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Filosofia e Direito Filosofia do Direito

A voz corrente considera que a Filosofia é vão discutir e especular. A mais comum definição desse tópico será mais ou menos esta: “Filosofia: um ho- mem, vestido de negro, num quarto escuro, de luzes apagadas, à procura de um gato preto... que não está lá”. Outra versão desta vox populi, sempre jo- cosa, garante que a Filosofia é a coisa “com a qual ou sem a qual se fica tal e qual”.

Evidentemente que se trata de perspectivas de total incompreensão da Fi- losofia. Propiciadas quer pela falta de educação, quer pela educação ao con- trário inculcada hoje por muitos meios de comunicação de massas, que privi- legiam o fácil, o acrítico, o acéfalo, o primário, o pulsional. Estas expressões da incompreensão do profanum vulgus são anteriores à ascensão do quarto poder mediático, mas hoje elas nem sequer são formuladas. Muitas pessoas li- mitam-se a um esgar de distanciamento total.

“– Filosofia? - pergunta ou interpela alguém. – Ughrrr... “ – vocifera outrem.

Nada mais. A discursividade, mesmo crítica, está a perder-se.

Todavia, a verdade é que uma coisa é o rigor e a complexidade própria da linguagem filosófica, outra é o estilo cryptico que, não tendo fundamento especulativo, procura apenas afectar sabedoria. Já os Romanos tinham reco- nhecido essa pseudo-filosofia que consiste em amontoar palavras mais ou me- nos estranhas, em frases mais ou menos herméticas, e assim complicar pelo complicar.

A própria literatura teve a sua voga cryptica entre nós, sobretudo nos anos setenta do século XX, até que se entendeu que apenas uma literatura le-

gível passava uma mensagem e... tinha público (Cunha, 1979). O que prova que a tentação do obscuro é permanente entre os intelectuais...

Não será talvez uma mera reacção corporativa, nem fruto de verdadeira incompreensão face ao mundo da Filosofia o que se assinala, muito curiosa- mente, no Digesto: os juristas seriam, segundo esta monumental compilação doutrinal do tempo do Imperador Justiniano, os verdadeiros filósofos, não os que simuladamente afectam sê-lo, por simulacros verbais.

A concepção do Direito como verdadeira filosofia, filosofia prática, tem muitas consequências para aquilatarmos da verdadeira matriz da juridicidade. Não uma técnica subordinada, nem sequer uma ciência, mas uma filosofia que é uma arte, uma forma de arte...uma das belas artes até (Innerarity, 1996)

O Direito coloca problemas profundos do âmbito filosófico. Não se pode avançar um passo no conhecimento do verdadeiro Direito sem esbarrar com a necessidade de uma concepção de Homem e de natureza humana, de bem e de mal, de responsabilidade e de culpa, de liberdade, etc., etc. E como o Di- reito não se limita a reflectir sobre esses problemas - na verdade, reflecte so- bre eles ou na Filosofia do Direito e outras disciplinas jurídicas humanísticas (Puy, 1972; Cunha, 1995, p. 73 ss.) e ainda nos momentos de política jurídi- ca, e afins - , antes tem de decidir, encontrando formas normativas, coman- dos, de acordo com as ideias gerais que acolhe, bem se pode dizer que é uma filosofia prática.

A linguagem do Direito tem, tal como a filosófica, o dever de ser muito ri- gorosa, e tal como a Filosofia necessita de conceitos claros e uma malha teóri- ca, uma gramática, muito coerente. Mas o Direito não pode ficar por aí: tem de decidir o que deve ser lei, tem de afirmar o que considere a melhor doutri- na, tem de decidir os litígios com sentenças... O Direito não pode prescindir da Filosofia, mas não fica pela teoria, concretiza-se na acção. É da sua pró- pria natureza uma tal normatividade.

