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Esquema 2 – Campos semânticos

3.6 EM BUSCA DO MARIA ANTONIETA MODELO

Estão consolidados os campos semânticos – as categorias que vão nortear uma análise um pouco mais minuciosa de trechos do filme e que surgiram a partir de uma “leitura” prévia da obra. Seu desenvolvimento permitiu aferir a validade da hipótese inicial: a ideia de que o filme se desenvolve da relação entre a personagem principal, Maria Antonieta, e seu contexto, no caso, Versalhes. Sendo que Versalhes foi definido principalmente com base nas características de algumas personagens importantes na trama. Afinal, são eles os responsáveis pela relação do contexto com Maria Antonieta. Ressalte-se que, apesar de sua importância, as “personagens Versalhes”, vistos como personas, não conseguem dar conta do que é o contexto como um todo, e como ele influencia a personagem principal. Trata-se de uma pequena amostra que permite projetar o total.

A partir dessa relação é que se busca a emergência de um significado maior, vinculado ao filme inteiro e ao seu papel como um produto cultural. Como salientamos, este significado está ligado ao fato de que o sujeito contemporâneo transita em um contexto que pode ser definido pelo “diálogo” entre as ideias de Bauman e Maffesoli – o que implica no aparecimento do desconforto dionisíaco- líquido.

Portanto, assim como vimos que é possível “enxergar” o filme Maria Antonieta a partir de uma relação do homem (Maria Antonieta) com o seu ambiente (Versalhes), demonstraremos como é possível estabelecer que, assim como o

sujeito contemporâneo “carrega” consigo o “halo imaginário” do desconforto dionisíaco-líquido, como sugerimos no segundo capítulo, a personagem Maria Antonieta, ao se relacionar com o ambiente no qual foi lançada, passa por situação análoga. O que faria do filme de Sofia Coppola não apenas uma obra sobre a rainha da França ou sobre uma adolescente contemporânea, com seus medos e vontades, mas também um produto cultural capaz de dialogar com algumas das opiniões de Zygmunt Bauman e Michel Maffesoli a respeito do momento atual.

Mas como um filme que não fala sobre o período contemporâneo, muito menos faz referências a qualquer teoria desenvolvida a respeito da percepção desse mesmo período, permite fazer essa conexão, construir essa analogia? Para isso, é interessante observar o que dizem Aumont e Marie a respeito da ideologia de um filme: qualquer conteúdo que ele possa apresentar está na obra, no seu texto, e não na história contada, ou nas intenções do autor (AUMONT e MARIE, 1990, p. 286). Trata-se de uma postura “reflexionista” em relação ao papel social do cinema, como diz Turner. Ou seja, um filme pode ser considerado “um 'reflexo' das crenças e valores dominantes de sua cultura” (TURNER, 1997, p. 128).

Assim, está claro que Maria Antonieta não aborda diretamente as angústias da vida contemporânea sob a ótica de Bauman, Maffesoli ou de qualquer outro pensador, e muito menos que a diretora tenha tido esse objetivo inicial. Mas isso não impede uma abordagem à luz desses dois pensadores, afinal, o filme pode ser “produzido por esses sistemas de significado” (TURNER, 1997, p. 129), no sentido de ser influenciado por eles, ainda que indiretamente – afinal, o longa-metragem foi concebido em um contexto sobre o qual está assentado o trabalho sociológico de ambos. Cabe à análise construir esse sentido, desvelá-lo. Cabe à análise ler a obra à luz dos acontecimentos e comportamentos do seu período histórico a partir da forma como o conteúdo é apresentado (AUMONT e MARIE, 1990, p. 132). Assim, o que fizemos até aqui foi elaborar um pensamento a partir do qual o filme possa ser visto, analisado. Um filme dá essa liberdade, embora não seja este o seu propósito. Esclarecida esta questão, sigamos.

