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Depois da Grande Guerra Febvre pensou em criar uma revista internacional sobre história econômica, entretanto o projeto enfrentou dificuldades e não foi concretizado (BURKE, 1991, p.32). Anos mais tarde, Bloch teve essa iniciativa, porém sua intenção não era fazer uma revista internacional, mas sim nacional e que pudesse comportar todas as ciências humanas. Bloch e Febvre trabalharam juntos no projeto da revista francesa e assumiram sua direção diante da recusa de Pirenne. O primeiro número saiu em 15 de janeiro de 1929 com o título de Annales d’histoire économique et sociale. Em suas primeiras edições os autores se dedicaram mais à história econômica. A formação do grupo de colaboradores pode revelar a intenção na realização de um projeto interdisciplinar: o geógrafo Albert Demangeon (1872-1940), o sociólogo Maurice Halbwachs (1877-1945), o economista Charles Rist (1874-1955) e o cientista político, discípulo de Vidal, chamado André Siegried (1875-1959) (BURKE, 1991, p. 33). Aos poucos a revista Annales tornou-se um instrumento de artilharia poderoso contra a chamada “história tradicional”. A revista foi lançada como a porta-voz de uma nova história. Os principais ataques à historiografia instituída vinham de Febvre e foram feitos sobretudo entre 1930 e 1940 (BURKE, 1991, p.38).

No decorrer dos anos 30, Febvre e Bloch deixaram Estrasburgo e assumiram outros cargos em outras Universidades. Em 1933, Febvre assumiu uma cátedra no Collège de France e em 1936 Bloch encarregou-se da disciplina de história econômica na Sorbonne. As mudanças de cargos e de Universidades são sinais visíveis do sucesso da Annales. Foi se formando, em torno da revista, um grupo de colaboradores cujo objetivo comum era o combate à “história

tradicional”: “[...] aquilo que mantém juntos sociólogos, geógrafos, psicólogos e historiadores dos Annales, aquilo que fundamenta sua unidade, é a rejeição comum ao historicismo” (DOSSE, 2003, p. 83). A institucionalização da revista Annales, sua repercussão e a visibilidade de seus colaboradores vai se constituindo através de uma relação de forças e do seu enfrentamento com a Escola Metódica Francesa e Historicismo Alemão, ambos movimentos chamados de tracionais e positivistas. Convém esclarecer que os dois diretores eram reconhecidos no âmbito acadêmico antes do lançamento da revista. Não só participavam ativamente da Revue de synthèse como também haviam publicado obras de repercussão nacional. Marc Bloch publicou Les rois thaumaturges em 1924, obra que teve sucesso imediato, e Fevre já tinha publicado dois livros, a tese Philippe II et la Franche-Comté, em 1911, e Martin Luther, em 1928, que também já eram reconhecidas e indicadas pelos demais historiadores (DOSSE, 2003, p. 74).

Desde seu lançamento a revista não parou mais de publicar novas edições. Com início da Segunda Guerra o ritmo de produção diminuiu um pouco. Uma das razões era a dificuldade de Bloch continuar a colaborar com a revista, por ser judeu e ser obrigado a se esquivar das autoridades nazistas que ocupavam a França neste período. A fiscalização e censura dos artigos também se tornaram constantes. Bloch, que já havia lutado na Primeira Guerra, com 53 anos entrou para a resistência francesa à ocupação nazista e à República de Vichiy e tornou-se membro do comitê diretor da resistência. Na primavera de 1944, a Gestapo prendeu vários membros do comitê. Nesta ocasião, Bloch foi preso, torturado e morto (DOSSE, 2001, p. 93- 94). Mesmo participando da resistência, Bloch conseguiu escrever dois pequenos livros que seriam publicados postumamente: L’Étrange défaite, obra que testemunhava a derrota francesa frente à ocupação alemã de 1939, e que ao mesmo tempo tentava compreender esta derrota; e um ensaio sobre o ofício do historiador, que será analisado mais adiante, no terceiro capítulo.

