• Nenhum resultado encontrado

Falatório, curiosidade e ambiguidade

No documento 2019MarceloJoseDoro (páginas 75-79)

2.1 Ser-no-mundo

2.3.1 Falatório, curiosidade e ambiguidade

Se a fala autêntica brota da articulação significativa da compreensibilidade do ser-no- mundo e permanece a ela referida, o falatório (Gerede), de outro modo, nutre-se do próprio falar, num constante repetir e passar adiante o que se ouve e se diz na cotidianidade. Enquanto falatório, a fala deixa de ser um apontar para uma compreensão articulada com base em experiências próprias. Já não se compreende tanto o referencial (o sobre o que) da fala, mas só se escuta aquilo que já se falou e se continua a falar. Quando isso acontece (e é assim de início e na maior parte das vezes), a comunicação não mais partilha a referência ontológica primordial com o referencial da fala; o empenho concentra-se no próprio ato de falar. E isso não se limita apenas à repetição oral da fala, expandindo-se também para o âmbito da escrita, como

escrivinhação (Geschreibe).

A marca principal do falatório (e também da escrivinhação) é a falta de solidez. Uma vez que na mera repetição do falado já se perdeu ou jamais se alcançou a referência ontológica primordial daquilo sobre o que se fala, o próprio falatório se torna critério de compreensão: “as coisas são assim como são porque é assim que delas impessoalmente se fala” (ST, p. 169). Dessa forma, o falatório oferece a possibilidade de compreender tudo sem se ter apropriado previamente de nada. Mas tal compreensão, que parece tudo abarcar, guarda em si um fechamento, “devido à sua própria abstenção de retornar à base e ao fundamento do referencial” (ST, p. 169). Ou seja, o falatório é fechamento porque aquilo que nele se abre, apenas se abre na aparência e na superficialidade do senso comum compartilhado por todos.

O falatório impulsiona e é ao mesmo tempo impulsionado pela curiosidade (Neugier). Com esse conceito, Heidegger indica a tendência impessoal de o Dasein saltar de novidade em novidade sem se deter em nada. Diferentemente da compreensão, que é alcançada por meio do envolvimento efetivo com o mundo, no sentido de uma apropriação genuína das coisas com as quais o Dasein pode se comportar e assumir uma atitude segundo suas possibilidades ontológicas essenciais, o compreender articulado pela curiosidade capta apenas o aspecto das coisas. A curiosidade “ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, ou seja, para chegar a ele em um ser, mas apenas para ver. Ela busca apenas o novo a fim de, por ele renovada, correr para uma outra novidade” (ST, p. 172). Do mesmo modo como o falatório se sustenta num mero falar destituído de uma compreensão profunda sobre aquilo de que se fala, a curiosidade também se mantém num ver superficial, que não atinge a compreensão profunda daquilo que se vê.

São três os caracteres destacados em Ser e Tempo como constitutivos da curiosidade: a impermanência, a dispersão e o desamparo. A impermanência designa a avidez na busca do

novo. O ver curioso da cotidianidade não se detém em nada, está sempre rumando para o que é mais recente. O ócio de uma permanência contemplativa cede lugar à excitação e à inquietação frente ao sempre novo e às mudanças daquilo que vem ao encontro. Nessa impermanência reside concomitantemente a possibilidade contínua da dispersão. Essa indica o desinteresse da curiosidade em se deixar levar, pela admiração, até o que lhe é realmente incompreendido. Não se detendo em nada, a curiosidade também não se aprofunda em nada. Por isso, constata Heidegger, a curiosidade nada tem a ver com uma meditação que admira os entes, senão que busca um conhecimento apenas para tomar conhecimento (ST, p. 172). Impermanência e dispersão fundam a terceira característica essencial da curiosidade, a qual Heidegger denomina

desamparo, no sentido que “a curiosidade está em toda parte e em parte alguma” (ST, p. 173).

