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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA MARIANNA HOFER NERIS

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA MARIANNA HOFER NERIS

O VÍDEO-ENSAIO COMO FERRAMENTA DE DISCURSO POLÍTICO: UMA VISÃO SOBRE A OBRA EDUCAÇÃO, DE ISAAC PIPANO E CEZAR

MIGLIORIN

Palhoça – SC 2020

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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

MARIANNA HOFER NERIS

O VÍDEO-ENSAIO COMO FERRAMENTA DE DISCURSO POLÍTICO: UMA VISÃO SOBRE A OBRA EDUCAÇÃO, DE ISAAC PIPANO E CEZAR

MIGLIORIN

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade do Sul de Santa Catarina como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Cinema e Audiovisual.

Profa. Dra. Ana Carolina Cernicchiaro (Orientadora) Profa. Dra. Mara Salla (Coorientadora) Profa. Dra. Solange Gallo (Coorientadora) Profa. Dra. Ramayana Lira de Sousa (Coorientadora)

Palhoça - SC 2020

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Dedico este texto inteiramente a todos que me foram presentes no caos de 2020 – de qualquer maneira possível – e a minha orientadora, Ana, que forneceu todos os recursos pra tornar desta uma boa leitura.

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A primeira crença é no cinema e na sua possibilidade de intensificar as invenções de mundo. A segunda é na escola, como espaço em que o risco dessas invenções é possível e desejável. O terceiro é na criança, como aquela que tem a criar com o mundo, com os filmes. Necessidade

da arte, urgência da democracia.

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo principal compreender a metodologia, a linguagem e o momento trabalhados por trás do filme Educação (2017), de Cezar Migliorin e Isaac Pipano, que aborda o movimento das ocupações das escolas brasileiras pelos estudantes secundaristas e universitários em 2015 e 2016, que se mobilizaram em busca dos seus direitos de acesso ao espaço escolar. Para isso, será abordado o contexto histórico do cinema buscando elucidar o leitor sobre o surgimento da técnica do vídeo-ensaio empregada pelos autores, além de debater as possíveis pedagogias do cinema, com objetivo de compreender e assimilar com as do filme. Para contextualização da obra, analisarei o cenário histórico nacional que ocorre durante e após o golpe sofrido pela ex-presidenta Dilma Rousseff, um dos principais fatores que resultou nas políticas de sucateamento da educação brasileira. Ao final, realizarei uma análise fílmica com objetivo de entrelaçar e relacionar os assuntos abordados nesta monografia com a obra escolhida, buscando sempre debater a relação entre política e arte.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - A Chegada do Trem na Estação ... 14

Figura 2 - Viagem à Lua ... 15

Figura 3 - Fragmentos do filme Tio Yanco ... 19

Figura 4 - Fragmentos do filme O Demônio das Onze Horas ... 19

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 8

2 COMPREENDENDO A HISTÓRIA E A PEDAGOGIA QUE INFLUENCIOU O NASCIMENTO DO FILME EDUCAÇÃO... 11

2.1 DO SURGIMENTO DO CINEMA ATÉ A VIDEOARTE E O VIDEO-ENSAIO ... 13

2.2 PEDAGOGIAS DO CINEMA... 22

3 SOBRE OS ATAQUES À EDUCAÇÃO NO BRASIL APÓS O GOVERNO DILMA ROUSSEFF ... 28

4 ANÁLISE FÍLMICA ... 36

5 CONCLUSÃO ... 43

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva analisar a obra Educação, de 2017, do professor, pesquisador e doutor em cinema Cezar Migliorin (UFF, UFRJ, Sorbonne Nouvelle e University of Roehampton) e também do doutor em cinema Isaac Pipano (UFF e Sorbonne Nouvelle) – obra esta que se categoriza enquanto um vídeo ensaio experimental – e explicar a partir dela o que seria e como funciona o ensaio no cinema e o próprio cinema enquanto pedagogia político-social. Assim, nesse projeto de monografia, a esfera do audiovisual será relacionada com a área da educação brasileira para alavancar uma tentativa de debate acerca do potencial do cinema enquanto representante e fortalecedor da voz da democracia na união estudantil do país, dando também um enfoque específico para o cinema experimental de montagem (ou vídeo-ensaio), que se destaca aqui neste caso enquanto um nicho de estudos para os universitários documentaristas e ensaísticos em formação.

Para abrir a discussão a respeito dessa obra e suas implicações, é necessário anteriormente abrir espaço para falar das situações pertinentes que levaram à sua existência. Educação reúne e organiza de forma coesa uma coletânea de recortes de arquivos distintos originados das mais diversas fontes (noticiário, gravações amadoras de celular, propaganda, etc) que documentam e abordam um momento e um lugar específico no Brasil: a escola pública de 2016, também marcado e mais conhecido historicamente como a Primavera Secundarista. O filme, portanto, rememora as ações políticas que aterrorizaram os estudantes secundaristas e universitários tomadas desde o final de 2015 e que culminaram na ocupação das escolas para garantia dos direitos dos estudantes. Estas condutas políticas se iniciam na anunciação de projetos de terceirização para escolas estaduais, problemas com fraudes na merenda das escolas, o controverso projeto Escola sem Partido1, a PEC do Teto de Gastos2 e a proposta de Reforma

do Ensino Médio3 e se normalizam na sociedade brasileira através do constante noticiamento e

embelezamento bancados pela mídia televisiva.

1 Escola sem partido é um movimento da sociedade civil da asa direita que surge primeiramente em 2004, criado

pelo advogado Miguel Nagib, que considera discussões de gênero e debates sobre desigualdade social, racismo e direitos humanos como doutrinação ideológica. O movimento é considerado de extremo autoritarismo e conservadorismo, indo contra a liberdade de expressão e os direitos humanos, e é considerado um prejudicial à formação escolar em todos os níveis educacionais.

2 A PEC 241 (do teto de gastos) é uma medida criada para estabelecer um limite de gastos para o governo durante

20 anos a partir de 2017, congelando os gastos públicos para não excederem mais do que a inflação anual. A PEC afeta grandiosamente as áreas da educação e da saúde brasileira.

3 Foi uma lei sancionada em 2017 pelo então presidente Michel Temer que é criticada por precarizar o ensino

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A narrativa de Educação então logo se encontra como uma ferramenta de discurso político uma vez que traz à tona vozes de estudantes que lutaram a favor dos seus direitos de acesso à escola e uma montagem que traz incubada em si uma forte mensagem política. A montagem do filme portanto indica uma visita às primeiras memórias do surgimento da videoarte dos anos 60, uma estética que se lançou como forte subversão às autoridades televisivas e midiáticas mainstream4, e que se apresenta na América Latina principalmente

como forma de vídeo de militância e luta política.

Ademais, para relacionar a obra com o cinema, a videoarte e vídeo-ensaio, também é necessário abordar os porquês da discussão política trazida no filme em sua época e prossegui-la até o momento atual, e ainda compreender como a educação e a escoprossegui-la se entreprossegui-laçam com o cinema e como o cinema se apresenta necessário não apenas como uma forma de pedagogia na escola e no ambiente coletivo, mas como forma de documentação histórica e manifesto político-social que pode vir a ser usada de maneira educadora se inserido como tal ferramenta na sociedade. Para tal, será necessário abordar uma breve iniciação à história do cinema enquanto um objeto formador de opinião, e nisso tentar entender sua função através do tempo até os dias de hoje e como ele viria a se tornar também um porta voz da opinião social.

Após compreender os conceitos citados acima, pretende-se debater a experiência do diretor como montador e também a experiência do espectador enquanto montador crítico visando o entendimento específico da obra Educação, abrangendo, portanto, quais conhecimentos o levariam a atingir a capacidade de Decupagem e interpretação da imagem cinematográfica. O debate do que é montagem e como ela pode ser exercida logicamente não pode deixar de vir à tona quando o assunto é vídeo.

