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4.2 História e Verdade

4.2.1 Verdade: definição e critérios

Primeiro é preciso assinalar que, para Bloch e Febvre, a verdade é um valor que está presente em todas as ciências. Para Febvre este valor deve ser comunicado e partilhado.

Que a verdade seja bem comum de todos os homens; que cada um desses homens, se possui uma parcela dela, por mínima que seja, deva imediatamente comunicá-la a todos, desde que possa, sem reservas nem cálculos; quem, se não o fizer, seja culpado em relação à coletividade – essa ideia que é a nossa, que é, em todo caso, a de nossos cientistas, totalmente desinteressados e pródigos nas suas contribuições – essa ideia, os homens do século XVI quase não tinham ou não a formulavam. (2009, p. 355)

A palavra “verdade” é normalmente usada em dois sentidos: para referir-se a uma proposição/sentença ou para referir-se a uma realidade. Uma proposição verdadeira difere da falsa, e realidade verdadeira difere daquela que é “aparente, ilusória ou inexistente” (MORA, 1998, p. 3014). Não é tarefa fácil discernir entre esses dois sentidos, e na linguagem corrente normalmente não é feita tal distinção. Selecionamos alguns trechos das obras lidas para exemplificar esta diferença:

I. Como realidade: “O ‘verdadeiro’ Rabelais [...] não existe para eles” (FEBVRE, 2009, p. 105); “Todas as vezes, procissões, preces, toques de sinos, te-deum, serviços fúnebres, missas, cerimônias de todo tipo. Isso é verdade na cidade, é mais verdade ainda no campo, talvez” (FEBVRE, 2009, p. 303); “Mas o raciocínio muito simples que, ao excluir qualquer outra possibilidade de explicação, nos permite passar do objeto verdadeiramente constatado ao fato cuja prova nos traz [...]” (BLOCH, 2001, p. 71).

II. Como sentença/ proposição: “Verdade: haverá uma verdade, no domínio da ciência, no dia em que, de duas opiniões que são apenas opiniões, poder-se-á controlar que uma é verificada pelos fatos, a outra, desmentida, ou não confirmada, por eles (FEBVRE, 2009, p. 358).

Nossa pesquisa limita à discussão do pressuposto filosófico da verdade no sentido de sentença/proposição. Verdade neste âmbito é uma espécie de propriedade que as sentenças podem ou não possuir (KIRKHAM, 2003, p. 99). A história, entendendo-a como um discurso acerca do vivido humano, pode conter sentenças verdadeiras ou falsas, assim como os relatos que podem conter informações verdadeiras ou falsas. Essa propriedade se manifesta, como já

foi visto no capítulo anterior, numa situação relacional (COSTA, 2005).A relação se dá entre os portadores de verdade e algum outro âmbito que se apresenta como condição de verdade. É preciso lembrar que essa propriedade não está nas coisas, mas no juízo acerca das coisas. Isto

parece estar bem claro para Bloch:“A incerteza está portanto em nós, em nossa memória ou na

de nossas testemunhas. Não nas coisas” (2001, p. 117).

Bloch acredita que a história, como as demais ciências, busca a verdade, e é isso que a distingue dos romances. A história deve ser verdadeira, porque o compromisso do historiador com a verdade é para ele um compromisso com a justiça, “[...] a história tem o direito de contar entre suas glórias mais seguras ter assim, ao elaborar sua técnica, aberto aos homens um novo caminho rumo à verdade, por conseguinte, àquilo que é justo” (BLOCH, 2001, p. 124). Afirma que o juiz e o cientista têm em comum a submissão à verdade. Assim como Bloch, Febvre também afirma que a tarefa da história é buscar e expressar a verdade:

A história como é concebida hoje, pode florecer em arte, pode ser coroada com a filosofia, mas é principalmente e necessariamente o estabelecimenrto dos fatos e a exposição precisa dos fatos apurados, uma tarefa, como será visto adiante, singularmente difícil e delicada, em suma, a busca e a expressão da verdade. (FEBVRE, 2013, p. 480)