A curiosidade, que nada perde, e o falatório, que tudo compreende, dão ao Dasein, no entender de Heidegger, a garantia de “uma vida cheia de vida”, pretensamente autêntica (ST, p. 173). Mas justo nessa pretensão reside a ambiguidade (Zweideutigkeit), como terceiro aspecto determinante da abertura cotidiana do ser-no-mundo. Por ambiguidade devemos entender a condição cotidiana da compreensão do Dasein, em que esse já não pode mais distinguir aquilo que se abriu de modo autêntico daquilo que apenas se mostrou no modo da aparência. “Tudo parece ter sido compreendido, captado e discutido autenticamente quando, no fundo, não foi; ou parece que não foi, quando, no fundo, já foi” (ST, p. 173). Essa ambiguidade não se limita apenas ao mundo e àquilo que nele vem ao encontro, senão que perpassa também o próprio poder-ser do Dasein. Isso porque, na convivência cotidiana, o falatório e a curiosidade cuidam para que aquilo que é aberto e empreendido, como possibilidade autêntica, mostre-se como algo banal e corriqueiro. A compreensão das possibilidades de ser vem marcada pela influência do impessoal. De um modo geral, tudo o que o Dasein cotidiano pressente e persegue já foi impessoalmente pressentido e perseguido. E mesmo que algo realmente originário aconteça, de pronto o falatório e a curiosidade cuidam para que ele já “chegue” envelhecido quando se torna público. Assim, toda e qualquer manifestação audazmente originária é nivelada e sufocada pelo comportamento impessoal que a torna tão banal quanto qualquer outra.

Essa confusão entre o que é e o que não é autêntico, essa impossibilidade de distinguir a compreensão originária da compreensão desarraigada é o que constitui, precisamente, o modo de ser da ambiguidade. Ela se manifesta também no modo de ser da convivência cotidiana, que, mantida sob os moldes do impessoal, não é de modo algum, diz Heidegger, “uma justaposição acabada e indiferente, mas um ambíguo e tenso prestar atenção uns nos outros, um escutar uns aos outros secretamente” (ST, p. 175). Os outros com quem nos relacionamos no dia a dia se fazem presentes, de início, pelo que deles se fala impessoalmente e chega até nossos ouvidos. A convivência já não se atém exclusivamente, e talvez nem minimamente, aos moldes de um comportamento originário para com o outro e, desse modo, já não pode distinguir aquilo que,

nessa relação, foi autenticamente conquistado daquilo que foi colhido no falatório. Isso evidencia que a ambiguidade não é um fenômeno que emerge singularmente em cada Dasein particular, senão que, tanto quanto o falatório e a curiosidade, ela já “subsiste na convivência enquanto convivência lançada num mundo” (ST, p. 175).

É interessante notar que, embora os fenômenos do falatório, da curiosidade e da ambiguidade, tenham sido descritos por Heidegger nos anos 1920, numa época em que as mídias sociais ainda engatinhavam e que as tecnologias relacionadas eram ainda insipientes, tais conceitos oferecem uma chave poderosa para a interpretação do fascínio e do poder que utensílios como a televisão, o computador e o celular exercem na atualidade. Esses recursos potencializaram num grau antes inimaginável essas tendências bem humanas que Heidegger descreve como falatório e curiosidade. Por meio delas, uma quantidade incalculável de informação chega até nós a todo momento; vemos e ouvimos sobre tudo, produzimos e reproduzimos informações de forma ininterrupta. Curtir, compartilhar e comentar conteúdos em redes sociais é, na maior parte das vezes, dar vasão ao falatório. E a curiosidade desenfreada garante que nunca nos falte algo para ver, ler ou comentar, porque as novidades nos atraem e, agora, nesse mundo conectado, elas nunca param de chegar. Na internet e na televisão, estamos constantemente pulando de um site para outro ou trocando de canal. Vemos de tudo, “sabemos” de tudo; mas no fundo não nos apropriamos verdadeiramente de nada; falta-nos a experiência efetiva com as coisas. Não foram obviamente as novas tecnologias e os seus recursos que criaram essa tendência de experienciarmos o mundo por meio do falatório e da curiosidade, elas apenas tornaram tudo isso mais intenso. E, com isso, também a ambiguidade se tornou mais proeminente. O problema da pós-verdade51, que ganhou notoriedade a partir de 2016, não pode

ser desvinculado desse contexto. Diante do turbilhão de informações que inunda o cotidiano por meio das novas mídias sociais, cresce consideravelmente a confusão em relação ao que é verdade e o que é falso, o que foi esclarecido e o que não foi. Claro que, como muitos já assinalaram, os mesmos recursos que geram o problema também podem prover a sua solução. Os recursos tecnológicos, sobretudo a internet, podem auxiliar a corrigir visões de mundo tanto quanto podem contribuir para deturpá-las. Mas esse não parece ser um movimento espontâneo. E com isso voltamos mais uma vez ao tema da formação: a possibilidade de modificarmos o nosso modo de engajamento com o mundo vai depender, em algum grau, de como nos posicionamos em relação a própria existência.