O primeiro capítulo dessa monografia, então, será dedicado inteiramente aos assuntos de cinema, elucidando o leitor sobre o surgimento da mídia audiovisual comercial até o momento em que a videoarte viria enquanto dispositivo de contraposição à mídia, e também debatendo acerca da forma como o cinema se posiciona através do tempo de forma educadora, de maneira a contextualizar o leitor e prepará-lo para o debate fílmico. No segundo capítulo, objetiva-se uma leitura de contextura histórica e política, que será pensada de forma a relembrar

Matérias como Filosofia e Sociologia foram tiradas da grade obrigatória. O objetivo final é de que o aluno de tenha ao seu dispor cinco itinerários formativos e possa escolher entre os que mais lhe interessam para compor sua grade curricular, porém grande parte das escolas públicas brasileiras – devido a sua precarização – possuem capacidade para fornecer ao estudante apenas um desses itinerários. Também foi proposto um aumento da carga horária escolar diária para aderir ao ensino integral, ideia que vai contra a plano vigente de escolas que possuem educação situada nos três turnos, sugerindo então que haja uma parceria com núcleos privados de educação para efetivar esta oferta.

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quando e como começaram os ataques à Educação no Brasil e a quantas andam atualmente, de maneira a justificar tanto um dos possíveis argumentos para a ascensão do movimento estudantil brasileiro quanto para explicar o surgimento de novas formas de arte como resistência política, especificamente no formato de audiovisual. Por fim, no terceiro e último capítulo será proposta uma análise do filme Educação a partir de sua decupagem, observando a linguagem utilizada pelos diretores-montadores e trazendo uma relação com os capítulos estudados anteriormente, de forma a tornar compreensível a importância da videoarte e do vídeo ensaio em contextos de tensão política e tentar validar e popularizar esta forma de expressão artística audiovisual para além da comunidade universitária.

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2 COMPREENDENDO A HISTÓRIA E A PEDAGOGIA QUE INFLUENCIOU O NASCIMENTO DO FILME EDUCAÇÃO

Educação conta a história da luta estudantil pela redemocratização do espaço escolar após tentativas governamentais de precarizar o sistema estudantil no Brasil com a adoção de leis que viriam de encontro às solicitações e necessidades dos estudantes. A trama na obra é desenvolvida de maneira a não apresentar nenhum personagem específico, e no meu entender trabalha na verdade a ideia da ocupação na escola ou a própria escola enquanto sujeito, visto que é o assunto principal tocado nos vídeos selecionados para o preparo dessa peça audiovisual. Para composição do material filmográfico são utilizados inúmeros recortes de arquivos provindos de diversas emissoras de televisão brasileiras, propagandas e imagens amadoras do youtube5 gravadas diretamente nos locais de ocupação – a estética do flagrante6

–, que se entrelaçam na trama de maneira a originar um pensamento político e criar uma mensagem de peso.

Ao assistir o filme Educação, o espectador se depara com um tipo diferente e não tão usual de audiovisual, que apresenta em sua forma uma maneira alternativa de montagem e de se contar uma história, utilizando de métodos não habitualmente encontrados no circuito comercial. Em sua visualidade, o filme enxerta vários momentos distintos e recria aquele que seria o significado inicial da imagem, portanto se apropriando daquilo que é proposto pelo arquivo original para transmitir uma história e uma visão particular acerca do tema em debate: as novas políticas na educação brasileira. Segundo Nadja de Carvalho Lamas (2005), o conceito de apropriação torna-se muito complexo pois possui diversas possibilidades de entrada, podendo manifestar-se através da “modificação, transformação, variação, hibridação, alteração, pelo desvio, pela transgressão, mutação, mestiçagem, dentre outras”. A autora completa:

A apropriação pode, também, ter um caráter subversivo, como se observa nas manifestações do dadaísmo, situando-se no “campo da ruptura, da fratura e da crítica”10 (BERTHET, 1998, p.8). Nessa dimensão a apropriação pode ser transgressora e paródica. Pode ser dessacralizadora, no sentido da retirada da aura, presente no pensamento de Walter Benjamin (apud LIMA, 1990, p.209-240). Pode

5 Website usado para armazenamento e compartilhamento público ou não de conteúdo audiovisual sem direito

autoral (www.youtube.com), podendo também ser utilizado como rede social.

6 Descrita no texto A gestão da autoria: anotações sobre ética, política e estética das imagens amadoras, de André

Brasil e Cezar Migliorin, essa estética diz respeito a imagens produzidas com aspecto “emergencial, eventual, próprio dos flagrantes”, e são comumente captadas naturalmente pelo sujeito anônimo e permanecem no meio também de forma anônima, engajando através do efeito real e da colaboração do espectador através do compartilhamento. Geralmente, este tipo de imagem é de difícil censura e culpabilidade e não necessariamente se encontram dentro dos domínios éticos. (BRASIL, MIGLIORIN, 2010/1).

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ser situacionista, no retorno ao passado, ou, ainda, simulacionista, pois em um universo de simulacros a autenticidade perde o significado. (LAMAS, p. 35)

É possível acrescentar ainda que os autores e montadores do filme não necessariamente se importam ou optam por manter uma ordem cronológica que seja cem por cento conforme a realidade, e inclusive utilizam de imagens anteriores ao evento das ocupações nas escolas – ocorridas entre 2015 e 2016 – para contextualizar, requintar e corromper as ideias trazidas pelos arquivos originais, que em maioria depreciavam a luta estudantil. Consuelo Lins (2010) em seu texto sobre Um dia na vida (2010), obra similar de Eduardo Coutinho que transmite 90 minutos de canais abertos da televisão brasileira, afirma que, se não fosse através do filme realizado, o espectador não teria esta experiência porque “em outras circunstâncias, ele talvez desviasse o olhar ou desligasse o aparelho de televisão”.

É importante identificar que os idealizadores da obra elegem a estética do não-uso da imagem cinematográfica e substituem-na pela imagem videográfica para composição das audiovisualidades, provocando uma grande inscrição autoral no produto final ao reproduzir por vezes imagens sobrescritas ou tangíveis de uma qualidade fragmentativa e figurativa (Machado, 1995), assim informando ao telespectador para que busque sozinho seus pontos de referência para entendimento da obra. Além da complexidade da imagem de videografia por si só, é necessário entender que apesar de ter sido usado o termo “montagem” (tanto por mim quanto pelos próprios autores nos créditos da obra) para denominação do processo de escolha e recorte das imagens de arquivos, na videografia este termo não consegue ser aplicado precisamente tal qual como no cinema, isso porque no vídeo não existe a noção própria de “plano” ou “take”7

para ocorrer a montagem, o que ocorre na verdade é meramente uma substituição de quadros – que não necessariamente possuem conexão de espaço, história e tempo entre uma imagem e outra.

O conceito do ensaio também pode ser utilizado para definir esteticamente essa obra, e, portanto, a definição correta para ela, segundo meu ponto de vista, seria a de um vídeo-ensaio. Segundo Machado (1995) e Dubois (2004), assim como o cinema, o ensaio é uma forma de se pensar e filosofar uma ideia, e por isso comumente o ensaio é tratado enquanto forma de escrita. Entretanto, a partir da intervenção do pensamento de Dubois, o ensaio pode passar a ser enunciado enquanto forma audiovisual, pois é passível da transmissão de ideias, pensamentos, conceitos subjetivos e grande eloquência, como pode ser visto em Educação. Segundo

7 Dubois afirma que o plano (ou take) é a unidade da base da linguagem cinematográfica, ou então a parte do filme

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Machado, é com o trabalho de Godard que o vídeo-ensaio chega à sua expressão máxima, e especificamente em sua obra Histoire(s) du Cinéma nasce um projeto de extensa pesquisa sobre o cinema e o vídeo-ensaio.

Na mesa de edição, Godard associa lembranças, amarra ideias, enfrenta suas obsessões, combina, dissocia, recombina materiais audiovisuais, na tentativa de fazer um balanço de sua paixão e de seu ódio pelo cinema. Nada que se possa resgatar ou entender verbalmente: é uma radical investida em direção a um pensamento audiovisual pleno, construído com imagens, sons e palavras que se combinam numa unidade indecomponível. (MACHADO, 2004, p. 20)

O resultado no filme Educação é, portanto, uma obra repleta de significados conquistados através de um longo exercício de montagem videográfica, obtendo através da ressignificação de imagens documentais formais e informais uma obra completa de finalidade e originalidade. Para melhor compreensão do surgimento da estética de vídeo e do ensaio no audiovisual que implicam uma forte influência na obra estudada, é necessário abordar desde o surgimento do cinema e da mídia – e como se deu a formação da televisão na sociedade – para então entender como a estética de vídeo viria numa tentativa de corromper os ideais mainstream que vinham se desenvolvendo com intuitos comerciais desde o início do século XX, e a partir daí entender como os cineastas da nova onda anti-cinema viriam a desenvolver os dispositivos da linguagem de ensaio audiovisual. Este assunto será abordado no subcapítulo a seguir com intenção de situar o leitor e adiante será retomado o debate sobre o filme de Migliorin e Pipano com o objetivo de discutir adiante também a potência política da obra considerando o cinema enquanto pedagogia psicossocial.

