• Nenhum resultado encontrado

Formação como luta

No documento 2019MarceloJoseDoro (páginas 115-118)

3.3 Formação e historicidade

3.3.1 Formação como luta

Já marcamos a ideia de que a formação, pensada a partir da analítica existencial não comporta nenhuma teleologia de conteúdo fixo. A compreensão do ser humano como ser-no-

mundo e do próprio mundo como um horizonte histórico de sentido aberto e mantido a partir de nosso próprio engajamento com ele, inviabiliza qualquer pretensão de se pensar um estágio final e completo de realização humana.

Nosso ser-no-mundo abre uma clareira na qual nós mesmos e os entes se tornam significativos. Nessa clareira, desvelamos a nós mesmos e desvelamos os entes. Esse desvelamento é, no entender de Heidegger, o acontecer mais originário da verdade. Nós somos e nos mantemos nesse desvelamento: “O Dasein é e está 'na verdade'” (ST, p. 221). Mas junto à clareira também se projetam as sombras. Nosso ser-no-mundo é ser-com outros... a clareira é, de início e na maior parte das vezes, marcada pela impessoalidade. Na luz fosca do impessoal, o que se desvela se mostra nos modos da aparência e o já desvelado tende sempre novamente a afundar em distorções e velamentos. “Em sua constituição de ser, o Dasein é e está na 'não-

verdade' porque é, em sua essência, decadente” (ST, p. 222). A existência movimenta-se nesse jogo de luz e sombra, de modo que quem somos e quem podemos nos tornar se decide a cada vez no campo desse jogo.

Sob à luminosidade fosca do impessoal o Dasein não vê adequadamente sua condição finita e indeterminada, e, entregando-se às ocupações e preocupações imediatas do cotidiano, esquece de si mesmo. Assim ele também não vê suas possibilidades mais próprias, pelo que se desobriga da construção autêntica de si (autoformação). E é por isso que o Dasein decadente se encontra, no mais das vezes, seguro de si mesmo. Contra essa segurança manifesta-se a angústia, que, quando assumida, permite ao Dasein desvelar para si sua condição de ser-no- mundo e as possibilidades que lhe são próprias. A existência se abre, nesse momento, para sua possibilidade autêntica. Esse não é, contudo, como já assinalamos, um estágio final e definitivo: porque o Dasein é essencialmente ser-no-mundo e porque o mundo reclama constantemente sua atenção, decair novamente no mundo é uma possibilidade que, na maior parte das vezes, acaba sendo atualizada. A tarefa de construir a si mesmo, autenticamente, deve ser entendida, por isso, como uma luta constante contra essa tendência sempre presente de se perder (encobrir a si mesmo) nos caminhos do impessoal.

Se bem entendido, portanto, não existe a autenticidade enquanto uma propriedade que o Dasein possa possuir de uma vez por todas ou como um estágio que ele possa alcançar e nele permanecer. Como modos de ser do Dasein, tanto a autenticidade quanto a inautenticidade permanecem como possibilidades atualizáveis a cada momento. Greaves (2012, p. 74) move- se nessa direção ao afirmar que “a existência potencialmente autêntica é a existência entre dois eus, o inautêntico e o autêntico”. De acordo com essa interpretação, a autenticidade somente se torna possível para aqueles que diferenciam entre autenticidade e inautenticidade; a

autenticidade seria, assim, “uma questão de se distinguir entre o eu que pertence ao impessoal e o eu que toma seu próprio caminho de viver as possibilidades tornadas disponíveis para si como suas próprias” (GREAVES, 2012, p. 74). Isso tudo, porém, não deve ser meramente pensado em termos da conhecida oposição entre público e privado, porque a autenticidade não é tratada em termos de vida privada, nem a inautenticidade corresponde à vida pública. O que está em jogo é, antes, o modo como cada um experiencia e conduz tanto uma como a outra.

A formação revela-se, assim, como luta não pela autenticidade como estágio definitivo, mas pela manutenção da distinção entre esses dois eus, o autêntico e o inautêntico. Trata-se, em outras palavras, de uma luta para manter-se no impessoal sem sucumbir completamente ao seu domínio. Em termos concretos, isso inclui a possibilidade de ampliar a abertura de mundo na qual sempre já nos encontramos como parte do impessoal. A luta, aqui, é para dissipar as distorções, remover os entulhos e afastar o acomodamento que nos prende a um horizonte compreensivo nebuloso e limitado. A retomada autêntica da tradição, como vimos anteriormente, é parte desse processo, mas não é tudo. Noutra direção, a ciência, a filosofia e as artes também cumprem um papel importante nesse processo: a ciência é o esforço para mostrar a verdade da realidade a partir de si mesma; a filosofia pergunta pelo todo, mas o que está em jogo é sempre o autoconhecimento, a posição do ser humano em relação à totalidade dos entes e à liberação de sua ação; as artes abrem espaço para o possível, são um esboço livre e criador de novos sentidos para a articulação do acontecer humano.66 Em cada caso, opera-se

um ampliação do mundo, da clareira a partir da qual compreendemos a nós mesmos em relação ao nosso poder-ser.

Junto à luta que tem lugar no interior do indivíduo, devemos acrescentar aquele tipo “intersubjetivo” de disputa, que, como já assinalamos anteriormente, entrelaça o destino de cada

Dasein a um destino comum. E, na verdade, dada a profunda imbricação entre o Dasein, o

mundo e os outros, podemos dizer que a abertura compreensiva conquistada pelos indivíduos ilumina o mundo coletivo tanto quanto um ganho público de compreensão ilumina a autocompreensão de cada um. Grosso modo, é isso que se espera ver acontecer em sociedades democráticas maduras: o desencobrimento de formas de vida cada vez melhores, por meio do embate constante entre uma pluralidade de ideias e projetos; as lutas individuais transformam

66 Quanto a isso, Heidegger afirma: “O sentido interior de toda elaboração artística está [...] em abrir espaço para

o possível, em ser um esboço livre e criador de novas possibilidades para o que é possível ao ser humano. [...] Poesia, portanto, acena para muito mais do que qualquer ciência. Os grandes poetas, Dante, Shakespeare, Goethe, Homero, realizaram muito mais, abriram muito mais possibilidades de que todos os cientistas juntos” (SV, p. 172- 173).

o mundo da coletividade, que por sua vez retroage sobre os indivíduos. (Mais adiante, trataremos do sentido pedagógico da luta, a partir da relação entre professor e aluno.)

Por fim, gostaríamos de chamar a atenção para o vínculo estreito de nossa interpretação da luta, enquanto traço de uma noção heideggeriana de formação, com o binômio velamento- desvelamento que constitui o elemento fundante do método fenomenológico de Heidegger. A analítica existencial revelou que essa é uma ambivalência radicada na própria condição humana: o cuidado é simultaneamente cuidado de si e dispersão em ocupações e preocupações. E, por isso, é inevitável que a formação também seja pensada a partir dessa ambivalência.

No documento 2019MarceloJoseDoro (páginas 115-118)