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Esquema 2 – Campos semânticos

3.7 A PARTE DA IMAGEM NA BUSCA PELO SIGNIFICADO

3.7.1 A imagem na contemporaneidade

Em 1948, dois anos antes do início da pós-modernidade, segundo a visão de Maffesoli, em uma Europa recém saída da Segunda Guerra Mundial, o filósofo Maurice Merleau-Ponty refletiu justamente sobre as limitações da objetividade humana. Poucos anos antes, o mundo havia escapado da autoaniquilação ao levar a racionalidade ao extremo, e naquele momento, ele indagava sobre um mundo que “não oferece mais essa estrutura rígida que lhe era fornecida pelo espaço homogêneo de Euclides” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 11).

Nesse cenário, a ambiguidade ganha destaque (novamente, retomando alguns ideais estóicos32) como peça fundamental no tabuleiro da existência, sem esquecer, claro, a importância de não marcar passo na busca pela (ou por uma) verdade. Só que a ruptura com o passado recente estava clara. “Sabemos porém demais a esse respeito para retomar pura e simplesmente o racionalismo de nossos pais”, (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 73), disse ele, em referência direta à crença na razão que marcara gerações anteriores. A confiança cega na racionalidade dava lugar a uma ideia mais variável de razão. Uma postura em relação ao mundo mais contemplativa, subjetiva, próxima da fruição artística, como comparou o filósofo:

[...] trata-se, como na percepção, das próprias coisas, de contemplar e perceber o quadro segundo as indicações silenciosas de todas as partes que me são fornecidas pelos traços de pintura depositados na tela, até que todas, sem discurso e sem raciocínio, componham-se em uma organização rigorosa em que se sente de fato que nada é arbitrário, mesmo se não

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O ideal estóico, segundo Luc Ferry, enxerga o mundo como um ser “organizado e animado”. “É essa ordem, esse cosmos como tal, essa estrutura ordenada do universo todo que os gregos chamam de 'divino'” (FERRY, 2007, p. 38-39).

tivermos condições de dizer a razão disso. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 60)

O trecho é um bom exemplo da emergência de um raciocínio mais ambíguo, ou pelo menos mais aberto à subjetividade da percepção. Um basta ao caráter doutrinário da racionalidade levada ao extremo – ainda que esteja longe da irracionalidade, convém lembrar. Essa tendência, como bem colocou Merleau-Ponty ao se debruçar sobre a arte – principalmente no trecho em que faz referência às indicações silenciosas fornecidas por uma pintura ao espectador –, oferece protagonismo à imagem.

Gilbert Durand (2011) relata a turbulenta e paradoxal relação entre o Ocidente lógico e cristão e o primitivo e fantasioso mundo fenomenal. Por ser passível de uma “descrição infinita e uma contemplação inesgotável” (DURAND, 2011, p. 10), a imagem se afasta do pensamento binário de busca pela verdade (é ou não é, existe ou não existe, etc). Ao se afastar da dicotomia certo/errado, ela é facilmente ligada à incerteza, algo fora de cogitação para a fé. De acordo com o mesmo raciocínio, se a imagem não ajuda o homem a se aproximar de Deus, é a responsável pelo contrário. Daí para a imoralidade é um passo. Para a perseguição, outro.

De acordo com Michel Maffesoli (1995), esta repulsa vem do temor ao desconhecido. Isso porque, como vimos, ao contrário da ciência ou do dogmatismo da fé, a exatidão não é o forte da imagem – pelo contrário. “Ela não procura dizer o que 'deveria ser', contentando-se com o que é, ou, o que dá no mesmo, o que poderia ser” (MAFFESOLI, 1995, p. 92). Somos livres para interpretá-la como quisermos, sem que haja uma verdade definitiva e/ou correta.

