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Consoante visto no tópico anterior, a teoria da nulidade da norma inconstitucional é a regra no direito brasileiro, bem como em diversos outros países, determinando que as decisões exaradas em vias de controle de constitucionalidade são dotadas de efeitos retroativos. Tal entendimento, de matriz norte-americana, foi, conforme visto, inaugurado pelo juiz John Marshall, ao apreciar o emblemático caso Marbury versus Madison, em 1803, surgindo a partir daí a doutrina do judicial review. Segundo essa corrente, a Supremacia da Constituição estaria ameaçada caso se conferisse natureza constitutiva à decisão que reconhecesse o vício de constitucionalidade, ao se atribuir ao pronunciamento judicial efeitos

ex nunc, na medida em que estaria se admitindo a validade, durante certo tempo, de um diploma legal contrário ao texto constitucional91. Dito de outra forma: não se poderia admitir que uma lei contrária à Constituição pudesse produzir efeitos válidos durante certo período, sob pena de negar vigência à Lei Maior.

Contudo, com o passar do tempo, percebeu-se que a aplicação indiscriminada da supracitada teoria acabava malferindo diversos valores constitucionais, mormente o princípio da segurança jurídica, posto que uma determinada lei poderá ter vigência durante anos antes que o seu vício de constitucionalidade seja reconhecido judicialmente, de sorte que várias situações jurídicas já se encontrariam estabilizadas pelo diploma inconstitucional. Neste viés, não se mostra razoável, no caso, declarar a nulidade da norma, acarretando a extinção de todos os direitos já legitimamente adquiridos durante a sua vigência. Nos dizeres de Lúcio

Bittencourt, “essa doutrina da ineficácia ab initio da lei inconstitucional não pode ser

entendida em termos absolutos, pois que os efeitos de fato que a norma produziu não podem

ser suprimidos, sumariamente, por simples obra de um decreto judiciário”92

.

91

SARMENTO, Daniel. A Eficácia Temporal das Decisões no Controle de Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 102-103.

92

BITTENCOURT. C. A. Lúcio. O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis. 2ª ed. Rio de Janeiro:Forense, 1968. p. 147-148.

Na mesma esteira, é o entendimento de Ana Paula Ávila:

A aplicação indiscriminada de efeito ex tunc pode gerar situações de lesão a direitos individuais, de insegurança jurídica e de contrariedade aos ditames da justiça. A lei inconstitucional, ao nascer com presunção de constitucionalidade, dá origem a inúmeras relações jurídicas que se estabelecem durante sua vigência, criando em seus destinatários a legítima expectativa de que sua pauta de conduta seja cumprida93.

Diante do exposto supra, surgiu a doutrina prospectiva, ao defender a possibilidade de o Poder Judiciário conferir eficácia futura às decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade, como forma de se preservar a manutenção de valores constitucionalmente assegurados, dentre os quais se destaca a segurança jurídica.

O marco inicial do instituto da modulação de efeitos deu-se em 1965, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos, no julgamento do caso Linkletter versus Walker, firmou entendimento no sentido de se conferir efeitos prospectivos (futuros) a uma dada declaração de inconstitucionalidade em um processo criminal.

Sobre o advento da doutrina prospectiva, aponta Carlos Roberto Siqueira Castro:

[...] Ao mesmo tempo em que a Suprema Corte dos Estados Unidos emprestava aplicação retroativa aos julgamentos de inconstitucionalidade, admitia o Tribunal exceções que visavam temperar o radicalismo de tal postura exegética. Com isso evitava-se consequências periclitantes para situações jurídicas que merecessem permanecer invulneráveis a despeito da nulificação do ato normativo sob cuja regência se consumaram 94.

Outrossim, aduz Saul Tourinho Leal:

A doutrina prospectiva não pode ser desvirtuada ao oposto do que ela verdadeiramente representa. A medida, na sua versão originária, teve por finalidade

implementar decisões inovadoras proferidas pela “Corte de Warren”, nos Estados

Unidos, assegurando direitos fundamentais ainda não reconhecidos pela Suprema Corte e alvo de omissão por parte dos Poderes Públicos.Como a Corte vinha garantindo inúmeros direitos civis, precisou-se de um mecanismo para que o Estado se preparasse administrativamente para implementá-los. [...] Na jurisprudência norte-americana, a origem da postura se dá no caso Linkletter v. Walker, 381U.S 618 (1965). Nele, a Suprema Corte, após estabelecer que a Constituição não exigia, nem proibia, a declaração de inconstitucionalidade com efeito retroativo, estabeleceu que deveriam ser ponderados, caso a caso, os méritos e deméritos de uma ou outra

93

ÁVILA, Ana Paula Oliveira. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de

constitucionalidade: ponderação e regras de argumentação para a interpretação conforme a constituição do artigo 27 da Lei n° 9.868/99. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 57.

