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5.1 Vai Malandra

5.1.1 O videoclipe e sua proposta de gênero

5.1.1.9 Análise final

A análise de um videoclipe tem como objetivo esquematizar informações que possibilitam questionamentos e diálogos sobre um tema, não buscando explicá-los, mas, sim, possíveis produções de sentido que oferta.

No caso específico deste trabalho, busco indicadores da construção de gênero feminino no videoclipe. Por meio de seis categorias escolhidas para observar e analisar o videoclipe (trama narrativa; sujeito feminino - marcadores sociais, dimensão corporal; relações de poder; linguagem audiovisual; música e sonoridades) busco como a proposta de construção feminino aí presente, os papeis atribuídos à mulher.

De acordo com Louro (2003. p. 24), “Papéis seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas roupas, seus modos de se relacionar e de se portar”. Embora esses papéis tenham se tornado peças reguladoras que, na maioria das vezes, ditam como uma pessoa se integre na sociedade, o gênero vai além dessas ideias preestabelecidas e faz parte da constituição da pessoa.

Louro (2003) reforça que as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelo gênero e são também constituintes dos gêneros. Por isso, neste

trabalho não busco apenas perceber como as mulheres estão vestidas e ornamentadas – embora isso também seja importante –, mas também em que ambientes essas mulheres estão, se trabalham, como tratam e são tratadas pelos demais, se existe alguma referência religiosa. Como observa a autora,

[...] a justiça, a igreja, as práticas educativas ou de governo, a política, ou espaços sociais são “generificados” – produzem-se ou “engendram-se” a partir das relações de gênero (mas não apenas a partir dessas relações, e sim, também das relações de classe, étnicas etc.). (LOURO, 2003. p. 25)

Percebe-se neste videoclipe um exercício de questionar certos padrões hegemônicos ao mostrar as celulites de Anitta, mulheres gordas, negras e trans. Essa aparente ousadia foi amplamente discutida pela mídia53. No entanto, existem alguns

pontos que trazem questionamentos sobre esse suposto pioneirismo. É de conhecimento público que a cultura midiática é cercada por contradições e, neste videoclipe, podemos perceber elementos que vão contra o padrão comumente presente nas mídias hegemônicas. Ao mesmo tempo, existem outros elementos que reforçam essa hegemonia como, por exemplo, o fato dessa “diversidade” se restringir a menos de 10% do total do vídeo e, também, ao fato de ela estar toda concentrada em um baile noturno no meio da rua. Uma festa dessas proporções durante a noite no meio da favela se relaciona com certo estereótipo do brasileiro de classe popular como festeiro, que se não preocupa em acordar cedo para trabalhar quando se trata de festa. Talvez o fato de contar com a direção do norte-americano Terry Richardson54

reforce esse olhar colonialista proposto por Pelúcio (2012). A visão de favela mostrada neste clipe não apresenta nenhum dos moradores utilizando telefones celulares ou qualquer outro aparelho tecnológico, quando sabemos que os recursos digitais estão presentes na vida da maioria das pessoas, inclusive de classe populares, como verificado na primeira e na segunda parte da pesquisa exploratória. O autor argumenta que essa divisão:

53 Reportagem da revista capricho sobre o pioneirismo do videoclipe:

<https://capricho.abril.com.br/famosos/anitta-quebra-recordes-e-trava-a-web-com-clipe-de-vai-malandra>.

54 Diretor de cinema estadosunidense, que no ano de 2017 foi acussado por diversas modelos de assédio

Resulta dessa elaboração discursiva uma imagem do “outro” como “atrasado”, uma vez que sua maneira de viver remete a uma espécie de passado da modernidade, o que os faz inimigos do progresso, alocando-os em um tempo/espaço irremediavelmente distante do Ocidente. (PELÚCIO, 2012. p. 400)

Dessa forma, a diversidade incluída nesse videoclipe, com seu pouco tempo de exposição e a localização estratégica em uma festa que traz esse tom exótico, talvez não se configure como um rompimento com o que é mostrado pelas mídias hegemônicas e talvez esteja só reforçando essa divisão entre “nós” e o “outro” proposta por Pelúcio (2012).

A própria celulite mostrada no corpo de Anitta no início do videoclipe também pode constituir uma forma de estereótipo da mulher popular. Vale reforçar que este trecho teve sua velocidade alterada, pois em câmera lenta se percebe mais esse efeito de “balançar da carne”, que não apareceria facilmente a olho nu. Se a celulite de Anitta mostrada na abertura do videoclipe é algo bonito, como sugere o produto mostrando sua confiança no andar e na admiração das pessoas que a olham, porque não aparecem mais mulheres com celulites visíveis durante o banho de sol de biquíni? Isso faz com que questionemos novamente que o fora do padrão hegemônico foi inserido somente em momentos oportunos em que se queria caracterizar a favela como alegre, exótica e primitiva, mas durante todo o resto do tempo o videoclipe segue com o padrão estabelecido, com corpos magros, mulheres em sua maioria brancas, com cabelo alisados e em padrão heteronormativo.

