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ANNA JACINTHA SEGUNDO TOTINHA

A TRADUÇÃO CULTURAL DE BEJA: história e memória

ANNA JACINTHA SEGUNDO TOTINHA

Neste período, a narrativa parte da chegada de Beja a São Domingos de Araxá33 – GO, por volta de 1805. Beja veio acompanhada por sua mãe, por seu avô e pelo escravo Moisés, procedentes de Formiga – MG.

O deslocamento de uma família em direção a lugares mais prósperos ocorria com freqüência, acontecendo, principalmente, a aquelas que viviam dos poucos recursos proporcionados pela posse de pequenas propriedades rurais, como no caso da família de Beja, e que não gozavam da situação estável e garantida próprias dos grandes proprietários de terras.

A ausência do pai de Beja, entre os que chegaram a São Domingos de Araxá, não foi justificada por Totinha. O peso dado à figura marcante do avô, preenchia-a sem maiores problemas. Homem digno e forte, tomou as rédeas da condução da família, tendo como meta o cumprimento das leis divinas e das leis dos homens. O seu carinho pela neta dominou o quadro afetivo da menina não deixando espaço para a presença materna. Desbotada pela sua condição de mãe solteira, Maria Alves de São José desaparece da narrativa, ao morrer prematuramente.

* * *

A partir da leitura “linear e plana” feita por Rosa Maria Spinoso de Montandon (2004) “das informações extraídas dos documentos oficiais” (neste caso, o “Mappa da População

33 Ver anexo 10.

deste Distrito da Villa Viçosa d’Sam Domingos do Arachá”; 1832, Sessão Colonial, caixa 13, Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, MG), a mãe de Beja, em tal arrolamento denominada Maria Bernarda dos Santos, não teve o mesmo destino que o presente na narrativa de Totinha:

Como chefe de família, papel que desempenhava como mulher só, descasada e mãe solteira, no censo provincial de 1832, Anna Jacintha foi relacionada oficialmente como branca, solteira, de 32 anos e dona de oito escravos. E, junto com ela, sua mãe, Maria Bernarda dos Santos, também branca, de 56 anos. (p. 42)

Dada a evidência histórica, resta indagar se o desaparecimento de Maria Alves de São José ou Maria Bernarda dos Santos (conforme o documento oficial), na narrativa de Totinha, foi intencional, no sentido de imprimir maior carga dramática à versão mantida pela tradição oral. Ou ainda, se o perfil que dela se traçou, baseado no pouco que se ouviu dizer, faria da mãe de Beja uma presença necessária na trama dos acontecimentos que singularizaram a vida de Beja.

Finalmente, caso se utilize um esforço interpretativo apoiado na historiografia, outra hipótese poderia ser levantada, como o fez Montandon (2004).

Tal hipótese resultaria da “dispersão populacional e a ocupação de novas áreas após o declínio da mineração em Minas Gerais” (p. 36), da pobreza que atingia a maior parte da população da capitania; da situação específica das mulheres abandonadas, viúvas ou mães solteiras, muitas delas tendo na prostituição o único recurso para sobreviver, enfim mulheres que também se juntavam aos que buscavam melhores possibilidades em outras paragens.

Diante desse quadro, Montandon conjectura que Beja e sua mãe poderiam ter vindo entre tantos forasteiros que chegavam a São Domingos de Araxá, na esperança de encontrar uma vida melhor.

Nesse caso desfaz-se a imagem do grupo doméstico, apresentado na versão de Totinha. Originado na persistência com que foi mantido pela tradição oral, mesmo que reduzido, esse grupo representou a base em que se assentou para Beja uma infância regulada pelos padrões morais e sociais estabelecidos, condição necessária a sua inclusão na sociedade de São Domingos de Araxá, à qual se soma a presença do escravo Moisés, símbolo de certo “status” sócio – econômico para a família.

Portanto, a ausência da figura exemplar representada pelo avô, mudaria o caráter da personagem Beja. Não se pode esquecer que foi a atuação do avô, como chefe da família, que definiu o modelo de papel feminino que a neta deveria representar, de acordo com os padrões

locais, porém acrescido de peculiaridades, como a autonomia e a possibilidade de pensar por si mesma, tão caras à identidade de Beja.

No episódio escolhido como ponto de partida para a narrativa de Totinha, resta apontar a possível presença no grupo familiar de um irmão de Beja, não mencionado por Totinha, que em interpretações posteriores substituiu a figura do avô.

Da sua existência não restam dúvidas. Francisco Antônio Rodrigues foi mencionado por Beja em seu testamento34, no trecho que abaixo transcrevo:

Nomeio e péço que sejão meos testamenteiros; em primeiro lugar meo genro Clementino Martins Borges; em segundo lugar meo neto Doutor Francisco Francisco [sic] Ribeiro da Silva, e em terceiro lugar meo Irmão Francisco Antonio Rodrigues; a cada um dos quàes habilito para si e insolidum [?] ad’ministrar os bens respectivos; e ao que aceitar este incargo, deixo de premio cem mil reis; e o tempo de um anno para prestação de comtas em juiso.

Não se sabe se veio com a família ou se nasceu em São Domingos de Araxá, ou, ainda, se ficou em Formiga em companhia do pai, um comerciante local. Diz-se também que Francisco Antônio Rodrigues teria acompanhado a irmã quando essa foi para Bagagem, estabelecendo-se em Barro Branco, onde, na ocasião, foram encontrados diamantes famosos (Rosa, 1999).

Definido o grupo doméstico e o ponto de partida para a narrativa, Totinha dirige sua memória e imaginação para Beja.

Para ela reservou a beleza e a inteligência, predicados necessários ao papel destinado a Beja na trama a ser desenvolvida. A narradora absorveu todos os detalhes necessários a sua representação, sem deixar escapar nem a lenda nem a realidade. Apresentou Beja segundo a ideologia visual de seu tempo, na qual a figura feminina é marcada por uma imagem idealizada, a que contribuem diversos atributos. Entre eles, a beleza física e um rosto meigo que revela em sua expressão a pureza (possíveis indícios de uma forma estética capaz de dar uma impressão viva da memória de Beja, em sua dimensão histórica e mitológica).

Assim se fez Beja: um rosto harmonioso, iluminado por grandes olhos verdes e emoldurado por cabelos castanho-dourados. A essa imagem idealizada, acrescenta-se a inteligência que a caracterizou, fazendo-a superar a pouca educação recebida em seu meio humilde e de poucas letras.35 Uma imagem que, descrita pela tradição oral, acompanharia Beja em sua primeira aparição na linguagem escrita: “Reunia todos os encantos de uma beleza

34 Ver anexo 11.

ideal à esplêndida primavera (...) e no todo harmonioso das linhas e dos contornos, lembrava as formas divinaes (sic) da escrava grega que Paros imortalizou no mármore” (Silva apud Montandon, 2004, p. 149).

Segundo Totinha, o destaque dado à beleza da menina Beja permeia a infância dessa. Aparecia na descrição das suas habilidades na montaria, fato destacado por indicar um traço permanente do caráter de Beja, o de transgressão de normas; na de menina prendada que bordava e fazia rendas; e na de menina fiel aos preceitos da igreja, que freqüentava o catecismo após as missas domingueiras, onde atrairia os olhares dos fiéis e, entre eles, o que de fato lhe interessava, Antônio Sampaio.

A presença de Antônio na narrativa de Totinha imprime um caráter romântico aos acontecimentos, os quais passam a envolver o encantamento despertado por Beja em seu admirador, assim como a insinuação de uma promessa de final feliz.