51 Em 2016, a Oxford Dictionaries, departamento da Universidade de Oxford responsável pela elaboração de

dicionários, elegeu o termo “pós-verdade” (“post-truth”) como palavra do ano. A escolha repercutiu, sobretudo, o impacto das notícias falsas no cenário político, em que a verdade sobre os fatos se mostrou menos relevante que as mentiras popularizadas nas mídias.

A educação pode fazer, sem dúvida, muita coisa no sentido de estranhar as tendências de absorção na cotidianidade, embora não possa jamais “descolar” o indivíduo de seu mundo.

O Dasein nunca consegue subtrair-se a essa interpretação cotidiana em que ele cresce. Todo compreender, interpretar e comunicar autênticos, toda redescoberta e nova apropriação cumprem-se nele, a partir dele e contra ele. Não é possível um Dasein, que não sendo tocado nem desviado pela interpretação mediana, pudesse colocar-se diante da paisagem livre de um “mundo” em si, para apenas contemplar o que lhe vem ao encontro. O predomínio da interpretação pública já decidiu até mesmo sobre as possibilidades de sintonização com o humor, isto é, sobre o modo fundamental em que o Dasein é tocado pelo mundo. O impessoal prescreve a disposição e determina o quê e como se “vê”. (ST, p. 169-170)

Identificada essa condição humana fundamental, não se trata de supor um processo de formação aquém ou além dos domínios do falatório. Como atividade pública, a educação está evidentemente inserida no domínio do impessoal, no qual predominam os discursos desenraizados do falatório.52 O que convém especular, então, é a possibilidade de a educação

promover compreensão, interpretação e comunicação autênticas a partir do falatório, mas contra ele. Se isso for um ideal válido, o caminho para sua concretização talvez possa ser (hipótese) justamente o favorecimento de uma experiência distinta com o discurso que articula a visão que cada um tem de si e do seu mundo. Em Ser e tempo, como ainda veremos, o caminho para a autenticidade é aberto pelo sentimento da angústia diante da morte e exige que se escute o chamado da consciência. Escutar, já foi indicado, é uma possibilidade existencial fundada na fala, enquanto articulação significativa da compreensibilidade humana.53 Esse parece ser, a

princípio, um processo solitário, que cada ser humano precisa trilhar por conta própria, mas não é (necessariamente) assim, pois o escutar originário também inclui “a escuta da voz do amigo

52 Em uma tentativa pioneira no Brasil de aproximar a ontologia heideggeriana da educação, Critelli (1981) já

localizou a dificuldade de se pensar uma educação para a autenticidade, uma vez que, como atividade pública, a educação insere-se no âmbito das atividades cotidianas em que impera um proceder comum típico do impessoal. A autora acredita, contudo, que essa constatação pode fazer pensar sobre a condição fundamental da educação enquanto relação de uns com os outros. É na relação dos indivíduos entre si que a autenticidade e a inautenticidade têm lugar. Ela propõe, então, que a reflexão sobre educação tome como ponto de partida o fenômeno da preocupação, que caracteriza o modo de ser das relações humanas. “A recuperação desse fundamento provavelmente abriria novos horizontes à nossa própria historicidade”, afirma Critelli (1981, p. 70).

53 O modo como a possibilidade da autenticidade está vinculada a uma experiência mais originária da linguagem

enquanto fala é apresentado por Casanova (2002, p. 326): “[...] o ser-aí [Dasein] sempre pode ou bem se perder no âmbito impessoal das relações e referências já cristalizadas em seu mundo cotidiano, ou bem assumir sobre si o fardo do ser-aí que é em sintonia com o que está silenciado em seu mundo e que, ao mesmo tempo, espera para ser acordado. À medida que age dessa maneira, ele não traz simplesmente, à fala, o silêncio, mas libera a sua ação para a experiência do silêncio e para o que precisa nascer do silêncio. Ao invés de se debater em meio a caminhos existenciários usados e esgarçados até o limite, ele redescobre a essencialidade de sua existência. No momento em que uma tal redescoberta acontece, vem à tona um modo diverso de compreensão da linguagem. A linguagem deixa de se mostrar aí como a mera atualização de significações e sentidos já previamente delineados em seu mundo, passando a se movimentar originariamente no interior do âmbito mesmo de criação de significações e sentidos. No interior desse âmbito, o ser-aí conquista a si mesmo enquanto ser-aí”.

que todo Dasein traz consigo” (ST, p. 163), no que podemos ver, sem dificuldade, a atuação pedagógica dos professores.

No documento 2019MarceloJoseDoro (páginas 75-79)