• Nenhum resultado encontrado

Lisboa: Fr António do Sacramento, Fr António do Espírito Santo Andrade, P António Nicolau de Carvalho, P Tomás

4. Sermões impressos e pregados

4.3. Lisboa: Fr António do Sacramento, Fr António do Espírito Santo Andrade, P António Nicolau de Carvalho, P Tomás

Caetano de Bem, Fr. António das Onze Mil Virgens

Em sua correspondência diplomática de finais de 1755, o Núncio Acciaiuoli continua a registar o estado de miséria e horror da gente sinis- trada da capital, enquanto se faziam sem cessar «especiais procissões de penitência muito devotas» 257. Repetia o mesmo, na de 6 de Janeiro do ano

seguinte, ao referir serem numerosas as barracas levantadas «para suprirem as igrejas», mencionando continuarem a realizar-se «diversas procissões de penitência, sermões e outros obras de piedade» 258. No dito mês houve, de

251 Ibid., pp. 21-22. 252 Ibid., p. 23. 253 Ibid., p. 25. 254 Ibid.,p. 27. 255 Ibid.,p. 29. 256 Ibid.,p. 30. 257 Cf. Correspondência do Núncio, p. 66. 258 Ibid.,p. 67.

facto, o costumado triduo, com procissão e pregação, promovido pela con- fraria de Santa Engrácia, em seu templo, para desagravo do sacrilégio cometido sobre as hóstias consagradas, na segunda metade do século ante- rior 259. As celebrações religiosas, no decurso do ano litúrgico, iam tendo

lugar nos abarracamentos erguidos em Lisboa e «nos campos e entrada do campo»: a exposição do Santíssimo das 40 Horas na quadra do Carnaval; as cerimónias da Semana Santa; a festa do Corpo de Deus 260. Sem se

conhecer o exacto dia em que foi pronunciado, mas a colocar nos tempos imediatos e conturbados da catástrofe ou nos primeiros meses de 1756, conta-se outro sermão impresso, escrito e recitado pelo franciscano António do Sacramento, diante da imagem do Senhor dos Desamparados, colocada na igreja da barraca dos religiosos seráficos de Lisboa, no sítio de Campolide 261. O pregador, conhecido por suas actividades literárias e

oratórias dedicou-o ao prelado da Sé Patriarcal, Mons. João de Melo Pereira Sampaio, do conselho de estado, cujas obras de misericórdia prati- cadas menciona e enaltece: os mortos e vivos que tirou das ruínas e a quem prestou assistência, a uns dando-lhes sepultura e a outros conduzindo aos hospitais, «onde a todos com frequencia quotidiana lhes dava copiosas esmolas e saudaveis conselhos» 262. Precedido por uma «Breve notícia do

terramoto de 1755», o tema escolhido tirou-o do profeta Miqueias, cap. 6, vers. 3: Popule meus, quid feci tibi, aut quid molestus fui tibi! Responde

mihi, ou seja: Povo meu, que te fiz ou em que te tenho sido molesto! Responde-me. O exórdio principia algo ex abrupto ao lembrar a jactância com que o povo lusitano provocava os demais com ser a nação por Deus

259 Ibid.,p. 71.

260 Ibid.,pp. 86-90; Cláudio da Conceição, op. cit., pp. 57-58.

261 Exhortaçaõ consolatoriade Jesus Christo crucificado na cruz, Ao povo Lufitano, por

se ver nimiamente conturbado por causa do Terremoto do primeiro de Novembro de 1755. Escrita por Fr. Antonio do Sacramento Religioso Observante de S. Francisco da Santa Provincia de Portugal,Pregador Jubilado, etc. e Ex-Guardião do Santo Imperial e Magnifico Convento de Belém, onde Deus Menino nasceo ao mundo, e recitadaNa Real presença da devotíssima Imagem do Senhor dos Desamparados, Collocada na Igreja da Barraca dos Reli- giosos de S. Francisco da Cidade, no sitio de Campolide. Dedicada ao Illustris. e Rever. Mon- senhor Sampayo. [Cruz] Lisboa: Na Officina de Francisco Borges de Sousa. Anno de MDCCLVII. [ – ] Com todas as licenças necessarias. (24 págs. Inum. + 31). A data primeira, subscrita pelo provincial da ordem, é 28 de Dezembro. Nas vinte e quatro págs. inum. vêm o rosto, dedicatória, licenças e “Argumento ou Breve Noticia do Terremoto de 1755”. Fr. António do Sacramento nasceu em Vila Verde de Unhão (concelho de Guimarães) em 1711, de família nobre. Entrou na ordem franciscana, professando no Porto em 1729. Ignora-se quando faleceu. Ver Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário Bibliográfico Português, 1, p. 264.

