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2. OS ARGUMENTOS ENQUANTO ESTUDOS: POSSIBILIDADES EM DIÁLOGO

2.2 APRESENTAÇÃO DOS DOCUMENTOS DE PROCESSO

2.2.1 Texto teatral

O texto teatral de Eles não usam black-tie por nós utilizado nesta pesquisa teve sua primeira edição publicada pela Civilização Brasileira, em 1983 (este já havia sido publicado anteriormente pela editora Brasiliense, em 1966, e pela Civilização Brasileira em 1978, em conjunto com outra peça de Guarnieri, Gimba). Dispomos da 19ª edição, publicada em 2008, que possui 112 páginas. Este texto tem prefácio de Delmiro Gonçalves, que discute a

concepção pelo autor e a recepção pela crítica da peça à época da sua primeira montagem no Teatro de Arena de São Paulo, em 1958.

Uma nota apresenta as personagens da peça e o elenco da primeira montagem, em 22/2/1958, sob a direção de José Renato, do qual podemos destacar os atores Miriam Mehler, Gianfrancesco Guarnieri, Eugênio Kusnet, Lélia Abramo e Milton Gonçalves.31 A peça divide-se em três atos e seis quadros, antes dos quais se encontram no texto rubricas de cenário, ou de localização espácio-temporal das personagens. Como não há narrador, o texto se compõe basicamente dos diálogos, intercalados por rubricas referentes à música e à encenação (movimentação em cena, expressões, gestos, tons de voz etc.).

Chama a atenção o modo pelo qual os diálogos são escritos, sendo comum encontrar palavras e sentenças como gostá, chegô, pruquê, nóis, purmões, com’é, ocê, nós vai, gosta de eu, entre outras. Podemos considerar esta peculiaridade, típica também de outras peças de Guarnieri,32 como a marcação textual de uma variação heteroglótica oral que é representativa

do local e época em que a ação se desenrola, bem como da condição social das personagens.33 O cenário descrito no texto é bastante simples, e se limita basicamente ao barraco onde mora a família de Tião (um dos protagonistas), localizado numa favela carioca. Apenas um quadro se passa fora deste ambiente, na frente da casa de Maria (namorada de Tião). Não há indicação de iluminação ou figurino, e as inserções musicais são marcadas no texto unicamente pela “entrada” ou “saída” do violão over do personagem Juvêncio, não havendo qualquer registro de melodia, apenas da letra da música, a qual é cantada pelas personagens.34

Em relação à narrativa do texto teatral, como vimos, o espaço no qual a trama se desenvolve é o Rio de Janeiro, sendo que as personagens moram em uma favela. Apesar de o cenário se limitar basicamente ao barraco de Romana, muitos acontecimentos que tem lugar fora de cena, como por exemplo, na fábrica, no sindicato, no botequim, nas ruas etc., os quais são apenas narrados sumariamente pelas personagens e não encenados. (XAVIER, 2003, grifo nosso)

Não há marcação de uma época específica, deste modo, se não levarmos em conta a data em que peça foi escrita, esta pode ser tomada como contemporânea à leitura. No entanto,

31 Lélia Abramo, Gianfrancesco Guarnieri e Milton Gonçalves atuaram também no filme de Hirszman. Abramo

fez o papel da mãe de Maria no filme, sendo que na peça ela fazia o papel de Romana (mãe de Tião). Gonçalves viveu Bráulio tanto na peça quanto no filme. Guarnieri passou do papel do filho (na peça), ao do pai (no filme).

32 Cf. Gimba (1959) e A Semente (1961).

33 Para o conceito de heteroglossia (versão da palavra a partir do inglês, que foi traduzida para o português como plurilinguismo), Cf. BAKHTIN, 1993, p. 74.

34 “Entrada” e “Saída” são os termos utilizados no texto teatral (GUARNIERI, 2008) para indicar os momentos

encontramos nos diálogos pistas que podem ser interpretadas como indicadores temporais da década de 1950, como por exemplo, a menção de Otávio à experiência “do ano passado” e, em seguida, à “greve de 51”, (GUARNIERI, 2008, p. 40) e a referência desta mesma personagem ao “velho”, (GUARNIERI, 2008, p. 33 e 38) a qual alguns autores, entre eles Salem, entenderam como uma alusão ao ditador russo Josef Stalin. (1997, p. 253)

A narrativa tem duração de quatro dias, seguindo a ordem cronológica da ação, contudo, há uma elipse temporal de suas semanas entre o primeiro dia e os demais. A peça começa num sábado a noite, duas semanas se passam, a ação recomeça num outro sábado e continua até segunda-feira.

