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BEJA E O OUVIDOR SEGUNDO TOTINHA

A TRADUÇÃO CULTURAL DE BEJA: história e memória

BEJA E O OUVIDOR SEGUNDO TOTINHA

A promessa de final feliz, previsível diante dos fatos anteriormente apresentados é, no entanto, desfeita. Beja fora criada para assumir os papéis de esposa e mãe, como todas as mulheres da sociedade colonial, o que se daria conforme o quadro das atitudes e estratégias determinadas por seu avô, que via em Antônio um partido promissor. Não foi o que ocorreu. Beja foi raptada e seu avô morto ao tentar defendê-la. Como vítima é levada para Paracatu do Príncipe, na Capitania de Minas Gerais, onde passa a viver no Palácio da Ouvidoria com o seu raptor, o Ouvidor Joaquim Ignácio Silveira da Mota.

Esse acontecimento decisivo e significativo marca o início da transformação da personagem Beja, a qual assumirá, daí em diante, a condução de seu próprio destino, criando, ao representar o seu novo papel, os elementos necessários à sua figura de heroína.

O Ouvidor passa a integrar a trama central da história contada por Totinha, assim como fora presença obrigatória na trama tecida por sua mãe Haydée, narradora essa que usara em sua urdidura os fios recolhidos da memória de sua avó Beja.

Dessa maneira, nota-se que, nesse momento, o rapto e o Ouvidor definiriam uma situação indicativa do possível desenvolvimento de um enredo melodramático, o que de fato se deu.

Descarta-se de imediato o que seria previsível para moças desonradas nessas circunstâncias, um destino de mulher decaída, para se construir, numa atmosfera que permitiu

excessos imaginativos de toda sorte, uma configuração da vítima, que aos poucos se metamorfoseou em heroína, imagem com que Beja se fixou no imaginário mineiro.

Para Totinha, a menina tímida e inexpressiva transformara-se em uma dama moldada segundo os costumes da corte, condição tal que lhe permitiu exercitar sua capacidade intelectual no convívio com pessoas influentes que transitavam pelos salões do Ouvidor, em Paracatu do Príncipe.

Dessas e de outras mudanças comportamentais a ela impostas pela sua nova condição, a de cortesã do Ouvidor, Beja tirou as possibilidades de lidar com o seu infortúnio, transformando-o em fonte de poder e realização pessoal.

Em seu relato, Totinha analisava a habilidade com que sua heroína agiu na condução da situação a ela imposta, ressaltando a sua capacidade de lidar com a adversidade, o que, de certa forma, preenchia o espaço destinado a possíveis críticas morais que o fato exigia.

Para completar o quadro francamente favorável à Beja, o retoque final: a participação dela no desfecho da questão territorial mineira, episódio que legitimou sua figura como heroína, à qual não faltaram os traços de força e coragem, tendo esses passado a caracterizá-la justamente a partir dessa atuação memorável.

* * *

Aos olhos de Oliveira Mello, escritor e pesquisador de Paracatu, seria impossível, cronologicamente, que Joaquim Ignácio Silveira da Mota, o Ouvidor e raptor de Beja, tivesse passado por tal localidade. Segundo ele, quando da ocasião do suposto rapto de Beja, o ouvidor que exerceria jurisdição, interinamente, sobre o Noroeste mineiro era o vigário Joaquim de Melo Franco, enquanto Mota estaria vinculado à província goiana. (Rosa, 1997)

Para Oliveira Mello, Beja representa um mito e, como tal, seria capaz de abarcar diferentes significados sociais em determinados momentos históricos nos quais se faria necessária a sua apropriação. O mito, segundo ele, teria sido criado por Sebastião de Afonseca e Silva, responsável pela primeira publicação, em 1915, de um relato histórico sobre Araxá, relato esse onde Beja atuara como heroína principal. Posteriormente, Agripa Vasconcelos dele se apropriou ao escrever A vida em Flor de Dona Bêja, publicado em 1957, retirando Beja do Triângulo Mineiro e transportando-a para paragens muito distantes, as quais Beja, certamente, teria sequer imaginado conhecer.

Assim, como ficou até aqui assentado pelo que se ouviu de Joana, Haydée e Totinha, descendentes de Beja, pode-se afirmar ser essa uma figura “mitogênica”,36 tanto em sua representação, quanto em sua história de vida.