Como construir um significado que ligue Maria Antonieta ao desconforto dionisíaco-líquido? Para isso, retornamos a Bordwell. Segundo ele, o caminho para fazer emergir o significado de um filme surge a partir do ordenamento dos campos semânticos. A este ordenamento ele dá o nome de “esquemas ou modelos heurísticos”. Nas palavras do autor:

Ao ordenar campos semânticos sobre uma película, guiado por esquemas e modelos heurísticos, o crítico produz aproximações do filme em questão:

modelos mentais do mesmo. A diferença dos esquemas, que são esquemas

estáveis, contínuos e de aplicação geral, os modelos mentais são “representações transitórias e dinâmicas de situações únicas e particulares.” (BORDWELL, 1995, p. 163)

Este modelo, diz ele, é o “produto” final. É o filme analisado e reconstruído a partir das inferências realizadas pelo crítico. Ele nasce quando os campos semânticos desenvolvidos são designados a indicações no filme. Isso significa aplicar as categorias criadas a partir da obra cinematográfica na própria obra cinematográfica. Evidentemente, o filme em sua totalidade é impossível de ser analisado, então são escolhidos elementos passíveis de serem escrutinados. A possibilidade de escolha destes elementos no ambiente fílmico é ampla, senão infinita. Desde sequências inteiras até pequenos detalhes no figurino podem estabelecer relação com os campos semânticos. E, claro, um campo semântico pode ser designado a vários elementos fílmicos diferentes. Feito isso, tem-se o filme modelo como resultado.

No caso desta pesquisa, os campos semânticos serão designados a quatro sequências do filme Maria Antonieta, e, claro, aos elementos fílmicos que delas fazem parte. Os quatro trechos tentaram abranger o texto fílmico em diferentes partes do seu desenvolvimento. A primeira sequência está dentro dos 25 minutos iniciais31, enquanto a última faz parte dos 30 minutos finais. Além disso, eles foram escolhidos de acordo com uma avaliação prévia a respeito da sua representatividade diante da hipótese de análise. Na seleção, levou-se em conta aspectos que tentaram definir minimamente o que significa, para o indivíduo, existir em um contexto no qual convivem as visões de Bauman e Maffesoli. Essa definição foi feita no capítulo três, quando abordou-se a busca de uma autenticidade no cotidiano, a postura irônica ao enfrentar a falta de sentido do que está colocado, a

falência de qualquer projeto antes mesmo do seu nascimento, e, como alternativa

a isso, a possibilidade de um hedonismo que ignora o contexto em que está

inserido, curvando-se a ele. Podemos encarar esses pontos como uma espécie de

divisão didática do desconforto dionisíaco-líquido. Deixando as coisas ainda mais claras, é possível estruturá-los ainda mais, nomeando-os.

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Abordar o filme com quase 30 minutos de narrativa se explica ao levarmos em conta que foi realizada uma análise prévia da sequência inicial da obra.

Assim, sugerimos a seguinte nomenclatura para definir a condição do indivíduo, sublinhando que a simplificação inevitavelmente leva ao reducionismo do conceito:

a) Ironia à falta de sentido; b) Liberdade e hedonismo; c) Peso do projeto;

d) Fuga à falsa segurança.

Assim, essa forma de dividir o desconforto dionisíaco-líquido serve como uma pré-visualização do conceito quando aplicado ao filme. Ela funciona como um guia, indicando de que forma as sequências serão analisadas para que delas possa emergir um pedaço ressignificado da obra. A partir desses trechos, a análise vai tentar demonstrar como o filme Maria Antonieta é capaz de sugerir – por meio dos seus principais aspectos, tanto técnicos (composição dos planos, enquadramento, iluminação) quanto os relacionados ao argumento (personagens, narrativa) – que a personagem principal apresenta características, ou quem sabe, espécie de sintomas, que remetem ao desconforto dionisíaco-líquido. É como trilhar um caminho de volta, utilizando força da imagem fílmica para potencializar novamente o conceito.

Mas antes de nos debruçarmos sobre o filme, vamos ver como a imagem pode nos auxiliar no processo, principalmente, qual o posicionamento de Sofia Coppola em relação a ela.