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4 PRINCÍPIOS E ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS DE VOVÓ CICI

4.1 PRINCÍPIOS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS DE VOVÓ CICI

4.1.1 Ancestralidade

Em muitos momentos dos seus relatos, Vovó Cici demonstrou o respeito e a confiança que tinha nos saberes que chegaram até ela através dos seus ancestrais, que por sua vez, para ela, guardam relações com a espiritualidade e os orixás. Segundo ela, nada acontece por acaso, todo rumo da vida tem uma vinculação com espiritualidade de cada pessoa e a

espiritualidade relaciona-se com a opção de dedicação de fazeres que cada pessoa faz e desenvolve ao longo da vida.

São dons, são coisas, são espiritualidades que a pessoa tem. Cada um tem uma coisa diferente do outro. [...] A partir do momento que o ser humano ele é criado, o ser humano pensa, ele pensa porque ele é espiritualizado, o espírito é imortal, quando ele nasce já vem trazendo espíritos anteriores de grande conhecimento e vai desenvolver dentro daquela coisa que foi, da qual ele foi escolhido pra trazer, ninguém nasce por acaso. Eu creio que sim, já estava no destino, já estava no tempo da pessoa. É o que vocês chamam de dom, eu chamo de espiritualidade. Tem os espíritos o que tem o dom da música, o que tem o dom de tocar, o que tem o dom de compor, o que tem o dom de cantar, o que tem o dom de contar, o que tem o dom de dançar. Tem aqueles que contam, e dançam e tocam, como os griôs. (VOVÓ CICI, 2018).

Sendo assim, o fazer da contação de histórias que Vovó desenvolve relaciona-se com a espiritualidade dela, assim como suas histórias relacionam-se aos saberes de seus ancestrais. Esse aspecto ontológico de entendimento do mundo vincula-se ao pensamento de Teresa Lucena (2011, p. 174), para quem “a ancestralidade é o reconhecimento profundo aos ancestrais, àqueles que já se foram e aos seus saberes. Existe quase um culto àqueles que vieram antes de nós e são os responsáveis pelo caminho que o conhecimento percorre através do tempo.” Essa linha de continuidade não só é uma referência aos antepassados, como uma reverência à tradição, uma garantia de que, de alguma forma, o tempo é cíclico, por isso o antigo se faz atual, vigora e renasce a cada vez que as histórias se repetem.

Frequentemente ao longo dos relatos Vovó referiu-se à sabedoria dos seus ancestrais iorubás. Essa referência veio através da afirmação de que a cultura à qual ela pertence é a cultura iorubá. Na sequência dessa fala, geralmente, vinha a explicação de algum fato, comida, uso de alguma roupa ou adereço e, principalmente, de histórias que têm uma interpretação própria dentro do sistema simbólico do povo iorubá.

Portanto, a contação de histórias é uma forma de transmitir saberes e símbolos próprios de uma cultura que vão sendo conhecidos por muitas gerações. Inúmeras histórias remetem ao surgimento de toda a sabedoria que há na terra: são as histórias que começam com “no tempo em que os bichos falavam.”. Segundo vovó, essas histórias nos revelam saberes que vêm de muito longe no tempo e no espaço, são histórias míticas de um tempo imemorial.

As histórias marcadas pela expressão “no tempo que os animais falavam”, segundo afirma Eduardo Viveiros de Castro (2011)17

[...] essa definição, hipotética, mas verossímil, é, na verdade, muito profunda, porque os homens nunca se conformaram por terem obtido a cultura à custa da perda do acesso comunicativo às outras espécies. O mito, então, é uma história do tempo em que os homens se comunicavam com o resto do mundo. (CASTRO, 2011, p. 11).

As histórias míticas, portanto, fazem sentido quando se reconhece o vínculo com a ancestralidade que se expressa em toda a natureza e possibilita a comunicação com ela. Assim, são histórias que não precisam evoluir, já são inteiras com essa característica que têm. Elas explicitam por elas mesmas os saberes ancestrais, nos quais o sagrado está tanto na forma humana, como na forma animal e em muitas outras formas presentes na natureza. Por conseguinte, produções textuais, imagéticas e de expressão corporal que comunicam esse sagrado múltiplo devem ser aceitas e incentivadas pelas práticas educativas.

[...] mas África, o animal você não tem ideia como é forte. As pessoas se sentem como um animal. [...] A pessoa se sente tomada por aquele espírito daquele animal. Entre os fons ele chama Logosé e ele é chefe de uma clã chamada Logosé. As casas cujas pessoas pertencem a esse clã têm sempre o crocodilo desenhado na entrada da casa, na parede, como você vê ali (mostra um painel desenhado pelas crianças do espaço na casinha de bonecas de alvenaria que há no jardim do Espaço Cultural). Aquilo ali é genial, cada criança botou o que ela é, o que ela sente. Impressionante, você vê em toda África! (VOVÓ CICI, 2018).