Há muita discordância quanto ao local onde Beja e o Ouvidor viveram após o rapto. Oliveira Mello nega a ida do Ouvidor a Paracatu. Pedro Divino Rosa (1997), também escritor e pesquisador, encontra-o em Goiás Velho:

Pesquisei livros, documentos, papéis diversos e notas sobre a Província, tanto no Museu das Bandeiras, onde são guardadas tais raridades, como no Palácio Conde dos Arcos, onde creio ter morado o Ouvidor em questão, e ainda contei com a laboriosa ajuda do pesquisador Elder Camargos de Passos. Concluí, após checar documentos que provam a existência do ouvidor e de seu poder em Goiás Velho, que fora ele o raptor de Dona Beija e que ali morou a então menina, até a volta da autoridade para Portugal. (p. 87)

Por outro lado, Montandon (2004) diz procurar, em vão, apoio documental sobre o “suposto” rapto de Beja:

(...) não localizamos evidências documentais que o fundamentassem historicamente. (...) Os nomes são reais, mas as circunstâncias que os relacionam são, aparentemente, imaginárias, ou parecem pertencer a outras “histórias” e a outros lugares. Podem ter sido inseridos para preencher as lacunas que existem no período inicial da vida de Anna Jacintha em Araxá e, com eles, compor a seqüência cronológica indispensável a um relato “histórico”, segundo era concebido e de acordo com as normas que vigoravam quando foi criado em 1915. (p. 203)

Contudo, Joana, Haydée e Totinha, cada uma a seu modo e em seu tempo, se encarregaram da inclusão do rapto em suas narrativas. O caráter mítico e dramático que reveste o fato permitiu, nessas múltiplas traduções, as interpretações fantasiosas, os acréscimos e as omissões. A credibilidade dessas narradoras, no que se refere ao conhecimento da história contada, assim como a coerência interna apresentada na construção de suas narrativas, teriam concedido a essas um caráter verossímil.

Levando-se adiante tal questão, pode-se considerar que Joana, Haydée e Totinha, como ouvintes e narradoras da história de Beja, experimentaram a dependência que se acredita existir entre aquele que escuta, o contador e o discurso narrativo fundador, o qual, como se viu, partiu de Beja. Ao que parece, todas elas possuíam, em menor ou maior grau, duas das qualidades inerentes ao bom narrador – a da capacidade de memória que as

36 Peter Burke (2000) considera mitogênicas as figuras que, por sua singularidade, são mais susceptíveis de se tornarem mitos.

aproximou do que ouviram contar e a da imaginação que as levou aos descaminhos criativos – as quais, por sua vez, as fez personalizar, cada uma a seu modo, a história de vida de Beja.

Pode-se ainda incluir o depoimento de Maria da Ressurreição Borges Caixeta, neta de Clementino e Joana, bisneta de Beja, tal como o transcreveu Pedro Divino Rosa (1997) em seu livro Dona Beija:

Dona Beija, afirma a bisneta, fora realmente raptada por um ouvidor da Corte, que encantou-se por ela e ao voltar para a sua Ouvidoria mandou os soldados buscá-la para ele. Relatou que o avô de sua bisavó fora morto pelos homens da autoridade, na tentativa frustrada de resgatá-la e que a jovem vivera com o amante até completar 18 ou 19 anos, quando retornou para o povoado, onde morou até mudar para a Bagagem.(p. 95)

Seja como for, o rapto de Beja está entre os fatos escolhidos para compor a sua história de vida contada oralmente tanto por sua própria protagonista, quanto pelos seus descendentes, sendo tal acontecimento mais tarde, ainda confirmado quando da passagem dessa história de vida da forma oral para a escrita, não sendo mesmo dispensado em outras versões como a literária, a teatral e a televisiva. Em meio a muitas hipóteses, menciono uma que pode ser significativa. O historiador Waldemar de Almeida Barbosa encontrou nos autos de um processo por rapto indícios que justificariam uma possível aproximação desse rapto com o rapto de Beja.

Nesse sentido, se caracterizaria como a “apropriação” de um fato ocorrido em Serro, antiga Vila do Príncipe, em Minas Gerais. Segundo a documentação, em 1801, nesse lugar, um ouvidor de nome Antônio Seabra da Mota foi acusado de raptar a filha de um comerciante português, a quem devia dinheiro. O rapto teria como objetivo forçar a realização de um casamento, através do qual sua dívida ficaria saldada. No entanto, o pai da jovem moveu contra o raptor um processo de indenização, cujos autos constam nos arquivos. (Barbosa apud Montandon, 2004, p. 204)

Note-se que os documentos aludem a 1801, quando Beja tinha um ano.

A justificativa para a apropriação do fato narrado acima por narrativas da história de Beja baseia-se, no caso, não apenas na semelhança dos sobrenomes dos ouvidores, Seabra da Mota e Silveira da Mota, como também na semelhança dos nomes dos locais onde aconteceram as histórias, Vila do Príncipe e Paracatu do Príncipe.

Todas essas apropriações, mencionadas ou não, abrem espaço, entre o conhecido e o desconhecido, para inúmeras indagações que, respondidas ao longo do tempo, ainda comportam acréscimos e atribuições de novos significados.

No caso da história contada por Totinha, Beja foi raptada pelo Ouvidor, acrescentando-se ao fato, todas as circunstâncias que dele decorreram.

