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A metodologia da crítica de processo não é linear, assim como não o é o próprio processo de criação. Desse modo, a distinção de dois momentos entre a constituição do dossiê e a análise/interpretação tem como único propósito contribuir com a clareza deste trabalho. Estamos conscientes de que o esforço interpretativo permeou as considerações apresentadas até aqui, o que é de se esperar, conforme destaca Grésillon:

O geneticista que “triturou” seu dossiê até a etapa de transcrição, já interiorizou e, inconscientemente, explorou alguns de seus aspectos pertinentes, talvez até já tenha em mente hipóteses para percursos interpretativos, pois, fique claro, não existem duas posturas diferentes de leitura, sendo uma objetiva e reservada à classificação e, a outra, subjetiva e reservada à interpretação. (2007, p. 189)

Com isto em mente, o que vamos procurar fazer em seguida é apresentar, sistematicamente, no que consiste, de quais conceitos principais se vale e quais resultados persegue a leitura descritiva e analítico-interpretativa dos documentos de processo de Eles não usam black-tie. Concluiremos a introdução deste trabalho descrevendo como estes resultados serão organizados nos capítulos da nossa dissertação.

Os critérios para a observação comparada dos documentos, bem como a interpretação destes, estarão fundamentados no conceito de narrativa. De acordo com Xavier, a narrativa é o “eixo comum” pelo qual um “mundo narrado” pode ser descrito “sem que seja necessário considerar as particularidades de cada meio material”. Em outras palavras, a narrativa é o que tem em comum um filme narrativo-dramático, uma peça de teatro, um conto e um romance. “Em todas estas formas de expressão, o fato de estar presente o ato de narrar permite o uso de categorias comuns na descrição dos elementos que organizam a obra em aspectos essenciais”. (2003, p. 64)

Xavier diferencia, no âmbito da narrativa, fábula e trama. Esta distinção tem raízes, no âmbito da narratologia, em Gerard Genette, e possui sentido análogo ao da oposição proposta pelos formalistas russos (Chklovski, Tomachevski, Propp, Eikhenbaum) no contexto do conto, entre “fábula”, que seria “a sequência dos acontecimentos representados tal como eles teriam se desenrolado na vida” e “trama”, que “remete ao agenciamento particular desses acontecimentos pelo autor”. (AUMONT; MARIE, 2006, p. 115)

Diante de qualquer discurso narrativo, posso falar em fábula, querendo me referir a uma certa história contada, a certas personagens, a uma sequência

de acontecimentos que se sucederam num determinado lugar (ou lugares) num intervalo de tempo que pode ser maior ou menor; e posso falar em

trama para me referir ao modo como tal história e tais personagens aparecem para mim (leitor/espectador) por meio do texto, do filme, da peça. (XAVIER, 2003, p. 65)

Nesta direção, Michel Chion ressalta que é no modo de contar a história que reside a individualidade de uma obra. “As histórias, decididamente, são sempre as mesmas. [...] Indefinidamente aberta e renovável é a arte da narração, a arte do conto, da qual a arte do roteirista é apenas uma aplicação particular, pensada para o cinema”. (1989, p. 2)

Apesar de ser possível diferenciar entre os elementos da história e os meios de contá- la, esta distinção, conforme esclarece Xavier, é sempre feita a partir da trama: “o que um filme, um romance ou uma peça me oferecem é a trama, pois não posso me relacionar senão com a disposição do relato tal como ele me é dado. E é a partir daquilo que me oferece - a trama - que deduzo a fábula”. (2003, p. 66)

Em oposição à narrativa, em sentido geral, podemos falar em narrativa cinematográfica, que incorpora ao conceito genérico os modos particulares de narração no cinema, que consistem, de acordo com Francis Vanoye e Anne Goliot-Leté, no que “se refere à expressão, ao que é próprio do meio”, ou seja, à “materialidade do filme.” (1994, p. 41) Nesta direção poderíamos citar, na qualidade de exemplos, a composição do quadro, a montagem, a relação entre imagens e sons, o posicionamento da câmera etc.

Com estes conceitos-chave em mente, podemos prosseguir com a leitura comparativa do nosso dossiê, em sua sequência cronológica. A confrontação entre os documentos é um passo fundamental, posto que, conforme expôs Salles, “o interesse não está em cada forma, mas na transformação de uma forma em outra.” (1998, p. 19)

Para visualizar o movimento entre as formas das quais a obra foi se revestindo ao longo do processo, é preciso uma análise comparativa bastante minuciosa, que acreditamos ser mais eficaz se feita com poucos documentos a cada vez. Após a descrição ponto-a-ponto dos grupos, obviamente, nos voltaremos para o conjunto. Tal leitura comparativa, num plano específico, se dará entre os seguintes documentos:

a) texto teatral e Argumentos (considerando, entre eles, ABC da greve); b) texto teatral, Argumentos e Roteiro I;

c) Roteiro I, Roteiro II e Roteiro III;

d) Roteiro III e filme (considerando, entre eles, o Storyboard, as Sequências e locações para filmagem, os Calendários de filmagem, as Ordens do dia, as

Fichas de continuidade, as Sequências para sincronização, o Mapa de mixagem etc.).

