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A ANCESTRALIDADE BIOGEOGRÁFICA ESTÁ ASSOCIADA ÀS CONDIÇÕES AMBIENTAIS E SOCIAIS DE UMA POPULAÇÃO DE UM CONDIÇÕES AMBIENTAIS E SOCIAIS DE UMA POPULAÇÃO DE UM

RESUMO

No Brasil, como em outros países latino-americanos, a cor da pele é um importante determinante das oportunidades de vida, com os indivíduos de pele mais clara alcançando maiores níveis de renda e escolaridade do que aqueles de pele mais escura. Essas desigualdades também se estendem para o campo da saúde, sendo causadas principalmente pelas diferenças de status socioeconômico entre brancos e não-brancos. Diferenças genéticas entre grupos étnico-raciais também poderiam desempenhar um papel nestas desigualdades e nos últimos anos vários estudos têm investigado a associação entre ancestralidade biogeográfica e doenças complexas. No entanto, a associação entre a ancestralidade biogeográfica e determinantes sociais da saúde, embora reconhecida como uma fonte potencial de confundimento, tem sido pouco investigada. Além disso, trabalhos comparando a associação da ancestralidade biogeográfica e da cor da pele autodeclarada com esses determinantes são praticamente inexistentes. Assim, o presente estudo teve como objetivo investigar e comparar a associação da ancestralidade biogeográfica e da raça/cor autodeclarada com variáveis indicadoras de status socioeconômico, condições ambientais e infecções por patógenos. Um estudo de corte transversal incluindo 1246 crianças residentes em uma grande área urbana brasileira foi conduzido. A ancestralidade biogeográfica foi estimada utilizando 370.539 marcadores autossômicos amostrados ao longo do genoma. A ancestralidade africana foi negativamente associada com a escolaridade materna e a renda familiar e positivamente associada com infecções e variáveis indicadoras de condições ambientais mais precárias. Um padrão inverso foi observado quando se considerou a ancestralidade europeia. A cor da pele autodeclarada foi significativamente associada apenas com infecções por patógenos. Discutimos algumas hipóteses para explicar estes resultados, especialmente o fato da ancestralidade biogeográfica capturar diferenças não detectadas pelo uso das categorias de raça/cor autodeclarada. Finalmente, nossos resultados sugerem cautela na interpretação de associações significantes entre a ancestralidade biogeográfica e diferentes doenças complexas como decorrentes de fatores genéticos diferencialmente distribuídos entre os grupos étnico-raciais.

Palavras-chave: ancestralidade biogeográfica, desigualdades raciais, status socioeconômico, infecções

59 INTRODUÇÃO

As desigualdades raciais são observadas para diferentes desfechos na área da saúde, sendo a raça/cor e a etnia tradicionalmente consideradas um eixo fundamental para o estudo das desigualdades de saúde em países europeus e nos Estados Unidos, e mais recentemente também no Brasil (1-3). Embora diferenças de status socioeconômico entre os grupos étnico-raciais sejam responsáveis por grande parte dessas desigualdades, a discriminação racial assim como potenciais fatores genéticos também podem estar envolvidos (4, 5). No Brasil, cuja população miscigenada resulta de mais de 500 anos de contato físico, social e comercial entre europeus, africanos e nativos americanos (6), a classificação baseada na cor da pele está intimamente associada com o conceito de raça, sendo a raça e a cor da pele autodeclarada utilizados como termos intercambiáveis em estudos epidemiológicos (7). De fato, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde meados do século 20 instrui os entrevistadores a codificar a raça no censo oficial de acordo com a autodeclaração dos entrevistados, o que constitui a única fonte de informação sobre categorias de raça/cor a nível nacional (8). No entanto, a definição racial é influenciada por uma miríade de fatores, tais como a autopercepção, a classificação da raça/cor feita por outras pessoas, além de contextos institucionais e culturais (9, 10). Além disso, a maneira como as pessoas se definem em relação à sua própria raça/cor pode não coincidir com a classificação feita por um terceiro (11).