2.1 DO SURGIMENTO DO CINEMA ATÉ A VIDEOARTE E O VIDEO-ENSAIO

A história do cinema começa em 1895, na cidade de Paris, na França. Os primeiros registros apresentados pelos irmãos Lumière, inventores do Cinematógrafo, se caracterizavam como imagens das vivências da época de maneira documental, englobando em sua maioria situações cotidianas, paisagens e hábitos populacionais, como uma maneira de experimentar a descoberta da fotografia em movimento. L'Arrivée d'un train en gare de La Ciotat, ou ainda, A

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chegada do trem na estação é talvez o mais conhecido filme trazido pelos irmãos do cinema, e segue essa temática da exploração dessa nova técnica descoberta, trazendo na gravação uma imagem que chocaria todos os franceses presentes naquela primeira e improvisada sala de filmes: aproximadamente 60 segundos de um trem parando em uma estação. O ângulo em que a imagem fora gravada permitia uma leve impressão de que o trem atravessaria o quadro na quarta parede e estacionaria onde estava a sala de cinema, portanto é claro que a reação do público fora extremamente excêntrica mediante essa nova situação jamais antes vista, já que a sensação certamente era de que estavam olhando para a realidade como quem observa uma janela. No início do século seguinte, em 1902, já logo surge também outro grande e conhecido exemplo de obra filmográfica de ficção, Le Voyage dans la Lune (Viagem à lua) de Méliès, este que por sua vez também trazia em si o início das técnicas de montagem cinematográfica criadas por ele mesmo, que ocorria neste momento na forma de recorte e colagem e sobreposição das películas gravadas.

Encantado, Méliès aplicou a nova descoberta em todos os filmes que fez dali pra frente. [...] Os truques, realizados durante as filmagens, eram montados depois, através de cortes e colagens no negativo. Artesão, artista e criador, George Méliès escrevia, filmava, dirigia, editava e distribuía seus filmes, que eram exibidos em dezenas de países. (DUARTE, 2002, p.26).

Figura 1 - A Chegada do Trem na Estação

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Figura 2 - Viagem à Lua

Fonte: Viagem à Lua. Georges Méliès. Local: Paris, 1902. 18 min.

Segundo Duarte (2002, p.17), essa forma de demonstração artística não se demorou a se popularizar, visto a febre que havia se tornado ao estrear com o público francês que logo começaria a lotar as pequenas sessões de cinema no Gran Café em Paris, entretanto não foi até o ano de 1915 que foi finalmente reconhecida enquanto arte – mais especificamente, a sétima arte – ao ser reivindicada em escrito por Lindsay, numa tentativa de convencer os EUA a providenciar prestígios culturais a esta da mesma forma como providenciava aos outros formatos de arte. Já em meados dos anos 20 surge na Alemanha o fruto desse reconhecimento, que seria o movimento artístico chamado Expressionismo alemão, que chegou ao cinema com os clássicos filmes de Fritz Lang, usando uma forma completamente artística e subjetiva de se pensar o audiovisual. Logo mais, esta forma subjetiva de se pensar cinema se moldaria também aos olhares Surrealistas do espanhol Buñuel.

Mais tarde no século XX, com a amplificação das técnicas de reprodutibilidade (Benjamin, 1935) para o âmbito televisivo e a partir do surgimento do cinema-indústria nos Estados Unidos da América, o audiovisual passa a ser uma ferramenta largamente popularizada e a partir disso emerge-se, então, uma potência mais transitável de manipulação da população. A mídia televisiva é aprimorada finalmente por volta dos anos 30, e a partir daí os televisores começam a se difundir dentre a alta sociedade, abrangendo agora telas em todos os lugares e momentos. Dubois faz uma interessante análise sobre a imediatidade da TV ao compará-la com a sala de projeção e afirma que “a imagem-tela ao vivo da televisão, que não tem mais nada de

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souvenir (pois não tem passado), agora viaja, circula, se propaga, sempre no presente, onde quer que seja” (2004, p.46).

É importante ressaltar que o cinema desde seu nascimento sempre foi uma ferramenta de educação, seja por conta da própria documentação histórica ou da transmissão da informação, mas não foi até a segunda guerra mundial que foi realmente perceptível o poder de manipulação nele presente, com o surgimento da grandiosíssima influência da propaganda nazista. A primeira transmissão televisiva, inclusive, fora durante as olimpíadas de 1935 na Alemanha, sendo considerada a primeira transmissão oficial de sinal de TV, no mesmo ano que sairia também o infame documentário de Leni Riefenstahl conhecido mundialmente como a maior e mais sedutora propaganda nazista (Nichols, 2010, p.35).

A Segunda Guerra Mundial foi um dos maiores acontecimentos para a influência do surgimento de novas formas de arte audiovisual, provando assim mais uma vez a maneira como a arte se faz surgir dos mais soturnos momentos. Dubois inclusive chegara a comentar sobre, estabelecendo uma suposta expansão da televisão pós-Segunda Guerra (2004, p.34). Com a chegada dos anos 40 vieram os filmes italianos do Neorrealismo, conduzidos majoritariamente por jovens em busca da retratação daquilo que seria a bruta realidade dos conflitos da guerra e como eles afetavam as regiões envolvidas. Segundo Duarte (2002, p.30), essa vanguarda foi essencial para o surgimento da cinematografia em países pobres e subdesenvolvidos por conta da escassez de recursos técnicos e orçamento. Nichols (2010) considera nesse núcleo uma linha tênue entre o filme de ficção e o documentário, pois para sua produção é associada uma verdade – ou uma realidade, por assim dizer – à uma trama, criando assim uma perspectiva sobre o mundo enquanto uma esfera que é compartilhada socialmente.

Similar ao Neorrealismo, porém ao mesmo tempo tenuamente diferente, já estava se moldando desde o início do século XX na cabeça do cineasta russo Dziga Vertov o que viria a ser a teoria do Kino Pravda8 amplamente difundida a partir dos anos 50. Apesar de Vertov

ser um cineasta ativo desde o final do século 10, julgo como importante adicioná-lo a este momento da linha do tempo porque seus trabalhos estarão diretamente ligados com o surgimento do movimento a seguir.

Vertov (apud Nichols, 2010) declarava guerra direta ao filme roteirizado e ao platô, almejando captar apenas e unicamente aquilo que fora o mais cru da realidade, sem a menor intenção de embelezamento, somente aquilo que viria diretamente do olho da câmera. Seria, portanto, a maneira mais verdadeira de documentário existente até então, que buscava em si a

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emancipação completa da câmera filmográfica dos “venenos teatrais”. Esse método passou a ser estudado e aprimorado também pelo francês Jean Rouch, que foi um dos precursores do uso do recém-criado aparelho de som direto (NAGRA) no cinema do final dos anos 20, importantíssimo para o cinema direto, que captava simultaneamente pela primeira vez o áudio juntamente com o vídeo em uma gravação. As teorias de documentário de Vertov e Rouch circularam amplamente na comunidade cinematográfica durante os anos 50 e 60 logo anteriormente ao nascimento da Nouvelle Vague, sendo renomeadas por Rouch como Cinema Verité9. Rouch idealizou que no Cinema Verdade haveria a possibilidade da interação do

cineasta com o universo do documentário, visto que também é parte dele, admitindo então que os equipamentos de gravação e a equipe aparecessem em filme. Ele também foi o idealizador da entrevista em documentário, dando a liberdade de interação entre o público não-ator com a câmera de forma a transmitir o pensamento e o discurso da “pessoa comum” e valorizando-o enquanto uma perspectiva válida historicamente, socialmente e etnograficamente.

