos autores envolvidos na própria fabricação desta imagem (MIGLIORIN, PIPANO, 2019).

Tanto nesta monografia como na literatura de Migliorin e Pipano, por vezes tratamos a obra Educação como “filme” de maneira a simplificar seu entendimento para todos os espectadores e leitores, entretanto é mais do que claro após as discussões promovidas nos capítulos anteriores que a definição correta para a obra é de um vídeo-ensaio, sendo a videografia aqui definida enquanto uma imagem captada com fins televisivos e/ou amadores, e o ensaio sendo uma modalidade reflexiva do cinema praticada através de uma filosofia conceitual, que vai muito além de uma representação ficcional de histórias com personagens ou de uma obra estritamente documental. Tanto o vídeo como o ensaio remetem aqui a uma

aproximação com o trabalho de experimentalistas como Godard e Varda e da vanguarda da videoarte, mas também é importante citar que a ideia dos autores de Educação de trabalhar com um formato artístico que remonta o tempo-espaço e se apropria e destrói os signos originais da coisa se assemelha também com o trabalho do artista brasileiro Hélio Oiticica, da vanguarda da antiarte.

Oiticica (1986) constrói em sua conceptualização para a antiarte um ideal subversivo para com as grandes mídias ditadoras da estética, buscando ser totalmente experimental e fora do convencional apropriando-se de infinitas fontes e referências para tornar da arte um objeto a ser vivenciado, não contemplado. O artista ao longo dos anos 60 formulou o que chamou de Esquema Geral da Nova Objetividade, que se constituía em um estado não dogmático e esteticista da obra de arte no movimento antiarte, relacionando o estado da arte com a linguagem cultural e política brasileira ao mesmo tempo que propunha uma arte formulada pelo coletivo. Importante também relacionar o esquema de Oiticica à obra Educação justamente por conta do fator político, já que ele ressaltava especialmente a importância do artista em se envolver não apenas com fatores estéticos e sim com “os acontecimentos e problemas do mundo, consequentemente influindo e modificando-os” (OITICICA, 1967).

Em Educação, além de uma clara tentativa de influir na política ou então ao menos na visão que a sociedade possui sobre ela, há também através da pedagogia atribuída à obra uma tentativa de educar e impactar o telespectador. Com o distanciamento em relação ao cinema comercial e a aproximação do cinema experimental, os autores promovem também um uso diferenciado das técnicas cinematográficas de montagem e edição, pois apoiam seu trabalho inteiramente no ato da apropriação e do deslocamento da imagem. Diferentemente de Godard, por exemplo, que usava da videoescrita como tática de embelezamento até mesmo em suas obras ensaísticas e experimentais, os autores de Educação não atribuem quaisquer efeitos cinematográficos de edição ou montagem aos arquivos da obra. O filme nada mais é do que um agrupamento de recortes, sem transições entre planos, sem técnicas complicadas, sem trilha. A única interferência feita é a da apropriação, do recorte e da reorganização, se assemelhando então completamente ao conceito do Ready-made utilizado por Duchamp, onde a arte ocorre através do deslocamento de uma peça pronta cuja finalidade prática inicial não possuía nada de artístico.

Talvez por isso gere tanto estranhamento em um espectador de primeira viagem ao experimentalismo audiovisual. Quem em sã consciência pararia para assistir reportagens, propagandas e imagens amadoras sobre a educação brasileira? Tal como explicitei na fala de Consuelo Lins no início do capítulo anterior, esse exercício torna-se imensamente

circunstancial, pois tratam-se de imagens de um “bem comum” (DIDI-HUBERMAN apud LINS, 2013) que apenas sob novos olhares podem alcançar um novo significado. Novamente, é apenas através da recontextualização promovida pela montagem de Migliorin e Pipano que o filme se empossa deste caráter político artístico.