Enquanto Bloch participava da resistência, Febvre continuava a editar a revista, primeiramente com o nome de ambos, depois somente com o seu, devido à política antissemita (BURKE, 1991, p. 38-39). Diante desta continuidade e sucesso, Febvre recebeu a missão do ministro da educação para dirigir a elaboração de uma Enciclopédia Francesa, entre 1932-34, coordenando 600 colaboradores e 200 universitários (DOSSE, 2003, p. 75). Terminada a guerra, Febvre também teve a chance de auxiliar na reorganização de uma das instituições mais prestigiosas do sistema francês de educação superior, a École Pratique des Hautes Études que havia sido fundada em 1884 (BURKE, 1991, p. 42). Essas funções públicas que foram exercidas por Febvre demonstram como ele (ao lado dos colaboradores), no comando da Annales, conseguiu, aos poucos, tornar a proposta da revista uma referência para o ensino e produção de

história na França. O movimento historiográfico criado em torno dos Annales normalmente é divido em três fases: uma entre 1920 e 1945, com Bloch e Febvre, outra é inaugurada pós Segunda Guerra com Fernand Braudel e a última fase teria iniciado por volta de 1968 e foi caracterizada pela fragmentação (BURKE, 1991, p. 12).

Para além destas informações que corroboram com nossas intenções de análise, queremos entender como que, simbolicamente, os Annales conseguem obter este sucesso, desbancando, com o tempo, a Escola Metódica. Dito de outra maneira, que estratégias são utilizadas no âmbito do discurso para obter tal reconhecimento? Para responder a esta questão utilizaremos alguns conceitos já conhecidos no campo da história da historiografia. Um destes conceitos é o de “mito historiográfico”. Como já destacado, a institucionalização dos Annales se deu por meio da oposição entre história tradicional versus história nova, história política versus história econômico-social. Todavia, quem construiu tal oposição? Podemos afirmar que foram os membros da revista, que em sua primeira fase eram dirigidos por Bloch e Febvre. Os diretores eram os que “comandavam a cruzada” contra a “história tradicional”. Suas armas eram artigos, palestras, resenhas e aulas, e seu principal instrumento de artilharia era a própria revista. No enfrentamento dos Annales à Escola Metódica, foi se constituindo um perfil desta escola. Muitas caraterísticas inscritas neste perfil fazem parte de um “mito historiográfico” que pode ser definido como: “[...] uma crença, ou articulação de várias crenças, coletivamente construída(s) e a partir de então associada(s) à obra e à trajetória de um historiador ou grupo de historiadores” (MATA, 2015, p.188). O campo de atuação do “mito historiográfico” é, sobretudo, o da oralidade acadêmica. E como todo mito suas afirmações não se sustentam no real, mas na vontade de que aquilo que está sendo afirmado venha fazer parte do real.

Não é outro o caso da assim chamada ‘historiografia positivista’ do século XIX. Um mito tão mais resistente na medida em que se baseia numa caracterização heteróclita, cujo sentido último é o de construir o avesso de outro mito e, assim legitimá-lo: o da “revolução” dos Annales. “Positivista” seria aquela historiografia empirista, centrada apenas no âmbito político e do estado nacional, no uso de documentos oficiais, cultora de grandes homens, inteiramente alheia à reflexão teórica e às “ideias”. Quando se atribuiu ao famoso manual de Langlois e Seignobos a condição de summa desta historiografia positivista, o alvo é bem claro. São aqueles a quem Febvre chamou os ‘derrotados de 1870’. Ou seja, o grupo da Revue Historique, e, por extensão, a historiografia acadêmica alemã, historicista, que lhe servira de modelo. (MATA, 2015, p.188)

E por que este mito se torna digno de crédito, sendo transmitido e legitimado? Porque, de acordo com Certeau, dependendo do “lugar social e institucional” que o historiador, ou o grupo de historiadores ocupa, seu discurso, que é performativo, mesmo sendo falso, é entendido como verdadeiro por ser um ato de autoridade: “ato de palavra como ato de autoridade” (2000,

p.103). O discurso utilizado por Febvre ilustra bem esta questão. Primeiro podemos comentar acerca do título de sua coletânea de artigos: “Combates pela história”. Foi necessário travar um combate contra aqueles que ocupavam a academia, caricaturando a historiografia produzida por eles.