Para Timothy Corrigan (2015), o trabalho de Dziga Vertov, Um homem com uma câmera, de 1929, foi o prelúdio a um cinema experimental ensaístico antes mesmo da elaboração desse conceito no espectro audiovisual e anterior ainda ao surgimento de Godard na Nouvelle Vague. Segundo o autor, “os sinais preliminares do ensaístico no filme de Vertov são evidentes no anúncio na abertura do filme, de que ele é ‘um excerto do diário de um cinegrafista’ e na descrição de Vertov de seu papel no filme como um ‘supervisor do experimento’”. Ele completa “em parte, o filme é um documentário de uma cidade composta na Rússia (com filmagens em Moscou, Kiev, Odessa) e, em parte, é uma celebração reflexiva do poder da visão cinematográfica”.

Simultaneamente a Vertov, existia também na Rússia o cineasta e filmólogo Serguei Eisenstein, que foi considerado o “mago da montagem” (DUARTE, 2002, p. 29) a partir de suas técnicas inovadoras e intelectuais empregadas no filme O encouraçado Potemkin (1925). Para Nichols (2010), a teoria de Eisenstein provocava o espectador a fazer novas descobertas através de planos com justaposições e fragmentos provocantes para a época. Foi Eisenstein também que formulou ao final dos anos 20 a teoria do “Cinema Conceitual”, ou Cinema Intelectual (MACHADO, 2015, p. 17), cujos princípios articulam claramente “as possibilidades de um cinema ensaístico” (CORRIGAN, 2015, p. 58) e que fora radicalmente apropriada e executada por Vertov.

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Segundo Machado (2003), a teoria de Einsenstein se inspira no processo de escrita oriental, como o Kanji japonês, que trabalha com o emprego conceitos emocionais ou pictóricos para a elaboração de palavras. O autor completa:

A montagem conceitual por ele concebida é uma forma de enunciado audiovisual que, partindo do “primitivo” pensamento por imagens, consegue articular conceitos com base no puro jogo poético das metáforas e das metonímias. Nela, juntam-se duas ou mais imagens para sugerir uma nova relação não presente nos elementos isolados. Assim, através de processos de associação, chega-se ao conceito abstrato e “invisível”, sem perder todavia o caráter sensível dos seus elementos constitutivos. Inspirado nos ideogramas, Eisenstein acreditava na possibilidade de se elaborar, também no cinema, ideias complexas por intermédio apenas de imagens e sons, sem passar necessariamente pela narração (MACHADO, 2003, p.8).

Tanto a estética do Cinema Verdade de Vertov e Rouch e a teoria do Cinema Conceitual de Eisenstein influenciaram grandemente o movimento da Nouvelle Vague que viria aparecer na França no fim dos anos 50, que é considerada por muitos a vanguarda que mais influiu na maneira de se ver e produzir filmes ficcionais no século XX (Duarte, 2002, p. 31). Nesse movimento, os autores rejeitam a estética de estúdio e optam pelas gravações em lugares reais, como no Cinema Verdade, porém sempre focando em dilemas que acometem os personagens fictícios de forma psicológica e existencial.

Diferentemente do neo-realismo, a nouvelle vague volta-se pouco para a situação social francesa, ignora que a França está mergulhada numa guerra colonial contra a Argélia e interessa-se pelas questões existenciais de seus personagens. A grande maioria destes filmes foram eliminados pelos circuitos comerciais. Poucos diretores sobraram; entre os mais conhecidos, Resnais, Rohmer ou Godard manterão uma constante linha de questionamento, enquanto outros como Chabrol e Truffaut darão continuidade ao "cinema de qualidade", ao qual se tinham oposto. (BERNARDET, 2000, p.51)

A Nouvelle Vague foi a precursora para o surgimento de vários autores que viriam a se tornar de suma importância para a ascensão do filme-ensaio e do vídeo-ensaio, como Agnes Varda e Jean-Luc Godard, o último sendo considerado o ápice da expressão do ensaio no cinema de acordo com Arlindo Machado. Desde os primeiros filmes de Varda e Godard, se é falado que o experimentalismo na forma do audiovisual dos diretores se destacou imensamente até mesmo ao questionar o cinema dentro do movimento da Nouvelle Vague mesmo que através de meios “estritamente cinematográficos” (DUBOIS, 2004, p. 289).

Com o passar dos anos, ambos diretores seguiriam caminhos extremamente similares para o que seria o novo contra-cinema, Varda especificamente se ramificando com temáticas femininas e feministas para aquele que seria chamado de contra-cinema de mulheres dos anos 70. Não por acaso, ambos os diretores se consideravam cinescritores e trabalhavam

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com a técnica da captação de palavras pelas câmeras para compor uma trama enigmática, “em que o cinema é concebido como texto, como narrativa que traça suas próprias impressões” (KIERNIEW; MOSCHEN, 2017, p. 51).

Figura 3 - Fragmentos do filme Tio Yanco

Fonte: TIO Yanco. Direção de Agnès Varda. França: Ciné-Tamaris, 1967. 18 min.

Figura 4 - Fragmentos do filme O Demônio das Onze Horas

Fonte: O demônio das onze horas. Direção de Jean-Luc Godard. França: Films Georges de Beauregard, 1965. 110 min.

Ambos autores também se especializavam naquele que na época denominavam o Cinema de Ideias (CORRIGAN, 2015, p.72), termo que provinha da ideia de Cinema Conceitual de Eisenstein. Para Arlindo Machado, em sua apresentação para Cinema, vídeo, Godard (2011, p. 17), estes cineastas “introduziram o pensamento no cinema, ou seja, eles fizeram o cinema pensar com a mesma eloquência com que, em outros tempos, os filósofos o fizeram utilizando a escrita verbal”. Segundo Corrigan (2015), o Godard dos anos 60 já se autodenominava um “improvisador experimental”, e Varda aproveitava desde sua primeira obra para mapear e ampliar os limites daquilo que seria o ensaio no cinema.

Portanto, o que seria então o filme-ensaio que vinha se desenvolvendo desde meados dos anos 20 e que ganhou força e visibilidade após a Nouvelle Vague? Para a literatura, o ensaio é uma modalidade de escrita que carrega em si um discurso “científico ou filosófico”, que possui como atributos como “a subjetividade de enfoque (explicitação do sujeito que fala), a eloquência da linguagem (preocupação com a expressividade do texto) e a liberdade do

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pensamento (concepção de escritura como criação, em vez de simples comunicação de ideias)” (MACHADO, 2004, p.17).

É justamente essa carga de intelectualidade que configura o ensaio, também por isso que inicialmente se denominava Cinema de Ideias. Para Machado, no filme-ensaio:

Pouco importa se a imagem com que ele [o autor] trabalha é captada diretamente do mundo visível ‘natural’ ou é simulada com atores e cenários artificiais, se ela foi produzida pelo próprio cineasta ou foi simplesmente apropriada por ele, depois de haver sido criada em outros contextos e para outras finalidades, se ela é apresentada tal e qual a câmera a captou com seus recursos técnicos ou foi imensamente processada no momento posterior à captação através de recursos eletrônicos. A única coisa que realmente importa é o que o cineasta faz com esses materiais, como constrói com eles uma reflexão densa sobre o mundo, como transforma todos esses materiais brutos e inertes em experiência de vida e pensamento (MACHADO, 2003, p.10).

Em suma, o que realmente importa no ensaio é a capacidade da obra de atingir o espectador de uma maneira sensível, mesmo que para isso se utilize recursos cinematográficos como a apropriação e a edição de imagens ou de sons, aspectos estes que configuram uma fuga do tradicionalismo estético do cinema – o experimentalismo. A matéria sensível do ensaio é extremamente particular, sendo apenas possível através de tamanha tessitura de conceitos audiovisuais similares aos mais formidáveis textos literários. Por conta disso, o ensaio trabalha muito facilmente com a transmissão de sensações e experiências aos espectadores. O objetivo é que de fato seja uma obra “inapreensível pelas categorias genéricas” (BRASIL, 2006) do cinema, e por isso se encaixa apenas naquilo que é e pode vir a ser o ensaio.

No audiovisual, o ensaio pode se tornar real tanto através de filmes quanto de vídeos. É importante situar essa diferença, pois apenas na metade dos anos 50 que ocorre mundialmente o surgimento do videoteipe, e nos anos 70 do videocassete (MACHADO, 1988) originando a partir daí a estética do vídeo que levaria também ao surgimento do movimento da Videoarte nos anos 60.

