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4 PRINCÍPIOS E ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS DE VOVÓ CICI

4.2 ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS DE VOVÓ CICI

4.2.5 Presença de animais e orixás nas histórias

Existe, tem vários tipos de história tem história que conta no tempo que os bichos falavam, você não sabe? Ok, dentro da cultura iorubá o animal fala com você, pode ser metade orixá, metade gente. Isso pra gente é comum, e pras crianças também, mas para o mundo de vocês é diferente (VOVÓ CICI, 2018).

A relação entre os saberes dos animais e das pessoas é uma característica do sistema de crenças dos ancestrais iorubas. Segundo dona Cici, nas culturas iorubá e fon19, o animal é um símbolo que representa as características das pessoas, sendo muito empregado como uma forma que as pessoas encontram para evocarem as forças desse animal e, por isso, estão presentes nas histórias míticas. Na fala de Vovó há referência a um outro tempo, que também é um outro espaço, no qual não há incidência do eurocentrismo, que criou a forte oposição entre natureza e cultura, atribuindo o sentido de evolução às culturas que se distanciavam do reconhecimento de pertencimento à natureza e se aproximavam do progresso civilizatório, característica própria da monocultura do saber baseada no eurocentrismo (SODRÉ, Muniz, 2012).

Eu me lembro uma vez que eu disse assim: “vocês sabem de que nós descendemos, a maioria dos negros do Brasil?” Aí eles dizem: “ da África!”, aí eu disse assim: “vocês já viram como é grande o continente?”, aí peguei um mapa que tinha aqui, continente africano, “ mas a gente quer história da pequena sereia”, “vocês sabem de onde vem a pequena sereia?”, “ não, vovó”, “vem da Dinamarca”, aí fui lá e peguei o mapa da europa, mostrei a Dinamarca, aí eu botei o dedo, eles não conseguiam nem ver a Dinamarca, de tão pequenininha, eu disse, “ então quer dizer, esse daqui, grande, de onde nós descendemos, vocês não conhecem, mas daqui, a história desse país pequenininho, vocês conhecem a história da pequena sereia... pois hoje eu vou contar a história de um príncipe, super, super, super inteligente, mas muito teimoso”, estão me olhando, “ esse príncipe é africano, vovó?”, “é”, “ como é o nome dele?”, eu disse “ Oxossi”, aí um olhou pro outro... “e, a mãe dele, Yemanjá”, aí todo mundo [faz cara de contemplação], aí eu entendi, porque Yemanjá é muito cultuada e conhecida na Bahia como um dos orixás afro-brasileiros, de origem africana, mais conhecido. Não sei se a criança se encanta com a mulher que é peixe e é uma sereia, ou se eles encantam antes com uma sereia, porque eles se encantam? (VOVÓ CICI, 2018).

19 Segundo Rogério de Almeida e Júlio Boaro (2016) o povo Fon do Benin é um dos povos mais tradicionais da costa oeste africana. Essa etnia é uma das várias “etnias africanas trazidas para o Brasil para servirem como escravos no Brasil colônia, é constituinte de uma parte da população negra brasileira e, consequentemente, nos deixou uma herança cultural representativa, principalmente na religiosidade de matriz africana” (ALMEIDA e BOARO, 2016).

Como destaquei na seção anterior, a presença de animais e orixás nas histórias contadas por Vovó relaciona-se com o princípio de ruptura com o eurocentrismo, fato que ela evidencia na fala acima, quando questiona o porquê das crianças conhecerem a história da Pequena Sereia – que se baseia em um conto de Hans Christien Andersen, autor de origem dinamarquesa – , e não conhecerem a história de muitos orixás, que são entidades presentes na sociedade brasileira.

Compreendo que Vovó, por intermédio das suas atividades de contação de histórias, destaca a relevância de que as educadoras apresentem histórias cujos enredos envolvam animais e entidades não humanas como uma forma de apresentar cosmologias e outros saberes não ocidentais para as crianças, de modo a propiciar vivências educativas diversas e visibilizar conhecimentos subalternizados, que fortalecem a memória e os saberes locais.

Sendo assim, se faz imprescindível que as docentes entrem em contato com esses conteúdos em suas formações docentes e que, além de conhecê-los, façam reflexões críticas sobre as suas visibilidades, buscando reconhecer os motivos que extirpam esses conteúdos dos currículos formativos. Conhecer tais justificativas possibilita lidar com esses conhecimentos respeitando as suas simbologias e não buscando dicotomizar esses conteúdos transladando-os à matriz epistêmica ocidental.

A atenção para não dicotomizar a relação de facilitação de acesso aos saberes é extremamente importante, pois nos processos educativos escolares existe uma tendência teórica, que se reflete nos fazeres pedagógicos, de considerar que a escola e as atividades educativas cumprem o papel de promover a passagem da criança do estado “primitivo”, para o estado “evoluído”, ou seja, considera-se a criança como um objeto sem voz e não cognoscente, que seguindo a linha evolutiva do progresso pessoal, tal qual a do progresso das sociedades, passará para a posição de sujeito cognoscente, evoluído.

Essa forma de entender o papel das educadoras como intermediárias da relação da criança com a cultura demonstra a força que o mito do eurocentrismo exerce nas instituições educativas. Em muitas discussões de formação docente que participei nas escolas tive a impressão de que nos imbuíamos a “missão” de fazer a passagem das crianças da seara da natureza para o da cultura, fazendo questão de marcar fronteiras explícitas nas diferenças de cada lado da existência. Diante disso, percebo que uma das propostas de Vovó Cici de trazer o mundo dos bichos para o contato das crianças é extremamente importante como uma estratégia de ruptura dessa lógica dualista e eurocentrada.

5. CONSIDERAÇÕES PARA UM DESFECHO POSSÍVEL ENTRE TANTOS