Em seu livro Cinema de Brincar, os autores revelam o motivo da escolha da não interferência na imagem apropriada: “a diferença do falar naturalizante que se dá no jornalismo e na mídia como um todo, aqui, tanto o deslocamento para a sala de cinema, quanto a montagem com outros discursos, nos convidam efetivamente a ouvir e problematizar o que é dito” (2019, p. 116). Ou seja, o ato que eles mesmos denominam de “montar e deixar falar” (2019, p. 117) ocorre estritamente para repararmos sozinhos na problemática dos discursos escolhidos que parecem um tanto quanto ordinários no seu formato original.

Analisaremos a seguir, então, aquilo que nos é trazido pelas imagens remontadas pelos autores numa tentativa de entender o que acontece ao longo do filme Educação e como se dá a experiência de vivenciamento e contemplação desta obra.

Em primeiro momento, a montagem de Migliorin e Pipano exibe um vídeo que parece ser extraído de uma gravação amadora da internet, que mostra a ação do estado numa tentativa de intervir em uma ocupação escolar. Ao escrever sobre esta cena, os diretores-montadores explicam que “este impressionante plano-sequência de 30 minutos é dividido no filme em três partes. Em nossa montagem, ele é o primeiro e o último plano, além de aparecer na metade do filme” (MIGLIORIN, PIPANO, 2019, p. 113). A mulher que aparece em cena é uma oficial de justiça e parece buscar um diálogo com as crianças que se encontram dentro da escola, informando-as que um juiz de direito decretara o fim da ocupação e a retomada das atividades escolares. Disso, corta-se a cena para o que parece ser uma propaganda educativa que discute o que seria uma técnica didática para estabelecer debates em sala de aula. Apesar da professora seguir a didática, a dinâmica não parece surtir um efeito positivo. Muito pelo contrário, os alunos respondem-na com extrema monotonia. A cena contrapõe-se imensamente à próxima, que revela um aluno em uma discussão com plena eloquência e conhecimento dos seus direitos discutindo em uma intervenção de um policial fardado na escola ocupada. Aqui, como também em outros momentos adiante do filme, é dado ao espectador a chance de presenciar um diálogo entre takes, estes que por sua vez não são oriundos da mesma fonte e da mesma perspectiva, entretanto o contato entre as mise-en-scène fornece uma tensão e um questionamento acerca do que está sendo mostrado. Migliorin e Pipano propõe ao espectador: será que faz mais sentido engajar-se na imagem de um tutorial autoritário e completamente falho, ou na imagem da criança que se contrapõe ao estado em busca dos seus direitos?

Logo após, vemos uma entrevista com Herman Voorwald, ex-secretário da Educação do Estado de São Paulo, justificando a escolha das novas medidas para a educação do estado em “dados”, numa montagem que parece se repetir infinitamente, sem exibir quaisquer fontes que apresentem quais são estes supostos dados. Não se sabe ao menos quais são os dados e o que se dá nos dados argumentados pelo secretário. É reforçado e escrachado na montagem a falta desta informação, que nunca chega a público.

Em seguida, aparece o que é potencialmente um dos planos mais chocantes da obra, um extrato de uma reportagem assinada pela rede Globo de televisão, que apresenta os alunos e as escolas retratando-os com tamanha marginalidade e distanciamento que se assemelha a uma prisão. Não que seja cabível ao ambiente carcerário este tipo de retratação, entretanto as imagens de crianças em silhuetas, com cadeados e grades ao fundo ou em primeiro plano enfatizam o quanto a mídia criminalizava estes adolescentes, dessensibilizando o espectador de qualquer empatia para com as crianças, que, naquela situação, não passavam de vítimas de mais um ataque do governo contra a escola pública. A próxima reportagem, que provém da rede Record, apresenta novamente uma estética criminosa dentro das escolas, exibindo novos circuitos de monitoramento de segurança e vigilância protegidos por grades, sistema adotado para supostamente fornecer “suporte ao professor” na sala de aula e na escola em si.

Continuando, vemos um compilado de cenas que abordam desde entrevistas com pessoas como João Dória (ex-prefeito da capital e atual governador do Estado de São Paulo) e Aloizio Mercadante (ex-ministro da Educação) assim como reportagens jornalísticas que abordam comumente o tema da necessidade da digitalização da educação, e sobre como os profissionais educadores necessitam acompanhar as novas tecnologias propostas pela geração do futuro. É exibido uma reportagem sobre um jogo falsificado em distribuição nas redes escolares do Rio, que conversa com uma cena de novela onde dois alunos são pegos em flagrante por terem feito algo na escola. O jornal então anuncia a volta dos protestos contra a reorganização das escolas públicas e divulga a prisão de cinco estudantes.