Apesar de todas as questões envolvidas com o constructo raça/cor autodeclarada, no Brasil, como em outros países, ela tem sido tradicionalmente usada como um proxy para a ancestralidade biogeográfica (ou ancestralidade genética) (12), definida como as proporções do genoma individual herdadas de cada um dos grupos continentais que contribuíram para a formação da população miscigenada (13). Por sua vez, o aperfeiçoamento das tecnologias de genotipagem e a catalogação da diversidade genética humana em bases públicas de dados permitiu a seleção de marcadores genéticos informativos de ancestralidade (MIAs), que são utilizados para estimar as proporções de ancestralidade biogeográfica individual (14). Essa abordagem fornece uma

estimativa mais objetiva sobre as origens ancestrais de um indivíduo do que a raça/cor autodeclarada. Além disso, uma vez que a ancestralidade genética está relacionada com a cor da pele autodeclarada, embora com magnitude variada em diferentes populações (15, 16), a mesma pode ser utilizada como um proxy para fatores genéticos subjacentes às diferenças étnico-raciais observadas para o risco de doenças específicas. Em função disso, nos últimos anos tem havido um crescente interesse nos estudos de associação entre ancestralidade biogeográfica individual inferida por marcadores genéticos e diferentes doenças complexas (17). No entanto, considerando a natureza multifatorial de muitos dessas doenças, o conhecimento acerca da relação entre a ancestralidade biogeográfica e os determinantes sociais da saúde é essencial para evitar que sejam atribuídas a fatores genéticos diferenças para o risco de doenças que são devidas a fatores não genéticos que covariam com a ancestralidade (18, 19). Do mesmo modo que a raça/cor autodeclarada, a ancestralidade biogeográfica atua também como um marcador de exposição a fatores não biológicos, a exemplo de variáveis socioambientais, os quais podem explicar as associações observadas entre a ancestralidade individual e doenças diferencialmente distribuídas entre os grupos étnico-raciais (20). Contudo, estudos sobre a relação entre a ancestralidade biogeográfica individual e status socioeconômico, variáveis indicadoras de condições de habitação e de vida e infecções por patógenos são escassos. Da mesma forma, a comparação entre a ancestralidade biogeográfica e a raça/cor autodeclarada como proxies para estes fatores tem sido pouco investigada. A coorte do projeto SCAALA-Salvador (Social Changes, Asthma and Allergies in

Latin America) dispõe de uma grande gama de informações sobre fatores

sociais e ambientais que desempenham papel importante para o desenvolvimento de asma e alergias em crianças e adolescentes, incluindo variáveis indicadoras de status socioeconômico, condições ambientais e marcadores de infecções (21). Isso oferece a oportunidade de investigar e comparar a associação da ancestralidade biogeográfica e da raça/cor autodeclarada com essas diferentes variáveis. Assim, o presente estudo teve como objetivos: 1) investigar a associação da ancestralidade biogeográfica com

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comparar a associação da ancestralidade biogeográfica individual e da raça/cor autodeclarada com esses diferentes fatores.

MÉTODOS

População de estudo e coleta de dados

O estudo foi realizado na cidade de Salvador, no Nordeste do Brasil, a qual tem cerca de 2,6 milhões de habitantes. O delineamento metodológico já foi descrito em maiores detalhes anteriormente (21, 22). Resumidamente, a população do presente estudo é constituída por 1.246 crianças previamente estudadas para avaliar o impacto de um programa de saneamento e arroladas quando tinham entre 0-3 anos de idade no período de 1996 a 2003 (23, 24). Questionários padronizados foram aplicados aos pais ou responsáveis pelas crianças entre 1997 e 2003 (linha de base) sendo coletados dados sobre habitação, saneamento e condições socioeconômicas, além da realização de exames parasitológicos para infecções por helmintos intestinais (25). A coleta de dados foi repetida em 2005, quando amostras de sangue foram coletadas e testes sorológicos e parasitológicos foram realizados. Com relação aos sistemas de água encanada e esgotamento sanitário foram obtidos dados a partir de dois momentos diferentes: o início da vida (<3 anos de idade) e mais tarde na infância (faixa etária de 4-11 anos). A presente análise utilizou fatores sociodemográficos (idade, sexo, renda mensal e escolaridade materna), ambientais (presença relatada de roedores no domicílio) e marcadores de infecções (infecção por helmintos intestinais e testes sorológicos para diferentes patógenos) medidos em 2005, quando as crianças estavam com idades entre 4 a 11 anos. A infecção helmíntica foi definida pela presença de ovos de helmintos intestinais em amostras de fezes (Ascaris lumbricoides e / ou Trichiura trichiuris). Infecções (ou exposição prévia a patógenos) foram definidas pela presença de resultados positivos em testes sorológicos para IgG para 6 patógenos (T. gondii, H. pylori, e os vírus EBV, hepatite A, Herpes simplex, Herpes zoster) e a presença de ovos de helmintos intestinais nas amostras de fezes (A. lumbricoides e T. trichiuris). Utilizou-se um limiar de 3

infecções ou menos para distinguir carga de infecção leve de pesada, como relatado anteriormente (26).