O vídeo no seu nascimento tem como modo estético uma apresentação completamente diferente do filme, já que sua reprodução é completamente dependente dos sistemas eletrônicos de transmissão de imagem. A televisão primordialmente era operada com sistemas de emissores radiofônicos, que captavam e espalhavam imagens através de receptores com antenas e o broadcasting para a televisão se concluía em uma reprodução massificada, onde o aparelho televisivo desenhava uma imagem em constante movimento a partir duma escrita sequencial “píxel após píxel, linha após linha” (MACHADO, 1988, p. 164) na tela da televisão, enquanto o filme desde o princípio – e até atualmente - funcionava através de frames, sendo eles em película ou digitais. Ideologicamente, o vídeo televisivo possuía também o diferencial

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de que sua criação teoricamente fora idealizada visando um enriquecimento cultural democrático para as massas, já que a proposta era que de a televisão fosse um objeto presente na vida de todos.

O movimento da Videoarte surgiu oficialmente nos anos 60, mas perdurou fortemente até os anos 90, e, apesar de terem surgido novas tecnologias de vídeo a partir dos anos 2000, a estética é fortemente – apreciada e – utilizada até hoje através de meios simulados (com a tecnologia) ou antiquados (fazendo uso de dispositivos antigos). A vanguarda surgiu como um contra movimento à televisão de massas, promovendo formas artísticas que se antepusessem à mídia mainstream, porém ainda assim apoderando-se da estética concebida pela televisão. Para Machado (2010), o vídeo fez um trajeto mais demorado para alcançar a América Latina, se alocando com diferentes velocidades em cada país, mas tendo registros mais frequentes principalmente entre os anos 80 e 90. Machado (2010) alega que isso ocorre devido aos períodos ditatoriais latinos, que causaram extrema escassez de recursos cinematográficos e decadência, porém surge aí uma grande fonte de material político de qualidade experimental e periférica, revelando as raízes do subdesenvolvimento e da vida na ditadura na América Latina.

Entre os anos 60 e 70, se configura também no Brasil o período do Cinema novo e do Cinema Marginal, ambos movimentos também caracterizados por retratar fortemente as problemáticas trazidas pela ditadura no país adotando uma estética de câmera na mão e enorme deficiência em recursos. De acordo com Ismail Xavier (2001, apud Duarte, 2002, p. 35) este seria para o Brasil o “período estética e intelectualmente mais denso” do cinema nacional. Os movimentos do Cinema Novo e Cinema Marginal vieram a originar em São Paulo, na região do bairro da Luz, um centro denominado Boca do Lixo, que surgiu após a instalação de empresas cinematográficas nas proximidades, dando origem então àquele que seria o maior polo de cinema independente do Brasil na época.

Não ao acaso que chegaria durante os anos 80 também em São Paulo um dos maiores festivais experimentais do país, que permanece até a atualidade, o Festival Videobrasil (ALMEIDA, 2017). Com o país estrondando em um surto artístico e político é que surge o primeiro festival inteiramente dedicado ao estímulo da produção artística utilizando uma linguagem ainda em desbravamento, festival este que se tornou futuramente um objeto de referência mundial.

Esse panorama histórico, por fim, esclarece claramente o quanto um período afetou o outro na história do cinema. Se não fosse pelo surgimento da mídia televisiva – que apenas se deu por conta da parafernália do cinema – seria impossível chegar a um ponto onde a arte se fizesse necessária para contrapô-la. A estética do ensaio, entretanto, acredito que apenas tenha

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vindo como uma fusão de várias ideias de locais distintos que ocorreram devido à imensa curiosidade artística do ser humano, elaborando, portanto, uma linguagem refinada e lapidada capaz de abrigar fortes e sensíveis posicionamentos. Adiante, será abordado as metodologias capazes de tornar o audiovisual uma ferramenta educadora, de maneira a tornar entendível o porquê da real necessidade de um cinema capaz de fazer pensar.

2.2 PEDAGOGIAS DO CINEMA

Ao abranger o assunto do cinema enquanto pedagogia, precisamos entender como e quando o processo cinematográfico se torna um modo de educação. O fazer do audiovisual nada mais é do que uma evolução da metodologia criativa do ser diante da sua visão da realidade, seja ela inventada ou não, que se desenvolve através do uso de ferramentas modernas – como as de captação e reprodução da arte audiovisual.

Já entendemos que o cinema é por certo uma maneira de procedimento artístico que urge em seu ápice uma mensagem política, mas o que de fato pode-se tirar de uma experiência audiovisual – seja ela simples ou complexa? Como é feita a garantia da passagem da mensagem do autor ao telespectador? Será que verdadeiramente existe um momento de percepção total da obra? E como pode-se ensinar com a metodologia audiovisual?

Primeiramente, o entendimento audiovisual, conforme Duarte (2002) apud Pierre Bordieu (1979), depende completamente do que Bordieu chama de “competência para ver”, algo que poderia ser traduzido como a capacidade de compreensão intelectual e artística adquirida individualmente através da trajetória de vida do sujeito social, ou seja, a obra se torna acessível, ou ainda, legível, àqueles que dominam a capacidade de compreensão que ela requer. Bordieu (1996) ainda ousa em falar que a arte de vanguarda e o cinema, se não fossem pela contribuição do público intelectual, estudantil e/ou aspirante a artista, provavelmente não existiria. A razão é de que a socialização destes indivíduos, que seriam culturalmente mais engajados que os demais, atua na formação do domínio de diferentes linguagens artísticas. Duarte (2002, p.14) complementa “não é por acaso que as pesquisas de mercado indicam que 79% do público de cinema no Brasil é constituído por estudantes universitários: oriundos, em sua maioria, de camadas médias e altas da sociedade”. Nesse

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contexto, logicamente o fator socioeconômico contribuiria não apenas para quem seria o artista criador, mas também para quem será o consumidor da arte.

Claramente, na conjunção política que vivemos hoje no Brasil, temos sim uma divergência entre o acesso à arte em diferentes classes sociais principalmente tendo em mente a precariedade da educação diante do avanço do sucateamento da educação pública. Entretanto, qualquer forma de acesso e trabalho com audiovisual pode se tornar uma ferramenta pedagógica com intuitos educacionais e culturais. Segundo Duarte (2002), na educação brasileira ainda é difícil entender e reconhecer o audiovisual como um recurso educacional sem colocá-lo em segundo plano, ao mesmo tempo que livros são assumidos como autoridades fundamentais da educação.

Para Anita Leandro (2001), por mais que o audiovisual esteja presente em sociedade tal qual como – ou de maneira similar – a literatura, na educação constantemente faz-se um uso equivocado do seu dispositivo artístico. A apropriação da imagem em movimento como um estimulador artístico e cultural acaba sendo deixada de lado, “tendo participação secundária”, e é substituída e tratada como uma mera ferramenta de complementação de assuntos científicos classificados como os mais importantes temas pedagógicos – como por exemplo o uso constante de projeção nas escolas dos filmes educadores criados para explicar matérias como biologia, história e geografia.

A escola se apropria da imagem em movimento não como quem se aproxima de uma arte, a cinematografia, capaz, por si só, de pensar novas relações de espaço e de tempo, por exemplo, mas como quem busca um aditivo tecnológico para incrementar processos educativos em andamento, desencadeados por ciências já consolidadas (LEANDRO, 2001, p.29).

Leandro também aborda a problemática da imagem pedagógica como frequentemente sendo demasiadamente industrializada, submetendo-se a processos que reduzem algumas partes importantes para o aprendizado do espectador. A crítica aqui vai especificamente à cortes excessivamente rápidos e às narrações intermináveis, que trocam as importantes pausas para reflexão e crítica do espectador por demonstrações indevidas de técnicas cinematográficas, tornando assim o filme uma mera ilustração incapaz de fazer pensar. Esta também é uma crítica trazida pelo psicólogo, epistemólogo e educador, Jean Piaget (apud Leandro, p.31. 2001), que afirma que a inteligência humana vai além de meras “representações imagéticas falantes”. Entretanto, Leandro afirma que há sim a possibilidade do filme se tornar um objeto, ou melhor, uma imagem pedagógica, e isto se daria apenas através da utilização de

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uma linguagem pensante, obtida apenas ao discernirmos totalmente qual o verdadeiro alcance do audiovisual.