A cena da oficial de justiça retorna, e dessa vez ela aparece com um conselheiro tutelar interrompendo a fala dos estudantes, novamente falando da decisão de um juiz para interromper a ocupação na escola filmada. Os alunos retrucam, afirmando que desocuparão pacificamente no momento que forem ouvidos, e ela responde falando que a intenção é que desocupem, sim, pacificamente, caso contrário o estado utilizará da força para realizar a desocupação dos menores.

Novamente observamos uma cena do mesmo segmento de tutorial de técnicas didáticas. Então, uma propaganda de ensino a distância, seguida de uma conversa no jornal

alegando ser o FIES o melhor financiamento estudantil até então, para depois ser desmentido pela presidenta Dilma, numa entrevista em que alega que foi cometido um erro ao passar o controle do FIES ao setor privado.

Aparece então um compilado de propagandas de financiamento privado e reportagens e entrevistas com grupos de educação privados, cujos entrevistadores e entrevistados tratam como apenas um business, uma mera empresa movida pelo capital como qualquer outra, procurando discutir como elevar seus lucros e subir seu negócio, relembrando então a discussão proposta ao fim do capítulo anterior sobre as crescentes privatizações adotadas nos governos conservadores.

Somos atingidos, em seguida, com uma cena do então senador Magno Malta em 2011, falando publicamente no plenário sobre como o suposto “kit homossexual”13 tornaria as escolas “verdadeiras academias de homossexuais”. Em seguida, vemos em uma entrevista o ex-secretário da Educação do município de São Paulo, Cortella, explicando ao entrevistador a diferença entre escolarização e educação. No próximo take, Lucas Koka Penteado, personagem importante na luta secundarista presente também no filme documentário Espero Tua (Re)volta, aparece tentando entrevistar uma repórter, que foge alegando que não irá se posicionar.

A montagem exibe mais duas entrevistas vexaminosas com representantes do movimento Escola Sem Partido, uma reportagem sobre os chips de localização inseridos nos uniformes de estudantes na Bahia e outra sobre a militarização das escolas, para então retornar à cena da oficial de justiça novamente na escola.

O que sucede a seguir é muito emocionante. A câmera foca em um papel que alguém trouxera para a oficial de justiça, mostrando que os estudantes possuem um prazo de mais 10 dias para concessão do efeito suspensivo. A oficial então avisa: hoje, a polícia não virá, e caso haja depredação da escola, os pais serão responsabilizados. A câmera vira e revela então os estudantes, todos sentados organizadamente atrás das grades chaveadas da escola. Cada um com um cartaz de protesto, em silêncio. Eles sabem que a escola não será depredada. Significa então, mais uma vez, que naquele momento os estudantes venceram.

Ao assistir Educação, entendemos então que a abordagem dos diretores-montadores se dá por aproximação. Não existe uma linha cronológica, uma continuidade, e sim uma estratégia que se desloca através de múltiplas similaridades nos discursos providenciados pelas mais diversas pessoas. A tensão criada na separação das cenas da oficial de justiça frente

13 Oficialmente conhecido como programa Escola sem Homofobia. Uma iniciativa governamental para educar as escolas contra a homofobia, através de um material didático distribuído em formato de cartilhas pelo MEC.

à escola designam uma grande inquietação à obra. O ato corajoso de “montar e deixar falar” (MIGLIORIN, PIPANO, 2019, p. 117) dos diretores perante as falas homofóbicas ou gestos de militarização da educação e chipamento estudantil permite ao espectador entender por si qual a gravidade de cada acontecimento. A tática sempre foi de que as imagens falassem por si, de forma a fazer o objeto se autorrevelar na sua intenção. A montagem de Migliorin e Pipano não foi um enfrentamento, então, mas sim uma revelação, carregada de peso, originalidade e política.

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