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Com relação à auto-identificação de gênero, pude notar dificuldades para as jovens entenderem as perguntas que foram feitas durante a entrevista. Patrícia e

Caroline/Saymon foram as únicas que responderam rapidamente à questão sobre sua

auto-identificação de gênero, Patrícia dizendo ser gênero feminino e Caroline/Saymon não binária. Quando perguntada sobre o gênero, Alice respondeu “Mulher feminina”.

Jennifer foi a que mais divagou sobre essa pergunta, confundindo gênero com

orientação sexual. Sobre isso ela respondeu: “Não tenho gênero, não me identifico

com nenhum”. Essa resposta me interessou bastante e por isso insisti: “Então tu és como a Caroline havia se descrito antes? Ela se identifica como não binária, ou seja, nem homem e nem mulher”. Sua resposta foi a seguinte:

É que tem meninas que são masculinas que me chamam atenção, daí tem meninas que são femininas que me chamam atenção, daí tem meninas que eu não sei decidir se são masculinas ou femininas que me chamam atenção, tem homens femininos que me chamam atenção e tem homens bem masculinos que me chamam atenção, eu não sei. Gosto de pessoas eu acho.

Podemos ver aqui que tanto Jennifer quanto Alice tem dificuldade para dar uma resposta assertiva à pergunta quanto ao seu gênero. Caroline/Saymon, por sua vez, parece muito segura quando se define como não binária. Durante a fase da pesquisa exploratória, eu havia notado que em determinados dias ela vinha vestida com trajes que socialmente são esperados para um menino e em outros aparecia toda montada em vestidos e maquiagens, mas naquela época ela não se dizia não binária, apenas falava que não sabia se auto-identificar com nenhum gênero. Durante o ano de 2018 ela teve um curso no Colégio Júlio de Castilhos no qual foi explicado o que era uma pessoa não binária o que, para a jovem, foi muito importante para seu autorreconhecimento. Vale a pena comentar que desde o início desta pesquisa eu já havia notado esse traço não binário em Caroline/Saymon, mas como na época estava em uma situação de professora não cabia a mim abordar esse assunto em uma aula de design, ainda mais que a jovem não havia demonstrado interesse em perguntar sobre o assunto. Destaca-se a importância dessa aula para a formação da jovem e isso se nota pela maneira segura com que ela fala sobre isso, diferente de Jennifer

que, com 19 anos, tem muita preocupação em utilizar termos corretos, mas a falta de uma formação mais específica a faz confundir gênero com orientação sexual.

Quando perguntei a Caroline/Saymon se ela se considerava feminina ela disse: “às vezes”, o que é inteligível, pois como não binária existem dias em que ela se sente como um rapaz. Mas, quando questionei se ela se considera feminista, ela sorriu e respondeu: “sempre”. Alice, Patrícia e Jennifer também se consideram feministas e argumentam que o são por acreditarem na igualdade de gêneros e na busca por salários e direitos iguais entre homens e mulheres.

Patrícia levantou ainda outra questão sobre ser feminista: disse que no seu

convívio não percebe mulheres ganhando menos que homens, mas que tem consciência de que isso existe de maneira mais frequente em círculos sociais mais altos, em cargos de chefia e no mundo pop. Ela deu o exemplo de seus cantores favoritos. Segundo a jovem, para uma atriz pop ter um videoclipe considerado de sucesso, ela tem que inovar, ter coreografia e realmente se destacar frente à concorrência. Quanto a um astro pop é homem, ele pode fazer um videoclipe só tocando um violão ou dançando aleatoriamente e está tudo bem. Patrícia diz que o mesmo se passa nos shows, os femininos envolvem um batalhão de dançarinos e pirotecnia e os masculinos muitas vezes contam somente com um banco e violão.

Uma pergunta que gerou bastante questionamento em todas elas foi a respeito quando se reconheceram em relação ao gênero que hoje se auto-identificam, nenhuma delas lembrava do exato momento em que isso se deu. Confesso que foi um momento de prazer ver suas expressões de surpresa ao perceberem que não existia um momento específico. Talvez para um pesquisador seja fácil entender que essas construções são sociais; por acontecerem desde a mais tenra idade, torna-se impossível indicar um único momento, pois foi um somatório deles em repetidas vezes que terminaram por construir a concepção que um sujeito tem dele mesmo.

Mesmo assim, surgiram algumas colocações interessantes, como esta de Alice: “Acho que desde sempre, a minha mãe me vestiu de rosa e hoje eu odeio rosa... Mas

mesmo assim me considero feminina”. Ela não lembra quando se reconheceu como

pertencente ao sexo feminino, mas atribui isso à influência da mãe que sempre a vestiu de rosa, reconhecendo este elemento como algo que naturalmente se associa ao feminino. Ao dizer que hoje ela odeia a cor rosa, aquilo que inicialmente citou como o que pode ter feito com que ela se reconhecesse como mulher, ela parece entrar em excitação, mas logo reforça sua posição ao dizer “mesmo assim me considero

feminina”. Isso indica que sua concepção se expandiu para além dos binarismos que

colocam que menina veste rosa e menino veste azul.