As personagens que compõem a trama são Otávio e Romana, pais de Tião e Chiquinho. Maria é namorada de Tião e irmã de João. Dalva e Terezinha são vizinhas de Romana. Jesuíno é amigo de Tião e Bráulio é companheiro de Otávio. Há, ainda, a mãe de Maria, que não tem nome, e Juvêncio, o violeiro. Estes dois últimos não aparecem em cena.

A peça de Guarnieri tem como tema musical o samba intitulado Nóis não usa as bleque tais, de autoria conjunta com Adoniran Barbosa. Além desta só há uma referência musical especificada no texto teatral: o som da vitrola durante a festa de noivado de Tião e Maria. Do samba-tema, encontram-se no texto teatral as indicações da letra, nos momentos em que ela deveria ser cantada pelos personagens, e as marcações da presença da “viola”, sem, no entanto, qualquer indicação da melodia. O samba-tema, que aparece no texto teatral em seis inserções diferentes, é sempre diegético, e encontra-se ligado ao personagem Juvêncio, “violeiro” do morro que no universo ficcional é o compositor da música. Sua participação na peça se resume a tocar o samba-tema, já que ele não tem falas nem tampouco canta, ficando a interpretação, quando existente, a cargo de outros personagens.

O texto teatral divide-se em três atos e seis quadros. No Ato I, Quadro I, Maria e Tião chegam à casa do moço em um sábado à noite, depois de um passeio. Ela conta a ele que está grávida e eles decidem marcar o noivado. Chiquinho, que dormia na sala, acorda com a conversa dos dois, e logo Otávio chega. O casal conta a novidade, e Romana também acorda. Todos ficam surpresos com a notícia. No Quadro II, duas semanas se passaram, e novamente é sábado. Está acontecendo a festa de noivado de Tião e Maria, organizada pelos pais de Tião, da qual participam o irmão de Maria, vizinhos e amigos. Ao final da festa, Bráulio chega anunciando que haverá greve na segunda-feira. Otávio fica radiante e, Tião, preocupado.

No Ato II, Quadro I, é domingo, a manhã após a festa. Tião conversa com a mãe em casa, que conta que ele, alcoolizado, discutiu com o pai no dia anterior, dizendo ser Otávio o

culpado pela vida ruim que a família levava, que ele (Tião) não queria que Maria trabalhasse, e que estava bem na cidade, quando morava com os padrinhos. Romana sai de casa, e Tião conta a Jesuíno sobre a gravidez de Maria. Os dois conversam sobre a greve, Tião diz que vai furar e Jesuíno também, os dois querem passar para “encarregados” e ir morar na cidade em “uma casa de cômodos”. Bráulio chega e conta a Otávio, que também chega em seguida, da prisão de alguns companheiros em razão da ameaça de greve. No Quadro II, é domingo à noite e Maria e Tião conversam na frente da casa da moça sobre o fato de Tião não gostar de viver na favela. Maria diz que não se importa porque gosta das pessoas com quem convive.

No ato III, Quadro I, é segunda-feira de manhã, dia da greve, e Tião sai de casa para trabalhar. Em seguida, Otávio também vai. Romana fica em casa com Maria, que conta a ela sobre a gravidez. Logo Tião chega e diz que “tudo foi bem” na greve. Em seguida Bráulio chega e conta a todos que Tião furou a greve e que Otávio foi preso. Romana vai atrás dele. No Quadro II, Tião conversa com João sobre sua atitude, e diz que pretende ir embora com Maria para a cidade. Em seguida chega Maria e diz para Tião que não gosta da ideia. Romana retorna com Otávio, Terezinha e Bráulio. Todos estão alegres com o bom resultado da greve, graças à forte atuação de Otávio, o “maior greveiro carioca”. Otávio conversa com Tião, e o coloca para fora de casa. Maria, arrasada, diz que não vai com ele para a cidade. Tião vai embora, mas fica a esperança que, se ele mudar sua perspectiva de vida, poderá voltar. A peça é encerrada com o samba-tema de Juvêncio, tocando no rádio, identificada como sendo de autoria de outra pessoa.