[...] a história dos vencidos de 1870, as suas prudências vacilantes, as renúncias a qualquer forma de síntese, o culto laborioso, mas intelectualmente preguiçoso, do “fato” e esse gosto quase que exclusivo pela história diplomática [...] daí que eu tenha reagido instintivamente e quase sem apoio no campo dos historiadores [...]. Portanto, sozinho na arena, fiz o melhor que pude. (FEBVRE, 1989, p. 9)

A identidade dos Annales vai se formando a partir da oposição entre a geração de Bloch

e Febvre e a geração anterior de historiadores, como Lavisse, Seignobos e Langlois (DOSSE, 2003, p. 38). Antes do lançamento da Annales, a revista de Berr, Revue de synthèse, já fazia críticas à “história tradicional”, propondo uma história universal que englobasse aspectos econômicos, sociais e mentais. Dosse (2000, p. 70) questiona: se já existia uma revista com uma proposta semelhante a que Bloch e Febvre lançariam, e eles participavam ativamente nas publicações, por que lançar outra? A resposta é que Berr não se preocupava, ao que tudo indica, em criar seguidores ou formar uma escola em torno da sua revista, não lançou mão de nenhuma estratégia institucional para ocupar cátedras universitárias, diferentemente dos “annalistas”. As estratégias que, como mencionamos, se dão, sobretudo, na oralidade acadêmica, utilizadas por Bloch e Febvre, consolidaram seu programa. As regras estabelecidas para os artigos e seus autores, vão tornando-se as regras da pesquisa científica em história. Essa é a importância da criação de uma instituição social de estudos (sociedade de estudos) que transmite constantemente sua linguagem científica através de revistas e boletins: “A intuição não dá apenas uma estabilidade social a uma ‘doutrina’. Ela a torna possível e, sub-repticiamente, a determina” (CERTEAU, 2000, p. 70).

No mito fundador dos Annales está a ideia de marginalidade e antidogmatismo (DOSSE, 2003, p. 71). Mas analisando a trajetória de Bloch e Febvre, podemos constatar que não estavam situados à margem da academia. Lecionaram em Estrasburgo, universidade bem reconhecida, contudo tinham objetivos maiores, queriam ocupar cargos institucionais ainda mais centrais. Intencionavam assumir cátedras no Collège de France, que era a universidade de pesquisa mais reconhecida e almejada da França. Febvre conseguiu ser nomeado em 1932 depois de duas tentativas frustradas, mas Bloch não entra no College apesar de ter se candidatado, também, por duas vezes. No fim do século XIX, as cátedras de história nas universidades haviam crescido 50%, enquanto que, entre 1919 e 1959, não foram ampliadas, enquanto as das outras disciplinas aumentavam. O acesso a cargos universitários, portanto, ficara restrito. Isso pode ser percebido

pela análise do corpo docente quanto à idade: enquanto em 1900 mais da metade tinha menos que 42 anos, em 1934 a média era de 62. Ou seja, caso Bloch e Febvre quisessem assumir esses cargos, precisavam lançar mão de alguns recursos, e a revista também serviu para este propósito (DOSSE, 2003, p. 53-54).

Somando-se ao “mito historiográfico”, ainda gostaríamos de refletir se o movimento inaugurado por Bloch e Febvre trouxe mudanças de caráter paradigmático. Este assunto será abordado em sequência e no último capítulo será retomado, quando formos questionar se dentro do rol de mudanças encontramos alterações na noção de verdade e, consequentemente, a utilização de uma teoria filosófica da verdade que os diferenciam dos historiadores da Escola Metódica.