Para comparar as associações observadas da raça/cor autodeclarada e da ancestralidade biogeográfica individual com os diferentes desfechos avaliados na infância foi utilizada uma subamostra dos participantes do SCAALA composta de 878 indivíduos na faixa etária de 12 a 19 anos. Estes 878 indivíduos (69 autodeclarados brancos, 377 autodeclarados pardos e 432 autodeclarados negros) responderam à pergunta fechada “Qual a sua raça/cor?”, com cinco opções de resposta (branco, pardo, preto, amarelo e indígena), e tinham informações completas sobre as proporções de ancestralidade biogeográfica. Não foram observadas diferenças estatisticamente significantes entre indivíduos com e sem informações para raça/cor com relação às proporções de ancestralidade e os diferentes desfechos investigados (Tabela suplementar 1).

Genotipagem e estimativa da ancestralidade biogeográfica

O DNA foi extraído a partir de sangue periférico usando um kit comercial (Gentra® Puregene® Blood Kit (Qiagen) e as amostras foram genotipadas pela Illumina (San Diego, Califórnia), utilizando a plataforma Omni 2.5M. Indivíduos aparentados foram excluídos usando o método implementado no software REAP (Estimativa de indivíduos relacionados em populações miscigenadas) (27). Cada par de indivíduos foi considerado relacionado se o coeficiente de parentesco estimado entre eles foi ≥0.1. Este corte inclui parentes de segundo grau, a exemplo de meios-irmãos ou com graus de parentesco mais próximos. Para estimar a contribuição genômica de ancestrais africanos, europeus e nativo-americanos para cada indivíduo da população do estudo utilizou-se o software ADMIXTURE (28). Considerou-se um modelo tri-híbrido sem supervisão (k = 3) baseado em 370.539 SNPs comuns às amostras dos projetos HapMap, Diversidade do Genoma Humano (HGDP) (29, 30) e da população do estudo. Como painéis externos (pseudoancestrais) foram utilizadas as seguintes amostras do HapMap: 266 africanos (176 Yorubás de Ibadan, Nigéria [YRI] e 90 Luhyas de Webuye, Kenia [LWK]), 262 europeus

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indivíduos da Toscana, Itália [TSI]), 170 indivíduos miscigenados (77 mexicanos de Los Angeles, Califórnia [MEX] e 83 afro-americanos do sudoeste dos EUA [ASW]), e 93 nativo-americanos do HGDP (25 da tribo Pima, 22 da Karitiana, 25 da Surui e 21 da tribo Maya). Decidiu-se não realizar os testes de associação com a ancestralidade ameríndia, uma vez que a proporção de ancestralidade ameríndia em nossa população foi muito baixa (mediana 5,92%, intervalo interquartílico 4,26% - 7,91%).

Análises estatísticas

Devido à escala de medição da variável ancestralidade biogeográfica todas as análises iniciais foram realizadas utilizando abordagem não- paramétricas, a exemplo do teste qui-quadrado de Pearson e do teste de Mann-Whitney. Medianas foram usadas como medida descritiva para caracterizar a distribuição da ancestralidade biogeográfica em função dos diferentes desfechos investigados. Para estimar a magnitude da associação entre a proporção de ancestralidade africana/europeia e os diferentes desfechos foram realizadas análises univariadas por meio de regressão logística binária e multinomial. As medidas de Odds Ratio (OR) e os respectivos intervalos de confiança de 95% foram calculados para cada 20% de aumento da ancestralidade biogeográfica individual. A relação entre a raça/cor autodeclarada (codificada como 0 = brancos; 1 = pardos e 2 = pretos) e a ancestralidade biogeográfica individual estimada pelo ADMIXTURE foi avaliada por meio do teste não paramétrico rho de Spearman. Já a concordância entre a raça/cor autodeclarada e os tercis de ancestralidade africana foi estimada através do coeficiente kappa. Um nível de significância de 5% (α = 0,05) foi adotado nas análises. As análises foram feitas no software Stata, versão 12.0 (StataCorp, CollegeStation, TX, EUA).