O trabalho do filme, o filme como local de trabalho, local de realização do ato criador do homem e, portanto, de transformação do mundo: essa parece ser a pedagogia essencial da imagem. A imagem pensa e faz pensar, e é nesse sentido que ela contém uma pedagogia intrínseca (LEANDRO, 2001, p. 31)

Já em contrapartida à hipótese um tanto classista de Bordieu, Piaget (citado por De La Taille, 2019) confecciona na sua teoria um ideal de educação totalmente democrático e não-hierarquizado – no caso se tratando especificamente do ensino em nível escolar, o mesmo nível abordado pela obra Educação estudada em questão nessa monografia. O grau educacional e socioeconômico pouco importa para o teórico quando há disponibilidade de diferentes elementos sujeitos a trocas de valores com os estudantes, cujas interpretações diferem de aluno a aluno, porém não limitam o estudante como um ser passivo em sua educação. Da mesma maneira, Migliorin e Pipano (2019) exemplificam o cinema como um atuante estético e político nas escolas, passível de intensas e diversificadas interpretações que não se adequam especificamente a nenhuma hierarquia de conhecimento. A igualdade entre alunos e mestres, entretanto, não é um princípio do desaparecimento do professor como orientador, e sim uma “igualdade produtiva, fruto da produção do coletivo que não existe sem o trabalho e a igualdade de inteligências – a possibilidade de um sujeito qualquer fazer parte e diferença na criação” (MIGLIORIN e PIPANO, 2019, p. 71).

Portanto, segundo Migliorin e Pipano, o cinema na educação exerce um papel totalmente democrático na sua maneira de se fazer interpretar pelo seu espectador infantil. Segundo os autores, “para a criança não há filme difícil” (2019, p. 39), visto a infinidade de possibilidades que provém da imaginação e da intepretação de diferentes signos. O pensamento Piagetiano aplicado em uma análise paralela com Migliorin e Pipano defende que crianças empregam diferentes definições para os mesmos conceitos, e não procuram avaliar essa diferença entre si. Cada um segue suas próprias regras, inclusive no interpretar e no fazer da arte. É nesse sentido que se faz necessário com urgência o cinema enquanto arte na educação, pois sua forma inclusiva, democrática e acessível se rende às necessidades infantis com tranquilidade.

Na análise da pedagogia da montagem, Anita Leandro (2001) revela que o cinema da didática revolucionária possui uma linguagem intensamente intelectual e estética – a linguagem sendo concebida pelo diretor, e a estética pelo cameramen –, que visa atribuir um discurso no interior da obra, e não apenas no exterior. Segundo a autora, no Brasil temos como

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um grande exemplo o cineasta Gláuber Rocha, que, segundo ele mesmo (apud Leandro, 2001, p. 32) possui como objetivo principal em sua obra “alfabetizar, informar, educar, conscientizar as massas ignorantes, as classes médias alienadas”. Conforme Leandro, as escolhas feitas nos cortes audiovisuais do que mostrar, quando mostrar, e onde mostrar, todas remetem à uma ética a qual o autor busca compartilhar.

A ideia de como revelar o mundo ao espectador através da montagem se inicia justamente com a teoria da montagem intelectual de Eisenstein comentada no capítulo anterior. Segundo Marie-Claire Ropars-Wuilleumier (apud Migliorin e Barroso, 2019, p.92), a pedagogia de Eisenstein coloca o espectador “em um lugar de criação onde sua personalidade, longe de estar a serviço da personalidade do autor, floresce se misturando com a ideia do autor”. Migliorin completa “nesses casos, a montagem dialética demandaria um engajamento do espectador, mantendo-o, entretanto, alienado”. Ambos autores chegam à essa conclusão porque, assim como Anita Leandro, concordam que nesse caso o cinema cria e transmite pontos de vista que forçam o espectador para dentro das percepções do filme através de uma construção de um mapa ou de um caminho mental.

Para o cineasta Dziga Vertov, a montagem intelectual significava também expor o espectador à uma possibilidade de compreensão da imagem além da tela, de maneira a estabelecer um diálogo entre possível mentor e aprendiz. De acordo com Faucon (apud Migliorin e Barroso, 2019, p. 93) ao possuir essa qualidade “formadora”, o cinema de Vertov permitiria ao espectador não apenas a aplicação do método cinematográfico, mas como também a tomada da consciência dos mecanismos e dispositivos do cinema.

Se para Eisenstein a participação do espectador se dá através de um intricado jogo ou caminho mental, para Vertov, podemos dizer, a percepção da montagem repousa na distinção entre ver e olhar o intervalo entre as imagens. Vertov escreve: “A montagem é o resumo das observações feitas pelo olho humano sobre o assunto tratado (montagem das próprias observações, ou melhor, montagem das informações fornecidas pelos cine-exploradores) (...) Como resultado final de todas essas junções, deslocamentos, cortes, obtemos uma espécie de fórmula visual. [...] É então fundamental entender que o espectador é mobilizado não penas pelo movimento do seu olhar, mas também pelo deslocamento do seu próprio corpo ou ainda pela sua vivência do movimento (MIGLIORIN e BARROSO, 2019, p. 93).

Já na montagem experimental de Godard, que, segundo Anita Leandro (2013), é também um historiador cinematográfico de montagem, o diretor utiliza uma metodologia pedagógica completamente exploradora, que, de acordo com Migliorin e Barroso (2019, p. 96) é também “um método de investigação e produção de conhecimento”.

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Nas suas obras mais fragmentadas e experimentais, como Histoire(s) du Cinéma, a intenção é relembrar e ensinar, através de um labirinto histórico, a pesquisa de Godard acerca do próprio universo do cinema. O autor propõe ao espectador um grande leque de opções de montagem, que revelam ao espectador não apenas as histórias do passado, mas também “as possibilidades do futuro” (LEANDRO, p.110, 2013).

Para Ronaldo de Noronha (2013), o diretor até mesmo em suas obras de ficção adota uma maneira muito documental de realizar o cinema, tentando reproduzir a realidade como ela é ao espectador. Segundo Daney (apud Noronha, 2013, p. 35), esse método é utilizado para evitar a descrença do espectador perante a obra, formulando, portanto, uma realidade indubitável, que rompe com os padrões do cinema para justamente através desta ruptura causar uma impressão de seus personagens – ou do seu objetivo – no espectador, envolvendo-o na busca do entendimento daquilo que é proposto.

Por vezes, o discurso godardiano afirma que essa fecundidade “chega” e o cineasta é capaz de anunciar que encontrou algo: Eureka! Mas, de um modo geral, como bem explica Didi-Huberman, é a montagem que introduzirá hesitações, aproximações dialéticas ou paralogismos que devolverão seu cinema à busca e à investigação. [...] O traço comum que destacamos pode ser posto a partir da colocação de Serge Danley sobre o cinema de Gordard: “O cinema de Godard é uma dolorosa meditação sobre o tema da restituição, ou melhor, da reparação. Reparar é entregar as imagens e os sons àqueles dos quais elas foram extraídas”. O cinema, assim como a educação, funciona devolvendo algo do sujeito ao mundo, inventando um receptor para essa devolução. Uma devolução que não é da coisa em si, mas da coisa atravessada por uma mediação estético-política. É nessa mediação que a montagem torna-se uma pedagogia (MIGLIORIN e BARROSO, 2019, p. 97).

Pode-se dizer também que o audiovisual, independente do diretor, possuí uma pedagogia do sensível, conceito teorizado pelo filósofo Rancière. A veracidade da sensibilidade na arte cinematográfica inclui na educação e na socialização do ser uma formação pessoal inerente, na medida que a arte propõe novas experiências e valores para a compreensão de cada indivíduo. Mário Alves Coutinho (2013, p. 19) já dizia que a verdadeira obra de arte não se propõe em ensinar nada, apenas em apresentar uma diversidade de experiências sensíveis. Segundo o autor, o artista, antes de propor uma interpretação consciente, trabalha com o inconsciente: da maneira que o espectador pode não compreender a teoria conceitual da obra, ele consegue sentir.

O filme, enquanto um objeto estético sensível, consegue, portanto, transformar a habitual maneira do saber para um processo político e emocional. A partilha do sensível através da arte possibilita na educação novas formas de pedagogias, que ocorrem através do sentir.

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Porém, na educação, o cinema pode ser possível não apenas como sentir, mas como fazer. O fazer audiovisual remete ao sujeito pedagógico um experimentalismo que põe em xeque sua criatividade através do forjamento e da manipulação de possibilidades de visões de mundo. A investigação das imagens pelo estudante provoca um aprendizado metalinguístico sobre a própria criação audiovisual em si, proporcionando um exercício Godardiano sobre o cinema – questionando o quê e como se faz. O aprendizado se dá justamente nas dúvidas e nas incertezas, na tentativa e na subversão.