Patrícia também parece questionar esses conceitos e isso se nota, quando se

pergunta porque ela se considera feminina: “É... talvez... é que falar de acessórios...

todo mundo pode usar acessórios... não te faz feminina... mas talvez porque... eu me identifique com outros gêneros femininos”. Com essa resposta, ela demonstra uma

preocupação em não rotular as feminilidades através de acessórios como brincos e maquiagens. Quando diz que hoje se considera feminina porque se identifica com outras pessoas do gênero feminino, existe a expressão de uma problematização sobre algo muito contemporâneo e muito mais presente em mulheres de classe média. Como nota pessoal, lembro de algumas aulas onde alunas de mestrado e de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos disseram que o feminismo era necessário a todas, mas entendido por mulheres de classe média. Esse questionamento de Patrícia mostra que muitos dos impasses dessas jovens vindas de classes populares, são os mesmos que se notam na militância feminista.

Guacira Lopes Louro fala exatamente sobre esse impasse das jovens. Segundo a autora, “Os corpos são significados pela cultura e, continuamente, por ela alterados”. Dessa forma, pode-se entender a dúvida das jovens em apontar quando começaram a se sentir mulheres ou sobre serem femininas, pois o contexto histórico onde elas vivem já as fazem questionar sobre de onde vem esses marcadores de gênero, o que foi significado pela cultura como feminino e o que realmente pode ser considerado como tal. Como observa a autora,

Talvez devêssemos nos perguntar, antes de tudo, como determinada característica passou a ser reconhecida (passou a ser significada) como uma "marca" definidora da identidade; perguntar, também, quais os significados que, nesse momento e nessa cultura, estão sendo atribuídos a tal marca ou a tal aparência. (LOURO, 2000. p. 8)

Nesse aspecto, tanto Jennifer, quanto Alice parecem ultrapassar esses enquadramentos. Quando Alice diz “hoje odeio rosa, mas me considero feminina”, ela reconhece que existe uma norma social que designa a rosa para as mulheres, mas hoje, quando rompe com essa norma, não significa que ela esteja rompendo com a sua feminilidade. O mesmo se passa com Patrícia, que em um primeiro momento associa a sua feminilidade aos acessórios e depois entra em um grande impasse para

responder à pergunta. Uma evidência de como a própria percepção dessas jovens está em constante evolução foi a constatação de Patrícia: “Tu já havias me feito essas

perguntas antes (em abril de 2018) e naquela época eu respondi tão mais fácil, não sei porque está tão mais difícil fazer isso agora”. Esse exemplo mostra que quanto

mais ela pensa, discute e racionaliza sobre gênero, tem questionamentos sobre isso. Sentimento que compartilho com a jovem desde o primeiro dia do mestrado.

Fenotipicamente, Alice e Jennifer poderiam ser identificadas como pardas, mas

Alice se autorreconhece como negra, enquanto Jennifer se diz branca. Caroline/Saymon se declara parda e Patrícia se percebe como branca. Todas elas se

acham bonitas, mas todas também ficaram um pouco constrangidas para dizer isso. Quanto à auto-identificação relativa à classe, podemos notar que as jovens com uma formação mais desenvolvida apresentam uma maior consciência de classe. Alice e Caroline/Saymon se veem como integrantes da classe média. Ainda que Alice tenha posses que vão além da maioria de suas colegas, ela está muito longe de pertencer à classe média brasileira. Caroline/Saymon, por outro lado, leva um estilo de vida bem mais sacrificado que Alice, mora com nove pessoas em uma casa de dois quartos, o smartphone que possui foi dado por uma madrinha e, durante o primeiro mês de aula inteiro, não compareceu, pois, seus responsáveis não podiam pagar pelas passagens. Ainda assim, se considera de classe média. Patrícia e Jennifer, por outro lado, que já terminaram o ensino médio, têm mais cursos extracurriculares que as outras e hábitos regulares de leitura, se consideram pobres.

Quando perguntei porque elas se consideravam assim, Jennifer respondeu: “Minha mãe não trabalha. Meu pai é pedreiro, trabalha por conta. Minha mana está

desempregada e vai se mudar com o namorado. Eu tento ajudar um pouco nas coisas da bibi (irmã caçula)”. Nesta fala, Jennifer demonstra percepção de classe similar à

de Patrícia, que se considera “bem pobre”, mas que entre as jovens entrevistadas é aquela com mais posses. Ela conta que começou a tomar consciência do quanto era pobre quando iniciou o ensino médio na Escola Estadual de Ensino Médio Padre

Réus, situada na zona sul de Porto Alegre, considerada uma das mais tradicionais da

região. Patrícia revela que existem muitas pessoas que realmente são de classe média e estudam na sua escola para entrarem nas cotas de escola pública das Universidades Federais. Assim, a convivência com esses jovens que passam as férias na Europa e trocam de aparelho telefone a cada lançamento fez ela perceber seu

lugar na sociedade. A jovem diz que, junto com essa consciência, veio a percepção do quanto seria difícil competir por uma vaga na Universidade Federal.