Partindo das observações provenientes da leitura num “primeiro nível”, de certo modo, “microscópico”, percorrendo as operações registradas em cada página de cada documento (Cf. Anexos H a K), é que a etapa mais importante da interpretação dos documentos pode ser operada. Depois de “desmontar” a máquina criativa, é hora de “montá-la” novamente. (CAMPOS, 1987; 2004)

As peças do mecanismo em ação podem ser isoladas para efeito de análise, mas devem ser colocadas de volta no movimento da criação, para que o pesquisador seja fiel a essa marcante característica de seu objeto de estudo. Em outras palavras, ao separar este ou aquele elemento para análise, não se pode perder a noção do processo no qual se insere. (SALLES, 2008, p. 52- 53)

A etapa que se segue à descrição comparativa consiste numa leitura a nível “macroscópico”, tomando o conjunto de ações registradas na totalidade dos documentos de processo. Essa tarefa nos conduz à “compreensão” do processo, conforme explica a autora:

O olhar científico procura por explicações para o processo criativo que os documentos guardam. Daí sua simples descrição ser insuficiente. Retira-se, da complexidade das informações que oferecem, o sistema através do qual esses dados são organizados. (1998, p. 19)

Será nossa tarefa, nesta etapa de leitura interpretativa num sentido amplo, identificar recorrências, estabelecer nexos e operar aproximações a fim de encontrar o sistema, as linhas de força ou, ainda, as “tendências” do percurso criativo de Eles não usam black-tie.

Salles caracteriza “tendência” como o “rumo vago que direciona o processo de construção de suas obras”. (SALLES, 1998, p. 28). A tendência do percurso criativo opera na dialética entre “rumo” e “incerteza”, a qual “move o ato criador e o caracteriza como uma busca de algo que está por ser descoberto”. (SALLES, 2002, p. 186)

Um dos aspectos da tendência do processo de criação é o “projeto poético” do artista, o qual se concretiza com a obra, mas também está relacionado às características mais gerais do “modo de fazer” que lhe é próprio e àquelas do conjunto de toda a suas obra.

O projeto está ligado a princípios éticos de seu criador: seu plano de valores e sua forma de representar o mundo. Pode-se falar de um projeto ético conduzido pelo grande propósito estético do artista. São princípios éticos e estéticos, de caráter geral, que direcionam o fazer do artista: norteiam o momento singular que cada obra representa. (SALLES, 2002, p. 192)

Conforme esclarece Salles, a tendência do processo “é o objeto de estudos de caso nos quais o propósito da análise é acompanhar e compreender os mecanismos criativos utilizados por um artista específico, para a produção de uma determinada obra”. (SALLES, 1998, p. 37) Desse modo, a partir de uma leitura mais ampla dos documentos de processo, nos ocupamos da busca pela compreensão das tendências do processo criativo de Eles não usam black-tie, bem como da identificação de características do projeto poético de Hirszman, em elaboração.

Deste modo, desejamos, como Monzani, “apontar um método a mais de pesquisa cinematográfica, contemplando os roteiros feitos para a obra – parte usualmente esquecida do material do processo de criação – e buscando extrair do movimento representado por eles o “desenho” do pensamento de seu autor”, (2005, p. 17) salientando que nos valeremos não apenas dos roteiros, mas também de outros documentos auxiliares.

É importante lembrar que nosso olhar encontra-se direcionado por um enfoque carregado de uma “sensibilidade direcionadora”, (GRÉSILLON, 2007, p. 196) que é a busca pela compreensão do processo de criação deste filme enquanto transcriação (CAMPOS, 1987, p. 54) ou transposição intersemiótica (JAKOBSON, 1977, p. 72) a partir do texto teatral.

Em suma, partindo do viés processual, baseado na teoria geral da criação de Salles e passando pelas particularidades do processo de criação de Eles não usam black-tie, como a natureza intersemiótica de que se reveste e a forte ligação que mantém com o contexto no qual se desenvolveu, o que buscamos com o nosso esforço de análise, a nível “macro”, dos documentos de processo é:

a) o entendimento de como os constituintes da narrativa se articulam nos momentos distintos do processo criativo;

b) a percepção de como as ideias, de um modo geral, transitam nas diferentes etapas do percurso criador, e de que formas semióticas se revestem;

c) o reconhecimento das influências do contexto social e político que se revelam nos movimentos processuais;

d) a percepção das “tendências” e dos traços do “projeto poético” pertencentes à obra em processo.

Os resultados obtidos a partir do trabalho descritivo-interpretativo dos documentos, conforme demarcamos acima, são apresentados nos capítulos seguintes seguindo a lógica dos grupos Estudos, Projeto e Finalização.

Argumentos enquanto estudos: possibilidades em diálogo concentra-se nos primeiros passos dados em direção à realização de Eles não usam black-tie, no momento em que esta se apresenta como um estudo, uma ideia em busca de uma forma. Ali discutimos as relações entre o texto teatral e os Argumentos, considerando a influência de ABC da greve.

Roteiros enquanto projeto: uma narrativa em processo dirige-se ao processo de estruturação de Eles não usam black-tie enquanto projeto, plano para trazer à vida uma obra cuja forma é ainda, em certa medida, imaginária. Nele nos voltamos para as três versões de roteiros de Eles não usam black-tie, procurando demonstrar de que modo elementos do texto teatral e dos Argumentos se articulam neste processo.

Produção, filmagem e montagem enquanto finalização dedica-se ao momento de realização do projeto, no qual a concepção da obra, até então limitada ao papel, se materializa na forma de imagem e som em movimento. Centramo-nos no percurso entre a terceira versão do roteiro e o filme Eles não usam black-tie (finalizado e lançado), valendo-nos de documentos que registram a produção, a filmagem e a montagem.