94

SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. Da declaração de inconstitucionalidade e seu efeitos. In Revista Ibero-

solução, com atenção para a história do ato normativo debatido, sua finalidade e efeito, bem como as consequências da retroatividade95.

Ante o exposto, resta caracterizado que o instituto da modulação de efeitos decisórios, na medida em que foi idealizado como um instrumento apto a assegurar direitos fundamentais, deve se pautar pelas premissas do Estado de Direito, o qual, conforme já exposto no capítulo 2 do presente trabalho, tem por objetivo maior defender os direitos individuais contra os arbítrios do Estado, através da limitação do poder estatal por meio de uma Constituição. Em decorrência disso, conclui-se que o instituto da prospecção dos efeitos decisórios só poderá ser utilizado em favor do cidadão, e não em favor do Estado, conforme será melhor demonstrado posteriormente.

No Brasil, a modulação de efeitos decisórios foi introduzida no ordenamento jurídico a partir da vigência das leis 9.868/1999 e 9.882/1999. Entretanto, anteriormente ao advento dos aludidos diplomas legais, o Supremo Tribunal Federal já aplicava em seus julgados a doutrina prospectiva, a exemplo do Recurso Extraordinário de número 79.343/BA, de 1977, por meio do qual o então Ministro Leitão de Abreu teceu as seguintes considerações acerca da aplicação irrestrita do dogma da nulidade:

Essa regra geral não é universalmente verdadeira; que existem muitas exceções ou que certas exceções tem sido reconhecidas a esse respeito; que essa teoria é temperada por diversas outras considerações; [...] que asserções tão amplas devem ser recebidas com reservas e que, mesmo uma lei inconstitucional, é um fato eficaz, ao menos antes da determinação da inconstitucionalidade, podendo ter consequências que não é lícito ignorar. A tutela da boa-fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabelecem relações entre o particular e o poder público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo96.

Na mesma linha, o Pretório Excelso, no julgamento do Recurso Extraordinário 78.209/SP, conquanto tenha declarado a inconstitucionalidade da lei, determinou a manutenção dos atos já praticados por funcionários de fato, não incidindo, em relação a estes, o efeito ex tunc da decisão em controle de constitucionalidade:

95

LEAL, Saul Tourinho. Modular para não pagar: a adoção da doutrina prospectiva negando direitos aos

contribuintes. In: Revista Dialética de Direito Tributário nº 158, 2008, p. 78-86.

96

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 79.343/BA, Rel: Min. Leitão de Abreu, DJ 31-05-1977. Disponível

OFICIAIS DE JUSTIÇA – EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES POR AGENTES DO EXECUTIVO.

I – MESMO DECLARADA A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI QUE COLOCOU AGENTES DO EXECUTIVO A DISPOSIÇÃO DOS JUÍZES, PARA

EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES DE OFCIAIS DE JUSTIÇA, ESSES

SERVENTUÁRIOS NÃO SÃO USURPADORES, MAS FUNCIONÁRIOS DO ESTADO COM DEFEITO DE COMPETÊNCIA.

II – SE O DIREITO RECONHECE A VALIDADE DOS ATOS ATÉ DE FUNCIONÁRIOS DE FATO, ESTRANHOS AOS QUADROS DO PESSOAL PÚBLICO, COM MAIOR RAZÃO HÁ DE RECONHECÊ-LA SE PRATICADOS POR AGENTES DO ESTADO NO EXERCÍCIO DAQUELAS ATRIBUIÇÕES

POR FORÇA DE LEI, QUE VEIO A SER DECLARADA

INCONSTITUCIONAL97.

Ademais, há ainda outros precedentes que denotam a aplicação da doutrina prospectiva no Brasil mesmo antes da autorização do legislador ordinário, a exemplo do RE 147.776-8 e o HC 70.514-6. Sobre estes dois julgados, esclarece Ana Paula Ávila:

Esses precedentes demonstram que o tradicional efeito ex tunc do controle de constitucionalidade prestava-se à modificação mesmo antes do advento da Lei 9.868/1999, independentemente da adoção do dogma da nulidade da lei inconstitucional pela doutrina majoritária e pela tradição na jurisprudência. O efeito retroativo permaneceu e permanece, no entanto, como a regra, em respeito ao postulado da supremacia da Constituição [...]. No entanto, com o advento da lei, fica oficializada a possibilidade de disposição, pelo Supremo Tribunal Federal, sobre os efeitos produzidos pela norma, apesar de reconhecida e declarada a sua inconstitucionalidade98.