Em suma, a pedagogia audiovisual entrega ao estudante e cineasta a possibilidade de novas descobertas. Não seria então sem a descoberta e o experimentalismo que surgiria a linguagem do ensaio no cinema, que se explora e se desdobra em uma forma extremamente política de se expressar o mundo pela arte. Para compreender um pouco mais porque se faz necessário na conjuntura brasileira atual a representação da arte política, é necessário efetuar uma avaliação dos processos governamentais que vêm ocorrendo no Brasil.

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3 SOBRE OS ATAQUES À EDUCAÇÃO NO BRASIL APÓS O GOVERNO DILMA ROUSSEFF

Enquanto estudante, venho acompanhando, desde que atingi a idade eleitoral e entrei na universidade, as movimentações políticas que ocorreram no Brasil, com destaque especialmente ao período que precedeu o golpe da ex-presidenta Dilma Rousseff – até os dias atuais. Em 2016, culminou no país juntamente com a luta contra o governo golpista e os governos estaduais a chamada Primavera Secundarista10, um movimento estudantil com

características horizontais e de autogestão, totalmente independente mas apoiado por entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e União Brasileira dos Estudantes e Secundaristas (UBES), que se espalhava pouco a pouco por todo o território nacional contra a precarização e o sucateamento da educação pública e a corrupção no governo brasileiro (PIOLLI; PEREIRA; MESKO, p. 24, 2016).

Apesar do vice-presidente de Dilma, Michel Temer, ter assumido o cargo efetivo de presidente apenas em agosto de 2016, o golpe presidencial – ou para alguns, o impeachment – de Rousseff já vinha se concretizando desde o fim de 2015 e era apoiado por diversos deputados, senadores e governadores pelo país. No momento de posse, o governo do ex-presidente Temer então se formalizou como o mais conservador desde a redemocratização do Brasil pós-ditadura militar até então.

Figura 5 - Gráfico de votações dos deputados retirado do site G1

Fonte: G1, 02/08/2017.

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As primeiras medidas estaduais contra a educação foram tomadas no estado de Goiás, por Marconi Perillo, numa tentativa de decretar a terceirização de escolas do governo do estado. O movimento se estendeu para São Paulo após os escândalos da merenda no governo Alckmin, e tomou conta quando o governador anunciou corte de 78% dos investimentos nas Escolas Técnicas do estado e arrocho salarial para os professores, preparando as escolas estaduais para um movimento de privatização do ensino médio que impactaria os estudos de mais de 310 mil alunos (CATINI; MELLO, 2016). As medidas provocaram então o início de uma série de manifestações sociais nas ruas e o que viria a se tornar a maior ocupação estudantil nas escolas do Brasil. Logo em seguida, mais crises governamentais surgiram no Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul, e em pouco tempo o país inteiro sentiria a revolta e a crise política na educação.

No final de 2015, inspirados no modelo americano, os parceiros do Programa Compromisso SP, atuaram na proposição do projeto de Reorganização das Escolas que previa o fechamento de 92 escolas e a reorganização para segmento único de mais 754 escolas. Apesar da justificativa pedagógica por parte da Secretaria da Educação de que escolas menores produzem melhores resultados e de que a reorganização se fazia necessária em razão das mudanças na pirâmide etária da população em idade escolar. Como já apontamos, o projeto tinha um claro caráter gerencial que foi ocultado na sua proposição original. [...]

O Plano de Reorganização foi adiado em razão da resistência estudantil e da intervenção do Ministério Público e Defensoria Pública do Estado. Tal projeto sofreu forte resistência dos estudantes secundaristas, que promoveram um grande movimento de ocupação de mais de 200 escolas durante cerca de 60 dias. (PIOLLI; PEREIRA e MESKO, 2016, UNICAMP, p. 23-24).

Os estudantes realizaram uma série de manifestações juntamente com as ocupações, incluindo marchas, mobilizações, manifestações performáticas, travamentos em vias públicas e mais, numa tentativa de serem noticiados e percebidos também por fora da mídia, que no momento buscava retratar a luta estudantil como um cenário de possíveis desvios de conduta, acusando o movimento de diversas supostas “depravações”. O protagonismo estudantil foi grandiosamente difamado pelo noticiamento das grandes emissoras e pelas vozes dos governadores, e não tardou em ser perseguido pelas autoridades militares. Já diria Peter Pál Pelbart (2016) em sua carta aberta: “aos olhos de nossos gestores políticos, a resistência dos secundaristas não passava de uma reação passageira, de um estorvo a ser rapidamente removido, uma insanidade juvenil”.

Os estudantes não se deixaram abalar. O momento foi de descoberta para muitos jovens, visto que a grande maioria dos estudantes nunca havia se envolvido em núcleos de manifestação anteriormente, e em sua maioria estavam em seu despertar político e pessoal. As tomadas das decisões coletivas pelo núcleo estudantil sempre aconteciam por meio de

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assembleias abertas, que estabeleciam relações de pertencimento e participação ativa entre os estudantes (PIOLLI; PEREIRA; MESKO, p. 28, 2016). Em 2019, Eliza Capai viria a lançar um documentário chamado Espero Tua (Re)volta, que inclui imagens de arquivo, extensas entrevistas e captações da época, exibindo como se davam as relações entre os estudantes, as pautas e a militância, mostrando a realidade por dentro das escolas e do movimento – um filme digno de visualização à quem busca entender o que se passava pelo tão abandonado olhar discente.

Em maio de 2016, houve também uma movimentação em torno das universidades estaduais de São Paulo que buscava através da greve um avanço contra o racismo institucional, visto que naquela altura a Unicamp e a USP ainda não possuíam a implementação das cotas raciais – em 2017, viriam finalmente a implementá-las devido às solicitações.

Em junho do mesmo ano, o governo de Michel Temer anunciaria a Emenda Constitucional no 95, mais conhecida como a PEC do Teto de Gastos, que até dezembro

terminaria de tramitar pelo congresso e seria totalmente aprovada. A PEC foi anunciada como um plano para corrigir a crise econômica que vinha se desenvolvendo desde 2014 no Brasil, buscando evitar ainda mais o recuo do PIB (Produto Interno Bruto) e o aumento das taxas de desemprego através de uma proposta de congelamento de gastos do governo que duraria 20 anos. A ideia é de que as despesas do governo se restrinjam aos mesmos valores (corrigidos) gastos no ano anterior para destinar o dinheiro economizado à quitação das dívidas públicas, porém isso limitaria o orçamento público destinado aos investimentos em educação e também a outras necessidades sociais, como por exemplo o Sistema Único de Saúde.

Em setembro, Temer apresentaria formalmente pela primeira vez, juntamente com seu ministro da educação Mendonça Filho, a proposta de Reforma do Ensino Médio, que, através da criação de uma Base Nacional Curricular Comum (a nova BNCC) faria com que os estudantes secundaristas tivessem sua formação baseada na escolha individual das suas áreas de interesse. Com a reforma, o Ensino Médio também teria sua carga horária aumentada para período integral, debates sobre questões de gênero seriam “inexistentes” e 40% das disciplinas não seriam mais obrigatórias. Segundo Uczak, Bernardi e Rossi, é importante também ressaltar que:

Ainda que primeira versão a BNCC tenha tido 12 milhões de contribuições da sociedade civil, a questão para a qual chamamos a atenção é o interesse e a influência do setor privado na construção da mesma e na garantia de que ela seja implementada. Trata-se de instituições financeiras, empresas, fundações e instituições filantrópicas que são chamadas pelo governo de ‘parceiras’.

Com maior ou menor protagonismo, fazem parte da ‘parceria’ os bancos Itaú/ Unibanco, Bradesco, Santander, as empresas Gerdau, Natura, as Fundações Victor

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Civita, Roberto Marinho, Camargo Corrêa, Lemann e Todos pela Educação e Amigos da Escola. Vale destacar ainda que tais instituições do setor privado criaram, em 2013, o Movimento pela Base Nacional Comum – MBNC que se define como um grupo não governamental de ‘profissionais da educação’ que atuam junto ao processo de construção da Base Nacional Comum Curricular – BNCC (MBNC, 2017). Daí decorre uma indagação: por que esses empresários estariam interessados em promover iniciativas na educação em âmbito nacional? Quais são os seus interesses em influenciar no processo de criação da Base? (UCKZAK, L. H; BERNARDI, L. M; ROSSI, A. J. 2020).