A preocupação de Febvre com a verdade é evidenciada por Crouzet no posfácio do livro sobre a incredulidade. O comentador descreve Lucien Febvre como advogado de defesa de Rabelais que trabalha sem tréguas. Para Crouzet, a ele se atribui “[...] o papel do libertador. Tem tal confiança na capacidade do historiador para neutralizar as miragens da análise que vê na imputação de incredulidade feita a Rabelais um ‘sacrilégio’ contra a verdade” (CROUZET, 2009, p. 410). Conseguir neutralizar e afastar miragens da análise significa escrever de forma mais objetiva possível mantendo o compromisso com a verdade. Notamos aqui grande semelhança entre o pensamento de Febvre e o de Ranke. O historicista queria, apoiado no rigor científico, afastar qualquer parcialidade do conhecimento histórico, tornando-o o mais objetivo possível.

Dessa forma, se a história, assim como as demais ciências, busca e prima pela verdade, então precisamos estabelecer algumas questões para que possamos compreender o que seria a verdade para Bloch e Febvre: Como esses autores a definem? Quais são os critérios que indicam a verdade? Existe nestas repostas referências à realidade? Como eles apresentam a situação relacional que permite afirmar que x é verdadeiro? Caso se trate de uma situação de correspondência com o real, esta correspondência é uma espécie de correlação ou congruência?

Antes de respondermos a estas questões, é conveniente retomar a distinção feita no segundo capítulo entre critérios de definição de verdade, critérios de identificação e justificação epistêmica. Como discernir entre um testemunho falso e um verdadeiro? Alguns critérios podem nos levar a crer que determinado testemunho é verdadeiro. Muitos afirmam que a verdade é relativa pois confundem definição de verdade com critérios de identificação. Um testemunho é verdadeiro se suas informações correspondem ao que de fato ocorreu (esta frase está relacionada a uma definição de verdade). Existem alguns critérios que podem nos fazer identificar tal testemunho como sendo verdadeiro, por exemplo: se o documento que o contém for do material comum à época que informa ter sido feito, se a linguagem utilizada é a mesma de determinada época, se outros vestígios reforçam a afirmação que está contida neste testemunho, etc. (estes aspectos dizem respeito à identificação). Mas essas observações são feitas a partir das informações que dispomos; outro historiador pode dispor de mais informações e atestar que aquele testemunho é falso. Como, para o relativista, não há distinção entre definição e critério de identificação de verdade, ele concluirá que a verdade é relativa. Mas essa distinção é extremamente compreensível e importante, diz respeito à “[...] distinção entre a aparência que as coisas assumem para uma pessoa (os critérios de identificação de verdade) e a realidade dessas mesmas coisas (os critérios que definem a verdade)” (MOSER; MULDER; TROUT, 2004, p. 72).

Os critérios de identificação podem nos enganar. Caso definição e critérios de identificação sejam a mesma coisa, bastaria a aplicação de todos os critérios de identificação para que estivéssemos corretos acerca do testemunho. Em uma passagem de Bloch essa distinção aparece com nitidez: “Deveria ser supérfluo lembrar que, inversamente, os testemunhos mais insuspeitos [...] não são, necessariamente, pois isto, testemunhos verídicos” (2001, p. 97). Podemos justificar nossa conclusão com base em critérios, mas justificação também não pode ser confundida com definição de verdade. Para esclarecer essa diferença, Moser recorda a teoria geocêntrica, que era justificada por um grande número de filósofos e astrônomos, e como sabemos não era uma teoria verdadeira. Justificação possui uma função prática, se você estiver justificado em crer que algo é verdadeiro é porque você possui alguns indícios que lhe levaram a esta crença. Justificação é um tanto diferente de justificação epistêmica. Você pode estar “justificado” a crer em alguma coisa por razões diversas que podem ser pessoais inclusive. Justificação epistêmica, contudo, prevê uma avaliação que elimine falsidades, que seja razoável e que possibilite a aquisição de verdades. Justificação é um termo comparativo (FLORES, 2012, p.187). A verdade não é condição para justificação, pois justificação é sempre passível de anulação (MOSER, 2004, p. 87). Uma ideia pode não ser

verdadeira, mas naquele determinado momento apresentou-se aos homens como uma explicação válida das coisas e pode, portanto, se confundir para eles com a verdade; é até mesmo uma questão de meios técnicos que se dispõe para chegar a determinadas afirmações (FEBVRE, 2009, p. 310).