Nesse trecho, dona Cici usa o exemplo de uma atividade realizada com as crianças que, na perspectiva dela, se relaciona com a espiritualidade e com a ancestralidade: o desenho de livre expressão feito pelas crianças, na parede externa de uma casinha de alvenaria chamada de casa das princesas, que há no jardim do Espaço Cultural. Segundo Vovó, essa proposta permitiu que as crianças expressassem as relações que elas têm com a força e com outras características dos seus ancestrais, sejam pessoas, orixás e animais, representando esses seres nas pinturas.

Diante do exposto, a expressão livre, seja através de desenhos, seja com movimentos corporais, falas e outras linguagens são compreendidas como possibilidades de expressar conexões com linguagens imemoriais que são as linguagens da ancestralidade e que, apesar de não permitir o entendimento dos significados de tais manifestações de forma sistematizada pela cognição, são importantes elementos que devem integrar as atividades educativas, pois

sobre o pensamento de Lévi-Strauss nas suas obras Mitológicas e História de Lince, acerca dos mitos.

LAGROU, Elsje; BELAUNDE, Luisa Elvira. DO MITO GREGO AO MITO AMERÍNDIO: UMA

ENTREVISTA SOBRE LÉVI-STRAUSS COM EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO. Sociol. Antropol., Rio de Janeiro , v. 1, n. 2, p. 9-33, Nov. 2011 . Disponível em:

fortalecem as vinculações espirituais da criança com a sua coletividade, transmitindo sentimento de pertencimento e de continuidade, algo que tentei fazer criando a figura 5.

Figura 5: Movimento

A Pedagogia Griô, corrente de saber-fazer em educação que tem muitas características do enfoque do pensamento decolonial, fundamenta-se largamente na ancestralidade como um princípio das práticas vivenciais que propõe (PACHECO, 2015). Segundo Lilian Pacheco (2015), a vivência é um espaço mítico de expressão da identidade individual e coletiva e a aprendizagem que ocorre nesses espaços gera registros orgânicos, orais, corporais e culturais. Sendo assim, esse modelo de ação pedagógica e práticas educativas são possibilidades de aprendizados, elas representam

[...] aprender mergulhando no universo da oralidade, da memória e da tradição que está nos ofícios, nos rituais, cantos, danças, brincadeiras, dramas, sentimentos identitários, mitos, símbolos, saberes e fazeres, ciências, histórias e projetos de vida. Aprender mergulhando no universo da nossa própria ancestralidade. Aprender como os Griôs aprendem. No universo da oralidade é necessário aprender e transmitir o conhecimento oralmente, por meio da memória do corpo, da paciência pedagógica, de uma concepção orgânica de tempo, do compromisso com o poder da palavra (PACHECO, 2015, p. 85).

Diferentemente das práticas corriqueiras nas escolas, a Pedagogia Griô, fundamentando-se na ancestralidade, propõe que a transmissão do conhecimento seja um saber e um fazer que derive de inúmeras linguagens e que permitam que as produções dos(as) educandos(as) se relacionem aos universos simbólicos da mítica da brincadeira, da dança e do canto. Por isso, as propostas de práticas pedagógicas devem abrir espaços para tais criações e acolhê-las independente do resultado. Nessas práticas não devemos incentivar que essas

produções “evoluam” e que as crianças passem do estágio de representar animais dotados de características humanas, para fazer apenas humanos; ou que passem de fazerem textos que iniciam com “no tempo que os animais falavam”, para fazerem textos dissertativos com informações da ‘realidade objetiva’, ou ainda que passem da cultura oral para a escrita deixando de valorizar a oralidade. Esperar essa mudança é acreditar na existência de estágios evolutivos baseados no mito do eurocentrismo e podem inibir as manifestações da ancestralidade e da espiritualidade dos(as) educandos.

A expressão livre, através de desenhos, com movimentos corporais, musicalidades, falas e outras expressões são compreendidas como possibilidades de expressar conexões com linguagens imemoriais que são as linguagens da ancestralidade e que, apesar de não permitir o entendimento dos significados de tais manifestações de forma sistematizada pela cognição, são importantes elementos que devem integrar as atividades educativas, pois fortalecem as vinculações espirituais da criança com a sua coletividade, transmitindo sentimento de pertencimento e continuidade e favorecendo os processos de identidade e resistência social.