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A análise semiótica emVygotsk

A noção de instrumento psicológico evoluiu ao longo da investigação de Vygotski, enfatizando de modo crescente a natureza significativa e comunica- tiva dos signos. Depois dos anos trinta incrementa a interpretação semiótica das ferramentas psicológicas influenciado, em parte, pela perspectiva de Rad- zikovskii (1979) e pelo seu interesse pelos estudos literários e filológicos. Em 1932, escrevia no seu caderno de notas que a análise do significado do signo é “o único método adequado para analisar a consciência humana” (Wertsch, 1988, p.95). Esta interpretação semiótica orientou a sua investigação sobre a palavra, a fala interna e outros instrumentos psicológicos.

Para tentar compreender a explicação de Vygotski sobre os processos psi- cológicos humanos é necessário ter em conta algumas propriedades funda- mentais dos instrumentos psicológicos. O autor considerava que a introdução de um instrumento psicológico (por exemplo, a linguagem) numa função psi- cológica (como a memória) causa uma transformação fundamental dessa fun- ção. Por isso, os instrumentos psicológicos não são meios auxiliares que sim- plesmente facilitam uma função psicológica deixando-a intacta mas, pelo contrário, possuem a capacidade de transformar o funcionamento mental. Es- ta característica possui um papel central nas análises genéticas desenvolvidas pelo autor. Aqui o desenvolvimento está associado a transformações qualitati- vas fundamentais ou a “revoluções” que incrementam mudanças nas ferra- mentas psicológicas.

Uma segunda característica da concepção de mediação em Vygotski con- siste no facto de os instrumentos psicológicos serem, por natureza, sociais e não orgânicas ou individuais. Este carácter social atribuído aos instrumentos tem dois sentidos. Por um lado, os instrumentos psicológicos como, por exem- plo, a linguagem, os diversos sistemas para contar, as técnicas mnemónicas, os sistemas de signos algébricos, etc., são sociais, no sentido de que são o produto da evolução sociocultural. Por outro lado, o carácter social das ferra- mentas psicológicas articula-se com o fenómeno social mais “localizado” da comunicação face-a-face e da interacção social.

A concepção da natureza social das ferramentas psicológicas é um as- pecto-chave para compreender o significado dos signos e tem importantes consequências para a teoria que o autor desenvolve sobre os processos psico- lógicos humanos. Se estes instrumentos desempenham um papel importante na configuração dos processos psicológicos dos sujeitos, podemos considerar que estes processos se configuram indirectamente a partir das forças que se origi- nam na dinâmica da comunicação (Wertsch, 1988).

Semiótica e poética soviéticas na análise semiótica de Vygotski

Se autores como Rahmani (1973) ou E. Berg (1970) não tiveram em conta a importância dos formalistas russos ou de Yakubinskii no pensamento de Vy- gotski e defenderam a relação entre a análise vygotskiana sobre a mediação semiótica e a noção pavloviana de “segundo sistema de sinais”, Wertsch (1988), embora não pretenda subestimar a influência de Pavlov, rejeita a ideia de que a noção de mediação esteja inteiramente baseada na explicação do segundo sistema de sinais e argumenta que “para compreender a origem e a natureza das ideias de Vygotski sobre este tema, devemos basear-nos nou-

tros aspectos: especialmente nas figuras semióticas, linguísticas e poéticas que o influenciaram” (Wertsch, 1988, p.97).

Quando Vygotski escreveu “A Psicologia da Arte”, a força literária do- minante na Rússia era o formalismo. Os formalistas preconizavam o estudo da literatura através da identificação e análise dos mecanismos linguísticos e dos princípios que o caracterizam. Os formalistas centravam-se no estudo objectivo da utilização das formas linguísticas em poesia, nas fábulas e nas novelas (Wertsch, 1988). Tal como afirmou Jakobson “se o estudo da litera- tura se quer converter numa ciência, deve reconhecer os mecanismos como seu único protagonista” (Medvedev/Bakhtin, 1978, p.117, citado por Wertsch, 1988, p.98). Este é, talvez, um dos motivos pelos quais Vygotski se interessou pelos mecanismos semióticos no seu livro “Psicologia da Ar- te”.