Durham (2009) criou cinco categorias que explicam que estratégias midiáticas terminam por restringir o progresso sexual de adolescentes do sexo feminino. Uma dessas características é “você tem, exiba”. De acordo com a autora, existe um incentivo da indústria da mídia para que garotas exibam seus corpos com poucas roupas e é exatamente isso que vemos durante todo o videoclipe de Vai malandra. Com exceção da cena do baile noturno, todas as mulheres que aparecem estão vestidas com roupas curtas e isso chega ao extremo na cena do banho de sol na laje, com os exóticos biquínis feitos com fita isolante. Durham (2009) diz que, à primeira vista, o “você tem, exiba” é libertador e estiloso, mas existe um direcionamento para isso e para que este corpo a ser exibido seja magro, sem nenhum tipo de deficiência física e preferencialmente branco.

Aparece no videoclipe uma mulher que, por meio de recursos audiovisuais, foi caracterizada para que fosse lida como não binária, esta é a única pessoa fora do

padrão hegemônico que aparece fora da cena do baile na favela. Esta mulher pode ser vista também durante a cena do jogo de sinuca, mas ela aparece sempre em segundo plano, e não existe nenhum plano fechado nela, como acontece com as outras pessoas (homens caracterizados pelo audiovisual para serem lidos como cis gênero). Essa pessoa fora do padrão fica o tempo todo escondida atrás dos outros integrantes da cena e só foi possível percebê-la por meio do procedimento metodológico de “molduras móveis”, baseado na metodologia de molduras de Kilpp (2006). O apagamento dessa personagem só é corrigido no momento do baile na favela, quando aparentemente todas as diversidades são bem-vindas e existe um

close de mais de um segundo nela, antecedido pela sequência de uma mulher trans.

Neste sentido, Pelúcio (2012) diz que a cultura ocidental costuma exotificar os negros e os latinos e que ela só percebeu isso realmente ao morar um período na Alemanha. A autora compartilha uma percepção muito particular do seu aprendizado: “Aprendi naquele momento, em meio à neve, que meu corpo podia ser lido a partir das marcas da colonialidade que o situavam numa periferia exotizada e desmoralizada” (PELÚCIO, 2010. p. 398).

Outro fator que podemos analisar neste videoclipe são as relações de poder. As mulheres não são mostradas em relações cooperativas, como vemos que acontece entre os homens, que se abraçam na cena da piscina e riem uns com os outros na cena da sinuca. Elas também sorriem umas para as outras, mas, quando isso ocorre, há malícia sexual, como na parte em que elas desfazem o biquíni de fita isolante umas das outras. As mulheres também se encostam umas nas outras, mas somente em um movimento de dança sensual, em que t seus corpos de forma provocativa. Novamente fazendo uso do “você tem, exiba” de Durham (2009), as relações femininas são mostradas a partir da sexualidade, da exibição de seus corpos. Anitta, por ser a figura central do videoclipe, apresenta uma postura dominante em relação às demais mulheres e, também, em relação aos homens de classe trabalhadora (o moto taxista e o passador de bronzeador). Isso faz pensar, neste caso, na inversão da dicotomia de que os homens são opressores e as mulheres oprimidas. Louro (2003) realiza um grande esforço para que pensemos essas relações de poder fora desse binarismo (masculino/feminino), como na passagem a seguir:

Os sujeitos que constituem a dicotomia não são, de fato, apenas homens e mulheres, mas homens e mulheres de diferentes classes, raças, religiões, idades etc., e suas solidariedades e antagonismos podem provocar os arranjos mais diversos perturbando a noção simplista e reduzida de homem dominante e mulher dominada. (LOURO, 2003. p. 6)

A argumentação da autora serve para explicar a relação de Anitta com as mulheres e os homens que aparecem neste vídeo. Ao assumir o papel dominante,

Anitta busca representar o poder masculinista que tem sido historicamente construído.

A figura do passador de bronzeador está ali representando o papel que geralmente é atribuído a mulheres – ele trabalha enquanto o sexo oposto explora sua sexualidade. Sua personalidade não importa muito, pois os planos são focados em seu corpo e muitas vezes os são cortados sem mostrar o rosto do rapaz. Anitta somente flexiona o dedo fazendo com que ele a obedeça e caminhe até ela em uma dança sensual.

Sendo assim, percebe-se que há uma forte relação de poder, e que Anitta exerce poder tanto sobre homens quanto sobre mulheres. Isso não significa que as mulheres do banho de sol na laje, por estarem sob poder de Anitta, não possam exercer de certa forma poder sobre outras pessoas, como quando as mulheres que estão de pé dançando gesticulam e arrancam as fitas do biquíni das outras que estão deitadas. Foucault (1989) explica que as relações de poder são perpassadas e estão em constante movimento. Para o autor,

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou Melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui e ali, nunca está em mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder, e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. (FOUCAULT, 1989. p. 183)

Com isso, percebe-se que o videoclipe de Vai malandra é cercado de contradições. Se por um lado questiona a postura da mulher recatada ao colocar Anitta no topo das relações de poder, por outro lado esse poder é masculinista e autoritário, submetendo homens e mulheres à sua vontade. Podemos ainda pensar na superexposição dos corpos e a reafirmação da mulher objeto, explorada pela mídia, como mostra Durham (2009). Podemos também questionar se tudo isso não fortalece o exotismo proposto pelo olhar colonialista do diretor Terry Richardson, reforçado pelos gestos do rapper estadunidense Maejor e pelo teor dos trechos de música que este canta.