escolhida para império 263. Ideia esta que há-de ser agitada em outros

momentos do sermão. Se o povo se queixa dos castigos sofridos, é porque não percebeu terem-lhe sido aplicados por «Juiz recto», quais outros «danos de amor», com que a sabedoria divina o pretende «fazer justifi- cado» 264. Era tão verdadeiro os portugueses andarem distraídos, desen-

caminhados em vaidades, entregues «a todas as maldades, e vicios» que, por serem delitos, mais pediam, como merecido castigo, os sepultassem «nas, entranhas da terra», punidos «com eternos tormentos» 265. Para Fr. Antó-

nio do Sacramento, «repentinamente em grande terror», foram postas todas as cidades, vilas e povoações do reino. E, as pobrezas e penúrias que estavam a passar, eram apenas para se lembrarem que, tendo-lhes Deus «dado tantos diamantes, tantos metães, tanto ouro, e prata, tantas pedras preciosas, tantas sedas, tantos viveres, e tantos regalos, quasi tudo em pou- cos minutos» tirado, fora-lhes isso concedido como dádivas para conser- vação da sua vida e não para serem adoradas como deuses o que arrastaria à perdição da alma 266. Nos templos, se Deus era adorado, muitas vezes o

provocavam «com offensas que de sacrilegas passavão algumas a exe- crandas» 267. Em nota marginal, menciona acima de 18 mil as pessoas mor-

tas nas ruínas e nos incêndios que, no fundo, não «tiverão inferior fortuna» da dos que conservaram a vida, pois desta forma ficaram livres de «carre- garem de mais culpas a sua pobre alma» 268. Recorrendo aos vaticínios de

Isaías no capítulo 24 e do Apocalipse no 18, prognosticados sobre Babiló- nia, e agora repetidos para Lisboa, recorda que Deus, tanto para o bem como para o mal, sempre os quer anunciados «por mais Profetas que hum», sendo por isso que insinuou «nos tempos proximos passados a futura ruina» desta «memoravel Cidade com todas as circunstancias» naqueles lugares bíblicos profetizadas 269. Só que Lisboa a todos estes «reclamos»

fechara os ouvidos. Daí o castigo divino ser menor que a culpa, porque foi livre da «eterna perdição» e se lhe deu meios para poder «conseguir por huma eternidade a visão beatifica». O orador procura então despertar a

263 Ibid., p. 1. 264 Ibid.,p. 2. 265 Ibid., p. 2-3. 266 Ibid.,p. 4-7. 267 Ibid.,p. 8. 268 Ibid.,p. 9.

269 Ibid., p. 12-17. Em anotação marginal se escreve que «15 annos antes em vizão

foy mostrado á Irmãa Catharina da Conceição que esta enterrada em Jesus [convento fran- ciscano]. A hu˜a Religiosa do Louriçal e a outra de Alenquer já defuntas». Ibid., p. 15.

confiança na bondade divina e, para tal, recorre ao carisma mítico de Portugal, como seu império, escolhido entre as monarquias do mundo desde sua fundação e protegido com «mão poderosa á força de protentos, e milagres», tornando-o «sempre vencedor de seus capitães inimigos com glórias não vulgares, e estupendas», e «dominante em todas as quatro par- tes do mundo, tanto no espiritual, como no temporal», de cada um de seus soldados fê-lo outro Alexandre Magno, de cada um ministério evangélico outro S. Paulo para levar o nome de Deus a essas «barbaras gentes nas par- tes mais remotas do Orbe». E continua, alternando, na evocação do memo- rial histórico lusitano, o esplendor e o abatimento da nação, ligados ao zelo e honra do serviço divino e aos castigos merecidos pelos pecados pratica- dos 270. O solilóquio, de que se serve, mantém veemente vibração em sua

linguagem discursiva de exprobatória dureza: «Com a eminencia das glo- rias, que em tantos triunfos alcançastes, e com a opulencia das riquezas, que em tão dilatadas conquistas adquiristes, te esqueceste de tão santos empregos, e te voltastes ás vaidades, portando-te atrevido contra a minha tremenda Magestade com a cõmissão de execrandos peccados, e inauditos insultos» 271. Efeito desta provocatória atitude foi a jornada de África que

custou sessenta anos de enfeudamento a Castela com a consequente «vas- salagem aos mesmos, a quem», por suas «façanhas» causavam terror 272.