No entanto, embora o autor afirmasse que a análise objectiva dos fenó- menos psicológicos deve começar por uma compreensão dos mecanismos se- mióticos, importantes diferenças o separam dos formalistas russos. Se o objec- tivo último dos formalistas era catalogar e analisar os mecanismos semióticos usados na literatura, para o autor uma análise deste tipo constituía unicamen- te um instrumento para investigar os efeitos psicológicos da arte e não um fim em si mesmo (Wertsch, 1988). Vygotski foi mais além do tratamento proposto pelos formalistas; examinou outras propostas, sobretudo a de Humboldt, e considerou que a dicotomia entre fala poética e prosa era insuficiente. Sobre este tema específico o autor afirma o seguinte:

“Esta noção tem uma importância fundamental, embora nem Humboldt nem Potebnya, que desenvolveu posteriormente o seu pensamento, se tenham apercebido de todas as suas implicações (de diversidade funcional da lingua- gem). Não foram mais além da distinção entre poesia e prosa e, dentro desta, entre o intercâmbio de ideias e conversas do quotidiano, ou seja, o mero in- tercâmbio de ideias ou a conversa convencional. Há que realizar outras im- portantes distinções funcionais na fala. Uma delas é a distinção entre o diálo- go e o monólogo (Vygotski, 1995a, p.219).

O texto revela uma forte influência de Yakubinskii (1923, citado por Wertsch, 1988). O último defendia que para se desenvolver uma explicação viável das funções da linguagem se deve distinguir a “fala em forma de monó- logo” da “fala em forma de diálogo”. Esta posição teve um impacto óbvio em Vygotski. Para Yakubinskii, o critério que distingue as formas de fala em mo- nólogo das formas de fala em diálogo não é o número de indivíduos implica- dos mas o grau de participação de ambas as partes numa situação de fala concreta para criar um texto. O último indicou, também, que alguns factos co-

mo a disponibilidade de chaves cinéticas distingue a interacção monologada da dialogada.

Yakubinskii considerava que o diálogo é uma forma natural de interacção verbal geneticamente anterior ao monólogo, uma forma artificial mais tardia. A necessidade de explicar as formulações linguísticas no monólogo escrito, no máximo grau, emerge não só pela ausência de intercâmbio verbal que permi- ta abreviações como também pela ausência de um contexto comunicativo par- tilhado pelo leitor. Yakubinskii considerou que quanto mais a nossa perspecti- va e a do interlocutor têm em comum, mais facilmente percebemos e compreendemos a sua fala na conversação. Esta perspectiva sobre a relação entre expressão linguística explícita e pressupostos partilhados pelos interlocu- tores teve um papel importante na constituição das ideias de Vygotski e reflec- te-se na aplicação que este deu, na sua linha natural de raciocínio, a vários exemplos de Yakubinskii.

Podemos portanto considerar que algumas escolas de poética e de semió- tica soviéticas foram importantes na determinação dos problemas estudados por Vygotski, em especial o formalismo russo. No entanto, como foi referido anteriormente, este facto não significa, que o autor aceitasse plenamente os pressupostos defendidos por esta escola. Ao desenvolver estudos de semiótica no momento em que o formalismo russo marcava o tom das discussões, Vy- gotski optou sobretudo por questionar aspectos que não tinham sido analisa- dos noutros momentos e lugares. Estava em sintonia com os formalistas quanto à insistência de que as investigações em linguística e em poética deviam co- meçar pela análise objectiva dos fenómenos semióticos concretos, mas opôs-se à tendência dos formalistas de identificar somente duas funções da linguagem: a poética e a prática. Discordou também da doutrina inicial dos formalistas sobre a valorização da forma da linguagem independentemente do seu signi- ficado.