Quanto ao Ouvidor, personagem real na trama contada, como atestam documentos judiciários resultantes de sua atuação em São Domingos de Araxá, os quais seriam datados do início do século XIX, viu-se que ele não foi julgado pelos seus crimes: o de rapto perpetrado por ele contra Beja e o de ser responsável pela morte do avô dela. Voltou à Corte e posteriormente a Portugal, falecendo com mais de 80 anos.37

Totinha se indignava com essa impunidade e encontrava na questão das terras antes mineiras, indevidamente tomadas pela Capitania de Goiás, o único recurso capaz de justificá- la. Ao promover a reintegração das terras do Sertão do Novo Sul, hoje Triângulo Mineiro, incluindo São Domingos de Araxá onde se deram os crimes, à Província de Minas Gerais, o que foi feito, segundo Totinha, por insistência de Beja, o Ouvidor teria eliminado a possibilidade de ser punido, pois o caso, nesses termos, passava para a jurisdição da comarca de Paracatu, ficando sujeito, portanto, à sua Ouvidoria.

Nessa versão, percebe-se que não foram apenas as circunstâncias provocadas pelo rapto que motivaram o empenho do Ouvidor em resolver a questão territorial. A interferência de Beja foi ressaltada por Totinha pela firmeza com que ela atuara sobre o amante, conduzindo-o nos atos necessários ao retorno do Triângulo Mineiro à Província de Minas Gerais.

Para Totinha que tinha Minas Gerais como seu país, Beja era uma heroína. Ouvi-la narrar esse capítulo da vida de sua admirada heroína representava estar em meio a um campo de batalha, no qual, entre fogo e sangue, Beja irrompia gloriosa ao devolver aos mineiros as suas terras de há muito perdidas.

Na versão menos apaixonada de Haideezita Braga Jacob, sobrinha de Totinha, que residiu em Araxá, a atuação de Beja assim ficou: “(...) Haideezita admite que a ancestral havia sido mesmo cortesã e que usou a sua beleza e encantamento para atingir seus objetivos e influenciar um ouvidor da Corte para desmembrar o território triangulino da província de Goiás.” (Rosa, 1997, p. 81)

Apesar das considerações feitas por Oliveira Mello no artigo intitulado Dona Beja, Paracatu e o Triângulo, publicado no Estado de Minas, na década de 1980, as quais afirmariam ser uma “farsa gritante” a participação de Beja no episódio que levou o “Triângulo de volta até os mineiros” (Montandon, 2004), foi como se ouviu Totinha contar: Beja deixou o círculo da vida privada para se fixar como figura política na história de Minas Gerais.

37 Conforme Capítulo I desta tese.

Totinha não leu o relato do Correio de Araxá, assim como não se interessou pelo romance de Agripa Vasconcelos, A Vida em Flor de Dona Bêja, apesar da rapidez com que ele, ao sair do prelo, chegou à nossa casa em Araguari. Por insistência expressa de minha mãe Marucha, admiradora incondicional da Beja, sua tetravó, o livro veio pelo reembolso postal e durante semanas circulou pelas mãos e pela imaginação dos que a ele se entregaram. Pode-se imaginar a diversidade de opiniões que surgiram diante dos fatos apresentados por Agripa a leitores que, de há muito, ouviam a história de Beja contada, oralmente, em diferentes contextos e épocas.

Assimilar as relações entre tradição escrita e oral, memória e história ou tradição oral e história, provocou nesses leitores uma inquietação própria daqueles que, ao receber novas idéias e valores, percebem as dificuldades relativas às adaptações necessárias diante do novo contexto: a adoção de caminhos alternativos de interpretação das idéias do autor, desconhecido e invisível. Isto significa repensar a força da subjetividade e da emoção na história criada e recriada por intermédio da memória familiar. Repensar ainda, certa melancolia que os mais próximos, como minha avó, minha mãe e até mesmo Totinha em sua posição de defesa continuada, sentiram ao perceber que Beja as deixava, pelo menos não fazia mais parte da sua intimidade, ao ganhar nova roupagem para trilhar caminhos desconhecidos.

Por que Totinha não teria lido a obra aqui em questão? Afinal, não fazê-lo representava, na época, o mesmo que significa, hoje, desconhecer o enredo da novela apresentada no horário nobre pelo canal da televisão. Porém, ela limitava-se a ouvir as opiniões dos que leram e, como não se manifestava, é possível que refletisse sobre as relações entre escrita e oralidade, preferindo o silêncio a opinar sobre o mundo dos textos que não era o seu, ou pelo menos, não era terreno em que se sentisse à vontade.

Ítalo Calvino (1996) escreveu o seguinte:

Enquanto espero que o mundo não-escrito se torne mais claro, sempre há uma página escrita aberta diante de mim, onde posso voltar a mergulhar: faço-o sem demora e com a maior satisfação, porque ali, pelo menos, mesmo que só compreenda uma pequena parte do todo, posso alimentar a ilusão de que mantenho tudo sob controle. (p. 141)

Diferentemente de Ítalo Calvino com relação ao mundo escrito, Totinha se entendia melhor com o mundo não-escrito e, além do mais, Beja, para ela, já tinha a sua história inscrita nas memórias daqueles que a traduziram, nas muitas vozes que, em diferentes

timbres, se encarregaram de contá-la, como a que agora escrevo apoiada na que a mesma Totinha me contara.