RESULTADOS

A maioria da população do estudo foi constituída de meninos (52,6%) e teve idade entre 4 - 5 anos (38,3%) (dados não mostrados). As demais características gerais da população estudada e a mediana da proporção de

ancestralidade biogeogeográfica de acordo com variáveis sociodemográficas, variáveis ambientais e infecções são apresentados na Tabela 1. Menos de um terço das mães (30,7%) havia concluído o ensino médio ou superior e a maioria das famílias (53,6%) tinha renda inferior a um salário mínimo. Das crianças pesquisadas, 20,1% e 56,0% nunca tiveram a água encanada e esgotamento sanitário em casa, respectivamente, ou, no máximo, tiveram em apenas um dos períodos de tempo avaliados. A presença de roedores foi reportada em mais da metade dos domicílios (56,9%). A prevalência de infecções por helmintos e de carga pesada de infecções foi de 30,5% e 26,9%, respectivamente. Não foram observadas diferenças significantes para os valores medianos de ancestralidade africana e europeia de acordo com o sexo ou a idade dos participantes (dados não mostrados). Uma diminuição nos valores medianos da ancestralidade africana foi observada com o aumento da escolaridade materna e da renda familiar. No que diz respeito às variáveis ambientais, as crianças que nunca tiveram água encanada no domicílio ou que, no máximo, tiveram em apenas um dos períodos de tempo considerados e aquelas que viviam em domicílios com presença relatada de roedores apresentaram maior ancestralidade africana em comparação com aquelas que sempre tiveram água encanada e que viviam em domicílios sem presença relatada de roedores, respectivamente. Não foram observadas diferenças significantes para as proporções de ancestralidade em relação à presença de esgotamento sanitário no domicílio. Crianças que apresentaram carga pesada de infecções e que foram positivas para infecções por helmintos tiveram valores medianos de ancestralidade africana significativamente maiores do que aquelas com carga leve de infecções e sem infecções helmínticas, respectivamente. Resultados opostos foram sempre observados para as proporções medianas de ancestralidade europeia.

A razão de chances dos diferentes desfechos investigados em função da variação contínua da proporção de ancestralidade biogeográfica é mostrada na Tabela 2. Cada aumento de 20% da ancestralidade africana foi negativamente associado com níveis mais elevados de educação materna tomando-se com referência a escolaridade materna primária (OR para escolaridade materna

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escolaridade materna maior do que o ensino médio = 0,58; 95% IC 0,46-0,73). Mesma tendência foi observada para a renda quando o estrato salarial mais baixo (até 1 salário mínimo) foi usado como referência (OR para 1-2 salário mínimo = 0,74; IC 95% 0,61-0,89, e OR para> 2 salários mínimos = 0,59; IC 95% 0,47-0,74 ). Em relação às variáveis ambientais, cada incremento de 20% da ancestralidade africana individual aumentou a chance de não ter água encanada no domicílio ou, no máximo, ter em um único ponto do tempo (OR = 1,52; IC 95% 1,24-1,86). Da mesma forma, a proporção de ancestralidade africana foi positivamente associada com a presença relatada de roedores no domicílio (OR = 1,45; IC 95% 1,23-1,71). Uma associação negativa, por sua vez, foi observada entre a proporção de ancestralidade africana e a presença de esgotamento sanitário (OR para nunca ter tido esgotamento sanitário ou, no máximo, ter em um ponto de tempo = 0,84; IC 95% 0,72-0,99). Um maior risco de carga pesada de infecções (OR = 1,65; IC 95% 1,34-1,92) e infecções por helmintos (OR = 1,43; IC 95% 1,18-1,71) também foi observado com o aumento da ancestralidade africana das crianças. A ancestralidade europeia foi fortemente e negativamente correlacionada com a ancestralidade africana (rho = -0,97) e, portanto, resultados opostos foram observados para a associação da ancestralidade europeia com os desfechos investigados (Tabela 2). Uma exceção foi a variável esgotamento sanitário, para a qual não foi observada uma associação significante com a ancestralidade europeia. As medidas de associação da ancestralidade biogeográfica com esses diferentes desfechos permaneceram praticamente inalteradas nos modelos logísticos ajustados por sexo e idade (dados não mostrados).

Apesar da baixa concordância (kappa=0.171) entre raça/cor autodeclarada e os tercis de ancestralidade bigeográfica africana, uma subanálise com 878 indivíduos que continham dados completos dessas duas variáveis foi realizada com intuito de comparar se a associação entre os desfechos e cada uma das respectivas variáveis apresentavam resultados similares. Os resultados da associação da raça/cor autodeclarada e da ancestralidade biogeográfica com os diferentes desfechos são apresentados na Tabela 3. A raça/cor autodeclarada e a ancestralidade individual africana foram significativamente associadas tanto com carga de infecções quanto com a

infecção por helmintos. A escolaridade materna e a renda familiar foram significativamente associadas com a ancestralidade individual africana, mas não com a raça/cor autodeclarada. Da mesma forma, a ancestralidade individual africana, mas não a raça/cor autodeclarada, foi associada com a presença relatada de roedores no domicílio. Nenhuma das outras variáveis foi significativamente associada nem com a raça/cor autodeclarada e nem com o tercis da ancestralidade africana.

