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A angústia

No documento 2019MarceloJoseDoro (páginas 85-87)

3.1 O cuidado como ser do Dasein

3.1.1 A angústia

A angústia é diferente do temor. Esse último manifesta-se em nossa relação com os entes. Podemos temer as nuvens escuras que se levantam no horizonte ou um fogo que se alastra de forma incontrolada. Também podemos temer os outros quando, de noite, andamos sozinhos por ruas desconhecidas. O temor sempre teme algo específico, que vem ao encontro desde um lugar determinado no interior do mundo. Com a angústia tudo se passa de outra forma. Aquilo que angustia não é “nada” específico e vem de “lugar nenhum”. Mas justamente nessa indeterminação é que reside o poder de abertura desse sentimento fundamental. “Fenomenalmente, a impertinência do nada e do lugar nenhum no interior do mundo significa que a angústia se angustia com o mundo como tal” (ST, p. 187). Quando estamos angustiados, a significância do mundo das ocupações e preocupações em que nos empenhamos cotidianamente perde seu colorido, torna-se insignificante. Tudo continua aí, mas não tem a mesma importância. Destituído de sua familiaridade característica, o mundo mesmo se mostra como a fonte da angústia. Em outras palavras, a angústia se angustia com o ser-no-mundo enquanto tal.

A condição de ser-no-mundo não é apenas o com quê da angústia, mas também aquilo

pelo quê ela se angustia. Ao tornar desinteressantes as ocupações e preocupações cotidianas,

padrões do impessoal, a angústia não apenas revela que nosso ser está em jogo como também que somos responsáveis pelo resultado desse jogo.

No Dasein, a angústia revela o ser para o poder-ser mais próprio, ou seja, o ser-livre

para a liberdade de escolher e acolher a si mesmo. A angústia arrasta o Dasein para o ser-livre para... (propensio in...), para a autenticidade de seu ser enquanto

possibilidade de ser aquilo que já sempre é. O Dasein como ser-no-mundo entrega- se, ao mesmo tempo, à responsabilidade desse ser (ST, p. 188).

O ser-livre propiciado pela angústia dever ser percebido em seu sentido ontológico. Onticamente, mesmo enquanto decadente, sob o jugo do impessoal, o Dasein faz escolhas e, nesse sentido, dispõe de certa liberdade. De outro tipo é a liberdade ontológica; ela libera o

Dasein para a possibilidade de ser autenticamente “aquilo que já sempre é”, embora

inautenticamente, a saber: responsável por quem ele é e pode ser. A angústia faz isso sem revelar qualquer conteúdo ou qualquer caminho determinado para o existir concreto. Seu “poder” reside na capacidade de singularizar e abrir o Dasein como “solus ipse”. Esse “solipicismo” existencial, observa Heidegger, “não é do tipo que dá lugar a uma coisa-sujeito isolada no vazio inofensivo de uma ocorrência desprovida de mundo. Ao contrário, confere ao

Dasein justamente um sentido extremo em que ele é trazido como mundo para o seu mundo e,

assim, como ser-no-mundo para si mesmo” (ST, p. 188).

Para a discussão que se encaminha acerca de uma possível resposta heideggeriana ao problema da formação humana, a singularização do Dasein, entendida como suspensão do domínio do impessoal, e nunca como individualismo egoísta, mostrar-se-á imprescindível. Pois, sem essa abertura privilegiada da condição de ser-no-mundo alcançada com a angústia, os projetos formativos permanecerão presos às malhas niveladoras da compreensão comum, alheios aos modos de vida que poderiam ser escolhidos caso fossem liberados como possibilidades no horizonte compreensivo do Dasein. E, nessa condição, não serão projetos legitimados a partir de uma escolha ontologicamente livre.

A constatação da relevância ontológica da angústia não deve, contudo, ser confundida com um tipo qualquer de elogio à depressão. A riqueza ontológica desse humor fundamental não vem do sofrimento psicológico que pode estar onticamente associado a ele, mas de sua capacidade de provocar estranhamento. Quando angustiados, nós estamos “estranhos”: a familiaridade habitual com o mundo de certezas rasas do impessoal encontra-se perturbada, sentimos como se não estivéssemos em casa. Estranheza e familiaridade não são meros estados subjetivos, são modos possíveis de afinação de nosso ser-no-mundo. Enquanto tal, podem ser mais ou menos favorecidos ou desfavorecidos, promovidos ou mesmo combatidos.

Tudo depende de compreendermos adequadamente o estranhamento característico da angústia em contraste com a familiaridade cotidiana. Quando nós nos entregamos às demandas dos “negócios” e da convivência, ficamos como que distraídos em relação à totalidade de nossa existência. É como se, ao verter nossa atenção para as coisas e para os outros, perdêssemos a perspectiva mais ampla que pauta esse comportamento e, irrefletidamente, deixássemo-nos conduzir pelo modo de ser comum ao impessoal. Nessa condição, as “verdades” colhidas no cotidiano cristalizam-se de tal forma que acabam por enrijecer o horizonte de nossas possibilidades. Então, simplesmente, assumimos que devemos viver dessa forma, porque, afinal, é assim que impessoalmente se vive. O estranhamento dessa condição decadente pode se dar, certamente, pelo irromper espontâneo da angústia existencial “propriamente dita”, que o próprio Heidegger reconhece ser rara (ST, p. 190), mas parece sensato admitir que, em algum grau, ele também pode ser promovido por uma pergunta filosófica, um romance literário ou uma obra de arte. (Retomaremos essa questão em outro momento, mais adiante.)

Para o projeto da ontologia fundamental de Heidegger, importa sobretudo explorar a possibilidade radical da angústia existencial como porta para uma compreensão do ser humano livre das tendências interpretativas ligadas ao impessoal. Por esse caminho, alcança-se a compreensão do ser do Dasein como cuidado.54

No documento 2019MarceloJoseDoro (páginas 85-87)