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4 PRINCÍPIOS E ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS DE VOVÓ CICI

4.1 PRINCÍPIOS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS DE VOVÓ CICI

4.1.3 Senioridade e saber local

Como discutido no capítulo anterior, Vovó Cici afirmou inúmeras vezes nos seus relatos que o conhecimento dos “mais velhos” é algo de extrema importância para suas práticas e tem especial destaque e relevância na cultura dela, definida como cultura iorubá. A autora Teresa Lucena (2011), em um trabalho de compreensão dos aspectos educativos na Escola Bê-a-bá de Angola, Malta dos Guris e Gurias de Rua, cuja fundamentação das práticas educativas, segundo ela, é a “Tradição Familiar de Matriz Africana”, destacou que um dos princípios que norteia os fazeres nessa escola é a senioridade. A autora define o termo da seguinte maneira

É o respeito aos mais velhos, e a valorização das suas vivências, da sua memória, suas experiências de vida. Está intimamente relacionada com a ancestralidade, mas se refere especialmente à relação com os pais, avós, bisavós e outras pessoas com quem estão convivendo, os contemporâneos, que no cotidiano transmitem os ensinamentos tradicionais. (LUCENA, 2011, p. 12).

Diante dessa explicação, compreendo que o termo senioridade também pode ser utilizado para definir um dos princípios que orientam as práticas de contação de histórias de Vovó Cici, posto que o seu emprego destaca a importância do convívio entre as pessoas de uma mesma comunidade, para a construção de aprendizagens dos saberes tradicionais, com especial destaque para a aprendizagem de respeito, como destacado por Vovó Cici ao longo dos seus relatos.

Segundo Ivan Poli (2014), a senioridade e a ancestralidade são conceitos civilizatórios de culturas subsarianas e apresentam resistência à cultura do consumo, pois valorizam a memória e os saberes locais, em detrimento das expansões das ideias de globalidade e homogeneidade.

Vovó Cici afirma que os “mais velhos” são pessoas que têm “alguma história ligada

a isso aqui”, demonstrando a importância dos saberes locais que são mantidos por pessoas

que preservam as tradições da localidade e que são reconhecidas como aquelas que podem contribuir com orientações para que se mantenham determinados costumes e crenças, resistindo às mudanças que não têm significado para a comunidade local.

Abib (2017) considera que a transmissão de saberes com significado para a comunidade local é um feito típico das manifestações tradicionais da nossa cultura e se destaca por ser realizada por uma figura fundamental: o(a) mestre(a), que é responsável pelos

processos envolvendo a memória coletiva e a preservação das tradições. Mestres e mestras exercem um papel central na “preservação e transmissão dos saberes que organizam a vida social no âmbito da cultura popular, caracterizando, assim, a oralidade como forma privilegiada dessa transmissão” (ABIB, 2017, p. 94).

Através dos(as) mestres(as) as memórias coletivas são transmitidas de modo significativo para as pessoas que ainda não tiveram acesso aos segredos, encantamentos, saberes e fazeres que compõem esse legado de conhecimentos construído por longos períodos anteriores e que podem orientar as reflexões e as práticas desenvolvidas em uma coletividade, ou na vida particular de cada aprendiz. Sendo assim, os mestres e as mestras seriam o que Vovó Cici chama de “pessoa mais velha”, aquela que, tal qual o mestre, é

reconhecido por sua comunidade, como o detentor de um saber que encarna as lutas e sofrimentos, alegrias e celebrações, derrotas e vitórias, orgulho e heroísmo das gerações passadas, e tem a missão quase religiosa, de disponibilizar esse saber àqueles que a ele recorrem. O mestre corporifica, assim, a ancestralidade e a história de seu povo e assume por essa razão, a função do poeta que, através do seu canto, é capaz de restituir esse passado como força instauradora que irrompe para dignificar o presente, e conduzir a ação construtiva do futuro. (ABIB, 2017, p. 96).

Acredito que Vovó Cici é reconhecida como mestra, ainda que poucas pessoas se refiram a ela dessa maneira. Como relatado no capítulo anterior, uma forma de expressar esse reconhecimento é pedi-lhe a bênção, fato que independe de credo religioso, e vincula-se ao reconhecimento do papel dela de ser a responsável por transmitir saberes ancestrais e com isso contribuir para perpetuar as memórias da coletividade invisibilizada pela história hegemônica e pela academia.

As aprendizagens das pessoas de um grupo que se baseia nas tradições são influenciadas pela sabedoria do(a) mestre(a), que, através do convívio e do contato com elas, vai indicando saberes que orientarão as suas práticas cotidianas. Por conseguinte, o aprendizado se constrói a partir do que se ouve e do que se observa da prática desse mais velho conectado com o passado e com os conhecimentos acumulados por gerações.

A pedagogia de base africana é iniciática, o que implica participação efetiva, plena de emoção [...] Reverenciam-se os mais velhos, que têm mais axé (força de vida), o que se traduz como mais sabedoria. Nas culturas negras os mais velhos são sempre os esteios da comunidade, tendo um papel fundamental para as decisões e desenvolvimento do grupo. Da mesma forma, crianças e jovens têm suas obrigações, já que se encara a vida como um jogo simbólico, onde o crescimento só se dá na dimensão de luta, de desafio ou de enfrentamento das dificuldades que sempre aparecem e

continuarão aparecendo ao longo da vida. (THEODORO, Helena; 2005, p. 96).

Sendo assim, como explicitado no capítulo anterior, a presença de pessoas mais velhas que pudessem contar histórias para as crianças e as professoras na escola seria de grande valia nos processos educativos com objetivos afins à educação decolonial. Do mesmo modo, a formação docente na academia também poderia contar com a presença dessas pessoas como figuras de referência sobre saberes e fazeres, sobretudo os relacionados às tradições locais.

Quando o velho narrador e a criança se encontram, os conselhos são absorvidos pela história: a moral da história faz parte da narrativa como um só corpo, gozando as mesmas vantagens estéticas (as rimas, o humor...) (BOSI, 2005, p. 14).

A presença da pessoa mais velha, mais cheia de axé, mais sábia e com a memória repleta de “histórias ligadas a isso aqui” é, por si só, uma narrativa, que, como lindamente sinaliza Bosi (2005), revela consigo a moral da história: respeitar e reverenciar a memória como caminho para encontrar um futuro mais significativo, onde possamos nos sentir pessoas amparadas e pertencentes a um grupo. Considero que isso deveria ser tomado como um dos objetivos das práticas pedagógicas na escola e em qualquer outro lugar onde as práticas educativas ocorram.