A guarda avançada da Filosofia no Direito é a Filosofia do Direito. Mas há momentos cruciais de aplicação de filosofias à realidade quando se apro- va uma lei, se elabora uma doutrina, se decide numa sentença. Determinar uma pena, por exemplo, a pena de morte, tem necessariamente como pressu- posto uma certa concepção filosófica sobre o Homem, a vida e a morte, o pa- pel do Estado, da pena, etc. Decidir a legalização do aborto, idênticas ques- tões coloca, porque do mesmo modo põe em causa o Direito à Vida, e assim uma ideia de Humanidade. Gizar uma teoria doutrinal sobre a culpa implica um posicionamento sobre a liberdade humana, o livre arbítrio, enfim, tudo matérias que implicam concepções antropológicas, e até ontológicas e mesmo metafísicas de enorme importância.

É certo que muitos dos legisladores, dos jurisconsultos e professores e dos juizes não pensarão explicitamente nas doutrinas filosóficas que os seus actos implicam. E mesmo sabemos que o positivismo é a filosofia espontânea dos ju- ristas (Teixeira, 2000), o que quer dizer, em parte, que naturalmente não filo- sofam. Mas a Filosofia, ainda que implícita, ainda que difusa, não deixa de comandar as suas acções. Mesmo uma filosofia anti-filosófica como pode ser a filosofia do obedecer e do aplicar, o positivismo legalista.

A qualidade e a credibilidade dos actores jurídicos seria bem diferente se não houvesse um certo desprezo tecnicista, tecnocrático, e fruto da ignorância, pela Filosofia do Direito, desde a Universidade. Ignorando-se que os estudantes irão sobretudo valer pela sua inteligência, criatividade, agilidade mental, capa- cidade de argumentação, e pelo conhecimento daquelas coisas básicas e estru- turais que não mudam, e não pelo decorar de códigos que uma penada do le- gislador volve em caixotes do lixo (Von Kirchmann, 1847, 1949).

De entre essa utensilagem de longo alcance está a Filosofia do Direito, cu- jo papel formativo e cultural é, sobretudo em cursos muito tecnicistas, que en- sinam muitos pormenores mutáveis, absolutamente imprescindível e essencial. Mas não se trata apenas do seu carácter formativo, cultural, humanístico: também o seu carácter prático e de preparação para coisas práticas - não há prática revolucionária sem teoria revolucionária, dizia o próprio Lenine. Não há melhor prática que uma boa teoria? Não, mas uma boa prática tem a ins- pirá-la uma boa teoria.

O êxito prático dos Filósofos do Direito é notável. Em Espanha está prova- do de há muito que grandes filósofos do Direito, longe de terem obstáculos ou bloqueios teoricistas que os afastassem das pessoas e dos problemas da vida real são nomeados e desempenham com equilíbrio e com brilho funções im- portantes (Puy,1972): e na verdade vemo-los, e não só em Espanha, em rele- vantes posições políticas e académicas: são reitores, vice-reitores, banqueiros, diplomatas, parlamentares, ministros... A Filosofia do Direito (e o Direito em geral, quando bem pensado e bem praticado) ensina a agir como homem de pensamento e a pensar como homem de acção, numa ligação fecunda entre as várias dimensões dos problemas que supera a própria dicotomia entre teo- ria e prática. Oposição na realidade um tanto caduca já.

Os grandes temas da Filosofia do Direito provam que as grandes ques- tões filosóficas relacionadas com o Homem e com a Sociedade lhe não esca- pam. Vejamos apenas um punhado de exemplos.

A questão prévia sobre o que é o Direito implica, realmente, para ser vis- ta profundamente, uma teodiceia, uma metafísica, uma ontologia, uma gno- seologia e uma fenomenologia, pelo menos.

A pergunta se há algo de jurídico mais profundamente vinculante que o direito positivo coloca problemas de ontologia e de deontologia. Antígona (Steiner, 1995), símbolo do direito justo, do direito natural para alguns, de conflito entre tradição e lei (Tzitzis, 1996), coloca o drama profundamente fi- losófico das relações entre o poder e o direito, o poder e a família, o direito positivo e as leis mais altas...

A problemática das relações do Direito com outras racionalidade e outras ordens sociais e normativas, como a religião, a moral, a ideologia, a seguran- ça, etc., implicam epistemologia geral e especial (Reale, 1999), além de colo- carem questões éticas, filosófico-políticas, etc...