Diante dos precedentes alhures colacionados, é que parte da doutrina afirma que a modulação de efeitos pode ser realizada pelo STF independentemente de previsão legal, haja vista que o exercício de tal prerrogativa decorre dos poderes implícitos do Tribunal Constitucional, especialmente diante da sua precípua função de guardião e intérprete da Constituição.

Nesta toada, entendem Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva Martins que “a decisão do Supremo Tribunal não decorre da disposição legislativa contida no art. 27,

mas da própria aplicação sistemática do texto constitucional”99

.

97

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 78209/SP ,Rel: Min. Aliomar Baleeiro, DJ 31-05-1977. Disponível

em <http://www.stf.jus.br>. 98

ÁVILA, Ana Paula Oliveira, op. cit., p. 56.

99MENDES, Gilmar Ferreira;MARTINS, Ives Gandra da Silva. Controle Concentrado de

No mesmo trilhar, é o escólio de Gustavo Binembojm:

É de se ver que o art. 27 da Lei nº 9.868/1999 não será, em verdade, o fundamento das decisões do Supremo Tribunal Federal que venham a restringir a eficácia temporal da declaração de inconstitucionalidade de determinadas leis. Seu fundamento será a proteção de outros valores e princípios constitucionalmente assegurados – ligados á segurança jurídica ou a excepcional interesse social – e que seriam colocados em risco por uma decisão retroativa100.

Ainda sobre o tema, elucida Fábio Martins de Andrade:

É possível compreender que a faculdade prevista no art. 27 é despicienda no plano legal, tendo em vista que deflui de modo direto da atividade própria do STF como guardião da Constituição no exercício do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Essa faculdade decorre, de maneira implícita, do próprio texto constitucional101.

Insta salientar que, na linha do defendido por Luís Roberto Barroso, a aplicação da manipulação dos efeitos temporais não implica em um confronto entre a segurança jurídica e o interesse social de um lado, e o princípio da Supremacia da Constituição de outro, tendo em vista que este constitui a base do Estado de Direito, não podendo, em hipótese alguma, ser mitigado102. Em verdade, segundo o autor, na modulação ocorre uma “ponderação entre a norma violada e as normas constitucionais que protegem os efeitos produzidos pela lei

inconstitucional”103

.

Na trilha do entendimento supra, entende Ana Paula Ávila:

À medida que se verificar que a flexibilização se deu em vista da proteção de bens jurídicos ou de interesses de hierarquia também constitucional, tem-se um conflito entre norma de igual hierarquia. Por isso não que se falar, nessa situação, em ruptura com a norma hierarquicamente superior104.

Cumpre asseverar que a técnica da prospecção de efeitos deve ser utilizada com parcimônia, sob pena de vilipendiar vários direitos e garantias fundamentais. Especialmente em matéria tributária, a qual recebeu tratamento constitucional, a aplicação do instituto em comento deverá ser ainda mais cuidadosa, do contrário pode gerar consequências desastrosas

100

BINEMBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional – Legitimidade democrática e instrumentos de

realização. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 206-207.

101

ANDRADE, Fábio Martins. Modulação em Matéria Tributária: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 347. 102

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 3ª Ed. São Paulo:

Saraiva, 2008, p. 199. 103

Idem, ibidem, p. 200.

104

ao contribuinte, a exemplo dos casos em que se aplica a modulação para se evitar a repetição de indébito das exações recolhida aos cofres públicos por conta de uma lei inconstitucional.

Neste viés, adverte Ana Paula Ávila:

Tal entendimento pode gerar, principalmente no campo do direito tributário, a irresponsabilidade impositiva, com a possibilidade de as exações inconstitucionais, mesmo após a decisão definitiva da Suprema Corte, terem seus inconstitucionais efeitos perpetuados, entendendo-se o Estado – que violentou a Constituição – autorizado a permanecer com o produto da arrecadação ilegítima, pela eficácia ofertada à decisão definitiva105.

Em vista de tal problemática, urge definir, a partir do próximo tópico, os contornos em que o STF poderá legitimamente manipular os efeitos temporais de suas decisões em sede de controle de constitucionalidade, mormente em matéria tributária.

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