Nesse momento, a crise educacional saía dos âmbitos estaduais pra se tornar também totalmente federal. Temer logo declararia extinto uma série de ministérios importantes, como o da Cultura, das Comunicações e o MMIRDH11. O ministro da educação anunciara

redução de 29% dos investimentos no FIES12, reduzindo o teto do financiamento em R$12 mil

por semestre. Assim, as marchas de manifestações agora reclamavam outro grito, o “fora Temer”. Até o fim de seu governo, Temer então cederia à pressão popular e revogaria as decisões tomadas contra os ministérios – com algumas mudanças – e o FIES, reabrindo-os e retomando o valor anterior dedicado ao financiamento estudantil.

Em outubro de 2016, há um momento histórico que sucede no Paraná com a fala de uma estudante de 16 anos na Assembleia Legislativa após um furdunço midiático feito por conta de uma morte de um estudante em uma escola ocupada, crime esse que ocorreu por conta de um ataque de faca feito por um colega de classe. No momento do incidente, os alunos continuavam ocupando a escola em protesto contra a PEC 241 aprovada por Temer, e após o fato foram obrigados a desocupar mediante pressão das autoridades e do governo. Apenas após o decorrer do acontecimento foi que o governo do estado demonstrou uma espécie de preocupação perante o que se passava com os alunos, e é justamente nisso que a fala de Ana Júlia, a estudante de 16 anos, se foca:

Vocês estão aqui representando o Estado, e eu convido vocês a olhar a mão de vocês. A mão de vocês está suja com o sangue de Lucas. Não só do Lucas como de todos os adolescentes que são vítimas disso. O sangue do Lucas está na mão de vocês, vocês representam o Estado. [...] Eu peço desculpa, mas o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) nos diz que a responsabilidade pelos nossos adolescentes, pelos nossos estudantes é da sociedade, da família e do Estado. (Apud BRUM, Eliane, 2016).

A escola pública, que fora abandonada por décadas pelo governo e seus representantes, deposita na fala da estudante um peso aos deputados da assembleia. Eliane Brum, jornalista que compôs a matéria sobre o caso, afirma “O deputado entendeu muito bem

11 Ministério das Mulheres, da Igualdade racial e dos Direitos Humanos.

12 Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, destinado pelo Ministério da Educação à financiar a

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que ela não se referia a mãos literalmente ‘sujas de sangue’ ou apontava uma relação direta com a morte do estudante, mas estava, sim, chamando atenção sobre a responsabilidade constitucional dos parlamentares em sua função pública”. A coragem da estudante mediante a situação e a fala por ela composta, apesar de poderosa, infelizmente não surte o efeito desejado nos governantes, e adiante não deixa de crescer o movimento neoliberal que parte em busca de uma bancada ainda mais conservadora e privatista que a de Temer.

Desde o segundo mandato de Dilma, o país visivelmente passava por um momento de ascensão da nova Extrema Direita que buscava derrubar a presidenta, e com o fim do mandato de Temer logo não se esperaria menos do que a eleição daquele que se tornara o símbolo representante do novo movimento extremista e radicalmente conservador, Jair Bolsonaro. Nas eleições de outubro de 2018, foi eleito então o ex-deputado federal e ex-militar filiado ao PSL, que foi recebido desde antes da tomada presidencial pelo movimento antifascista e progressista Ele Não, que possuía como objetivo rejeitar a candidatura do ex-deputado.

A candidatura de Bolsonaro era desacreditada sobretudo devido aos escândalos atrelados aos posicionamentos políticos do ex-deputado, que já tinha se manifestado publicamente a favor de práticas antiéticas como a tortura – homenageando um dos maiores torturadores da ditadura em pleito legislativo e convocando comemorações ao aniversário do golpe militar de 1964 –, tido falas racistas, machistas e LGBTfóbicas. O candidato também ficou conhecido nacionalmente por seguir e propagar as políticas ideológicas de Olavo de Carvalho, um polêmico discursista anticomunista rejeitado pela comunidade científica e filosófica por fomentar discursos de ódio contra minorias e absurdas teorias de conspiração.

O início do governo Bolsonaro já dava sinais ainda mais preocupantes para as políticas sociais do Brasil, que se via diante de um presidente abertamente capitalista que governava visando a concentração de lucros e riquezas para empresários e a alta sociedade. A ameaça da privatização das estatais veio desde o princípio com as propostas do Ministro da Economia – Paulo Guedes – de redução do estado, propostas essas que destituíam os trabalhadores de seus direitos. Em fevereiro de 2019, o ano de posse do presidente, já havia sido anunciada a proposta da Reforma da Previdência de Guedes e Bolsonaro, prevendo aumento da idade mínima de aposentadoria tanto em setores públicos quanto privados e mudando uma série de regras de contribuição.

Para Safatle (2019), a aprovação em primeiro turno da reforma da previdência fora “a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira desde o início da ditadura militar”. O filósofo e cientista social completa:

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Enquanto a idade mínima para homens aposentarem passou para 65 anos, estados como Maranhão, Piauí e Alagoas têm expectativa de vida masculina em torno de 67 anos. Nos bairros pobres da cidade de São Paulo, como Cidade Tiradentes, Jardim Ângela, Anhanguera, Grajaú, Iguatemi a expectativa de vida varia de 54 a 57 anos. Na verdade, 36 dos 96 distritos paulistanos têm expectativa de vida abaixo de 65 anos. Ou seja, essas pessoas simplesmente não irão se aposentar mais. Elas estão condenadas a parar de trabalhar apenas no momento em que se aprontarem para a morte. (SAFATLE, Vladimir, 2019.).

O Ministério da Educação de Bolsonaro também já se consolidava desde o início com um rigoroso perfil ideológico ao assumir como ministro Ricardo Vélez Rodriguez, um discípulo Olavista altamente defensor do movimento Escola sem Partido e enaltecedor do antigo regime militar brasileiro. O ministro, que ficou apenas 97 dias no cargo, participou de alguns escândalos de alta repercussão, como o da criação de uma comissão de avaliação para a prova do ENEM, que ficaria encarregada de censurar questões consideradas inadequadas ao público, e o escândalo da reprodução e gravação do hino nacional nas escolas contendo slogan da campanha de Bolsonaro, decisão que fora rapidamente recuada pelo MEC.

O segundo ministro da educação de Bolsonaro foi Abraham Weintraub, que tomou posse dia 8 de abril de 2019, e ficou conhecido como o ministro do sucateamento da universidade brasileira. O ministro iniciou seu mandato se posicionando a favor da diminuição de verbas para três universidades federais brasileiras, a UFF, a UFBA e a UnB, alegando que o “baixo desempenho” das instituições era devido ao que ele se referia como “balbúrdia”. Inicialmente, o corte seria de 30% das verbas originais e afetaria apenas estas determinadas instituições, entretanto posteriormente a medida valeria para todas as instituições universitárias da Federação como forma de congelamento, e seria retomado, segundo o ministro, a partir de setembro do mesmo ano. Segundo Cislaghi, Cruz, Santos, Mendonça e Ferreira:

O discurso do MEC sobre os cortes é embasado pelo combate ideológico nas universidades, às “balbúrdias”. O objetivo real, no entanto, é garantir o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a meta de superávit primário e o teto dos gastos imposto pela EC 95/2016. Os dados orçamentários revelam que se trata de uma escolha orientada pela política macroeconômica do atual governo, alinhada a um aprofundamento da perspectiva neoliberal. Isso fica evidente ao expormos os dados oficiais de forma mais ampliada. Os 46 bilhões da função educação representam 4,7% do Orçamento Geral da União enquanto a função “encargos especiais”, que representa o refinanciamento, as amortizações e serviços da dívida interna e externa somam um total de 374,1 bilhões de reais, representando um impacto de 38,63% no Orçamento Geral da União(Siga Brasil, 2019). (CISLAGHI, CRUZ, SANTOS, MENDONÇA e FERREIRA. 2019).

Os cortes de Weintraub afetaram grandiosamente a vida dos estudantes, que tiveram bolsas de pesquisa e estudos do CAPES e do CNPq encerradas. Junto com as bolsas, outros tipos de segmentos vinculados às instituições superiores como os Restaurantes Universitários e

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