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Esquema 2 – Campos semânticos

2.3 BAUMAN, MAFFESOLI E AS CONTRADIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

2.3.1 Angústia em meio à crise

O que escreveu o historiador Tony Judt no parágrafo de abertura de um de seus últimos livros, O mal ronda a terra, é um bom exemplo da complexa tarefa de pensar o que Maffesoli chama de o “mosaico da pós-modernidade” (2011).

Há algo de profundamente errado na maneira como vivemos hoje. Ao longo de trinta anos a busca por bens materiais visando o interesse pessoal foi considerada uma virtude: na verdade, esta própria busca constitui hoje o pouco que resta de nosso sentimento de grupo. Sabemos o preço das coisas, mas não temos ideia de seu valor. Não fazemos mais perguntas sobre uma decisão judicial ou um ato legislativo: é bom? É justo? É adequado? É correto? Ajudará a melhorar o mundo ou a sociedade? Essas costumavam ser as questões políticas, mesmo que suas respostas não fossem fáceis. (JUDT, 2011, p. 15-16)

Na obra, Judt reflete sobre como o mundo ocidental vem, desde o início da década de 1980, desmontando o conceito de Estado (consequentemente, o de comunidade) ao perseguir objetivos materialistas e egoístas. O raciocínio – resumido (e simplificado) no parágrafo anterior – nos serve não pelo seu caráter sócio- econômico; o objetivo também não é o de avaliar as competências e/ou deficiências do sistema capitalista, ou mesmo defender o estado de bem-estar social. A ideia é chamar a atenção para a condição imposta ao indivíduo ocidental entre o final do século XX e início do XXI, no que tange às transformações do homem como ser

social. Não é preciso uma análise político-econômica para percebê-la.

O historiador Judt, ao iniciar o livro com a frase destacada acima, demonstra um desconforto que parece transcender as colocações precisas – muitas vezes baseadas em dados estatísticos – das páginas seguintes do seu livro. Judt diz que vivemos em tempos de medo e de desconfiança. Uma era ameaçada por um colapso generalizado que dá sinais de estar à espreita justamente pela falta de alternativas para modificá-la. Ele parece não falar apenas como historiador. Sua análise está ancorada em dados históricos e econômicos, mas chama atenção também a angústia do autor quanto à situação do homem inserido neste contexto – e a frase “Há algo de profundamente errado na maneira como vivemos hoje”indica isso.

O pensamento de Bauman, dessa maneira, caminha paralelamente ao de Judt. Ambos têm uma forte herança marxista e certa desilusão com o socialismo real. Bauman, como vimos, lutou junto ao Exército Vermelho contra os nazistas e foi membro do Partido Comunista polonês, antes de se desiludir. Judt acreditou no sionismo – chegando a servir na Guerra dos Seis Dias como tradutor –, para depois perceber que se tratava de uma ideologia capaz de se mostrar tão desastrosa quanto as outras que marcaram o século XX.

Essas experiências são parte importante da trajetória intelectual do sociólogo polonês e do historiador britânico, fazendo com que eles tivessem de encontrar uma nova maneira de ver o mundo a partir do colapso das ideologias e das transformações sociais decorrentes deste fato. Um trabalho nada fácil. A tentativa de Judt foi interrompida de forma relativamente precoce (ele morreu em 2010, aos 62 anos, vítima de uma doença degenerativa rara).

Mas em O Mal Ronda a Terra ele deixou explícita essa dificuldade, em uma lógica que também acompanha o raciocínio de Bauman: há ares de desconforto com os rumos da humanidade no momento em que as instituições modernas parecem dar seus últimos suspiros. No prefácio de Modernidade Líquida, o polonês olha com pessimismo uma era em que não há mais um caminho certo a ser seguido – aquele que prometia levar invariavelmente à emancipação e que geralmente era pavimentado pelo Estado, o dono do saber e provedor de segurança, e onde estava estabelecido o conceito de comunidade. Hoje, esta estrutura, para usar o jogo de palavras de Bauman, derreteu. Eis que ele se questiona.

O fato de que a estrutura sistêmica seja remota e inalcançável, aliado ao estado fluido e não-estruturado do cenário imediato da política-vida, muda aquela condição de um modo radical e requer que repensemos os velhos conceitos que costumavam cercar suas narrativas. Como zumbis, esses conceitos são hoje mortos-vivos. A questão prática consiste em saber se sua ressurreição, ainda que em nova forma ou encarnação, é possível; ou – se não for – como fazer com que eles tenham um enterro decente e eficaz. (BAUMAN, 2001, p. 15)

Se a forma como está estruturada a sociedade tem um caráter de morto-vivo, diz Bauman, como proceder de agora em diante? Mas qualquer que seja seu esforço para encontrar uma resposta a esta pergunta, ele parece estar marcado por um saudosismo. Uma marca indelével que a fé depositada nos projetos utópicos deixou em sua percepção de mundo. Tanto é que sua desilusão com o socialismo real não culminou em um total rompimento, mas sim em uma espécie de evolução do ideal. Ele segue achando que “a utopia é um dos elementos constituintes da humanidade, uma 'constante' na forma humana de ser e estar no mundo” (BAUMAN, 2011a, p. 60).

Mas Bauman sublinha que, na modernidade líquida, é cada um por si. Por isso, não parece haver muito espaço para utopias ou projetos conjuntos (como o socialismo) de qualquer natureza. O indivíduo está sozinho, largado em um mundo onde as leis que o regiam já não funcionam do mesmo jeito. Há, talvez, mais liberdade, pois ninguém diz o que o indivíduo deve fazer, qual o jeito certo de viver. Maffesoli acredita, inclusive, que a identidade, tal como ela se constituiu na modernidade, não existe mais. Aquele sujeito que pensava por si está dando lugar a um sujeito determinado pelas relações que mantém, um sujeito cuja identidade vai variar de acordo com o outro. Mas o lado bom desse fato é muitas vezes ofuscado por um fator que vem se cristalizando como a sua pré-condição, segundo Bauman: ter a capacidade de consumir. É como se todas as leis que antes faziam o mundo funcionar fossem substituídas por apenas uma, a que rege o capitalismo em estado avançado.

Assim, a visão que Bauman tem da pós-modernidade, ou da modernidade líquida, está constantemente bebendo na fonte dos males gerados por esse capitalismo. Sem a segurança da vida moderna e sua condição pré-determinada, sobrevive, ele diz, quem tem dinheiro o suficiente para adquirir as condições necessárias para viver da maneira maleável exigida pelo caráter liquefeito da vida pós-moderna (ou líquida). E aí poderíamos retomar questões colocadas por Judt de

maneira ilustrativa. Ou seja, este indivíduo sabe quanto as coisas custam, mas não o seu valor. Não é mais capaz de indagar se um ato ajudará a melhorar o mundo ou a sociedade. Enfim, trata-se de um indivíduo preocupado apenas consigo mesmo (ainda que a partir de um conceito de identidade baseado na relação com o outro), deixando para trás o pouco do sentimento de grupo que ainda resta.