Os resultados da associação entre a ancestralidade africana individual (contínua) e os diferentes desfechos estratificados de acordo com as categorias de raça/cor autodeclarada são mostrados na Figura 1. Entre os autodeclarados negros a proporção de ancestralidade africana foi positivamente associada apenas com a presença relatada de roedores no domicílio (OR = 1,48; IC 95% 1,07-2,05). Entre os autodeclarados pardos, por sua vez, cada aumento de 20% na proporção da ancestralidade africana aumentou significativamente as chances de presença relatada de roedores no domicílio (OR = 1,99; IC 95% 1,40-2,82), carga pesada infecções (OR = 1,56; IC 95% 1,09-2,25) e infecções por helmintos (OR = 1,50; IC 95% 1,03-2,20). Além disso, a proporção de ancestralidade africana foi negativamente associada com níveis mais altos de renda (OR para renda familiar > 2 salários mínimos = 0,55; IC 95% 0,34-0,87) e de escolaridade materna (OR para escolaridade materna maior que o ensino médio = 0,49; 95% IC 0,31 - 0,78 e OR para escolaridade materna maior que o ensino fundamental = 0,58; IC 95% 0,38-,89).

DISCUSSÃO

O presente estudo foi conduzido na cidade de Salvador, localizada na região nordeste do Brasil e com uma população de 2,6 milhões de habitantes de acordo com o último censo oficial do IBGE realizado em 2010, dos quais mais de 80% são autodeclarados pardos ou pretos. Nós observamos que a proporção de ancestralidade africana foi negativamente associada com o status

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associação negativa entre fatores socioeconômicos e a proporção de ancestralidade individual oriunda de grupos que foram dominados e escravizados por europeus durante o período colonial (ameríndios e africanos) foi previamente relatada para outras populações miscigenadas (31-34). A ancestralidade africana foi positivamente associada com piores condições ambientais (ausência de água encanada e presença relatada de roedores no domicílio) e infecções por patógenos. Estes resultados demonstram a persistência de uma estratificação genética e social, com indivíduos com maior ancestralidade africana ocupando posições mais desfavoráveis e sofrendo prejuízos, mesmo em uma população pobre e altamente miscigenada de um grande centro urbano na América Latina.

Embora a raça/cor autodeclarada tenha sido associada com renda e nível educacional em estudos que analisaram amostras de pesquisas nacionais no Brasil (35-38), no presente estudo não foram observadas associações significantes entre raça/cor e status socioeconômico. Além disso, a raça/cor autodeclarada foi significativamente associada com infecções, mas não com variáveis indicadoras de exposição à sujeira e condições ambientais mais precárias. Por outro lado, mesmo quando categorizada com base nos tercis da sua distribuição contínua, a ancestralidade africana permaneceu significativamente associada com a maior parte dos desfechos investigados na subamostra de indivíduos com dados para a raça/cor autodeclarada. Ademais, quando a ancestralidade biogeográfica foi utilizada como variável contínua nesse mesmo universo de 878 indivíduos, observou-se o mesmo padrão de associação com os desfechos que o verificado na amostra completa (Tabela suplementar 3).

Esses resultados podem ser explicados por algumas hipóteses discutidas abaixo. Em primeiro lugar, uma vez que a diferença de renda entre brancos e não-brancos no Brasil é mais proeminente nos limites superiores da distribuição de renda (36), a ausência de associação observada entre raça/cor autodeclarada e status socioeconômico pode se dever ao fato de que nossa população de estudo é predominantemente de baixa renda, portanto, situada na parte inferior dessa distribuição. Em segundo lugar, a autodeclaração da raça/cor, como usada no censo brasileiro e no presente estudo, é influenciada

por fatores subjetivos, percepções de classes sociais ou pelo próprio contexto social (39). Assim, alguns indivíduos de pele mais clara e pertencendo a famílias com maior status socioeconômico podem ter se declarado como não- brancos (pretos ou pardos), enquanto que alguns indivíduos de pele mais escura e de famílias com menor status socioeconômico podem ter se declarado como pardos ou mesmo brancos, processo conhecido como "branqueamento" (40). Portanto, esses fluxos de indivíduos com status socioeconômico mais elevado para os grupos de cor de pele mais escura e de outros com status socioeconômico mais baixo para grupos de cor de pele mais clara poderia neutralizar as diferenças entre eles. Finalmente, a autodeclaração da raça/cor pode ser um proxy menos apropriado sobre como as outras pessoas classificam a raça/cor de alguém (11). Uma vez que a discriminação racial e os prejuízos dela advindos dependem mais da forma como os outros classificam