Sua significação nasce a partir de um posicionamento ambíguo que pode deixar o homem em dúvida sobre o que realmente é certo e o que de fato é errado. A esta ambiguidade, adiciona-se lascividade e até preguiça aos adjetivos atribuídos à imagem. Mas pelo mesmo motivo que ela causa repulsa, também atrai. Mais do que isso. Seu caráter incerto é essencial à existência, principalmente na contemporaneidade. Maffesoli dá uma pista de sobre como isso acontece.

a imagem é relativa, no sentido de não pretender o absoluto, e ela coloca em relação. É esse mesmo relativismo que a torna suspeita, pois não permite a certeza, a segurança que engendra o dogma, ou mesmo o bom raciocínio abstrato, que não se confunde com as contingências factuais, sensíveis, emocionais, ou com outras situações “frívolas”, das quais é forjada a existência quotidiana. (MAFFESOLI, 1995, p. 92)

Maffesoli avança na hipótese levantada também por Flusser de que “as imagens técnicas são uma das respostas ao problema” (FLUSSER, 2008, p. 23) gerado pela desintegração dos “fios condutores que ordenam o universo em processos e os conceitos em juízos” (FLUSSER, 2008, p. 23). A revalorização da imagem, para Maffesoli, é o início da (re)pavimentação de um caminho rumo à transcendência imanente. Afinal, somos seres racionais, mas sabemos que nem tudo se resume a certo ou errado. A sensibilidade é parte essencial da natureza humana, um sinal de que não é possível ignorar o fato de pertencermos a um todo. É aí que a imagem – com todo o seu relativismo – concentra sua força. Principalmente no cotidiano, como diz o trecho acima. As características da imagem, segundo Maffesoli, fazem com que ela se aproxime mais do “real” do que o racionalismo, pois

ela permite, além ou aquém das mediações, aceder a uma espécie de conhecimento direto, conhecimento vindo da partilha, da colocação em comum das ideias, evidentemente, mas também das experiências, dos modos de vida e das maneiras de ser. (MAFFESOLI, 1995, p. 102)

Conhecimento direto. Algo por um lado incerto, ambíguo, mas por outro mais perto de um mundo em que a existência não depende do consenso dialético. Uma condição ligada ao trágico, à consciência da impossibilidade de o racionalismo obter o controle total.

O que nos remete, não por acaso, ao pensamento de Nietzsche. Após destruir a marteladas o ideal filosófico da transcendência, depois de dizer que Deus está morto, assim como as utopias, ele apostou que o ideal de salvação deve ser buscado em vida, a partir da escolha do que vale a pena ser vivido e do que deve ser deixado para trás. Uma filosofia que aceita o real como ele é, e tenta retirar dele o melhor. Uma aposta no presente, que não se volta para o passado e nem espera nada do futuro.

Para Maffesoli, este ideal retorna com força na vida contemporânea. Uma forma de viver que remete ao sagrado, mas não um sagrado relacionado a Deus. “Um sagrado que remete a uma transcendência imanente, constituída pelo sentimento de pertença, pela paixão compartilhada ou pela correspondência quase mística, com o que me rodeia” (MAFFESOLI, 2003, p. 55).

televisão, no cinema, na publicidade, na internet. É desnecessário demonstrar como as imagens compõem o cotidiano. O que nos interessa é um ponto-chave do pensamento de Maffesoli sobre a nossa inevitável convivência com o mundo fenomênico. Segundo ele, a imagem é a protagonista dos rituais modernos, espécies de transes coletivos que têm a capacidade de aproximar as pessoas – basta pensar em um show de rock, uma reunião de amigos para ver um jogo de futebol pela televisão ou, mais apropriado neste caso, uma sessão de cinema.

Trata-se, diz o filósofo, de um sentimento parecido com o comportamento religioso, porém sem o caráter doutrinário. A imagem reúne, faz com que os homens compartilhem determinados sentimentos por determinado período de tempo, geralmente curto (no sentido histórico de duração). É o que Maffesoli chama de “junção entre o religioso e o estético” (MAFFESOLI, 1995, p. 111). Uma relação curta, focada no presente, e sem objetivos maiores do que a simples fruição da vida ordinária.

Ora, isso nos faz retornar ao pensamento de Merleau-Ponty, cujo trecho foi citado anteriormente, no qual ele comparou uma postura menos racionalista com a contemplação de uma criação artística. Sobre a manifestação artística, Maffesoli diz

que ela se cristaliza em um só momento de existência plena, em um só instante de beleza perfeita que cristaliza, então, a eternidade. Podemos, portanto, perguntar se este instante de existência plena não é, em certo momento, o objetivo da existência. Um objetivo que se esgota em si mesmo. (MAFFESOLI, 2003, p. 47)

É a contemplação da arte se aproximando do ideal de fruição da vida. Sem preocupações com utopias maiores e com o sentido do sagrado transfigurado, o ser humano vive um cotidiano de pequenos prazeres onde a imagem aparece como o “elemento essencial do laço social” (MAFFESOLI, 2003, p. 67).