O que fora séculos atrás vaticinado em Ourique a D. Afonso Henriques é recordado por Cristo Crucificado que, em virtual postura retórica, assim o repete: «lembrando-me tambem da promessa, que tinha feito ao vosso pri- meiro Rey, que quando, povo meu, te visses mais atenuado, então poria em ti os olhos da minha piedade: In ipsa attenuata respiciam, et videbo (Ex vita I. Regis Alphonsis I), te restitui outra vez inexplicável gloria às liber- dades, e grandezas de meu Imperium: imperium mihi» 273. O choque vio-

lentíssimo provocado no país pelo terramoto levou o povo português a reconhecer, conforme o pregador sublinha, que Deus o pôs a seus pés «contrito, e humilhado, penitente, e devoto, acautelado nas culpas, zeloso» a seu serviço; e, se persistir em O temer, amar, louvar e servir, será de novo enriquecido «de todos os bens espirituais, e corporaes», e reinará «feliz- mente possuidor das antigas, e ainda de mayores glorias» 274. A peroração

270 Ibid., pp. 18-19. 271 Ibid., p. 20. 272 Ibid.

273 Ibid.,p. 21. A alusão à Restauração de 1640 e aos tempos que se lhe referiram não

oferece dificuldade.

acaba por ser um incitamento a cumprir a lei divina «com humildade pro- funda, e observancia perfeita», enfatizando-se, mais uma vez, no eco da promessa de Ourique, o convite misericordioso de Deus: «Ora vem a mim, povo meu muito amado, e entre muitas naçoens escolhido; Popule

meus, e em quem estabeleci o meu Imperio, que será duravel até ao fim do mundo» 275.

De outro franciscano, Fr. António do Espírito Santo Andrade, é o texto, publicado no mesmo ano de 1756 e pelo autor proferido no hospício do Rato, no dia de S. Venâncio, 18 de Maio, Sermão de Jesus Christo cru-

cificado com o titulo de Senhor dos Desamparados, pois assim se chamava a imagem venerada na igreja do Convento de S. Francisco de Lisboa que o terramoto e fogo deixaram ilesa, quando tudo o mais pereceu 276. O anó-

nimo promotor de sua impressão justifica-a pela forma como os ouvintes o receberam e pelo desejo de ver multiplicados tais efeitos em quantos o conseguissem ler, sendo que também podia servir «para exemplar dos Pregadores, principalmente os que tem pregado depois do terremoto» 277.

Para tema escolheu o pregador o versículo do capítulo 15 do evangelho de S. João: Manete in me, et ego in vobis (permanecei em mim que eu perma- necerei em vós). No desamparo em que Lisboa ficou, deserta após o terra- moto, sem moradores, uns mortos outros em fuga, abandonada por Deus «que lhe voltou as costas, por castigo de suas grandes culpas», só poderia encontrar refúgio na santa imagem do Senhor dos Desamparados que três vezes o fogo havia «respeitado», quando as muitas que adornavam aquele vasto templo foram sepultadas nas ruínas. Para sensibilizar religiosamente o auditório, Fr. António do Espírito Santo acentua o espectáculo da desolação

275 Ibid.,p. 28.

276 Sermaõde Jesus Christo Crucificado com o titulo de Senhor dos Desamparados,

imagem venerável, que ficou ellesa na nossa Igreja de S. Francisco da Cidade de Lisboa, sem a derribar o Terremoto, nem a offender o fogo, que destruiraõ a tudo o mais. Pregado pelo PadreFr. António do Espírito Sancto Andrade, Religioso de S. Francisco da Provincia de Portugal em dia se S. Venâncio no Hospício do Rato em 1756. [28 de Maio] Dado ao prelo por um grande devoto do Sanctissimo, e Seráfico Padre S. Francisco, e de toda a sua Illustre, Esclarecida, e Sagrada Religiaõ. [Gravura] Lisboa M.DCC.LVI. [–] Na Officina de Joseph da Costa Coimbra. Com todas as licenças necessárias. (16 págs. Inum. + 36).

277 Ibid.,p. 2 n.n.. Na aprovação “Do Paço”, subscrita pelo Doutor Joaquim Pereira

da Silva Leal, da Academia Real da História, para além do elogio dirigido ao Rei e ao Conselho de Estado, «fazendo-lhe a justificada mercê de lhes approvar os pareceres», em conjuntura «mais para Oráculos, que para Ministros», refere-se brevemente aos reinados que conheceram grandes pestes e aos terramotos havidos em Portugal, desde D. Afonso IV ao de 1755. Ibid., pp. 4-5 n.n..

da cidade que viu a alegria de que era teatro transmutar-se por toda a parte no «horror dos cadáveres» 278. Parece-lhe, desta forma, que em toda a perí-

copa evangélica está Cristo a falar-lhe neste tom: «Vio que este Reyno, sendo o seu mimoso, e o seu escolhido, para a cultura estava esteril no fructo das boas obras; porque só produzia as verduras da vaidade, de que compunha a bizarria de seus adornos superfluos, as folhas da soberba, de que formava os livros da sua genealogia affectada, as flores da formosura, que enfeitava, para a perdição das almas; as raízes da avareza, com que vivia pegado aos bens da terra, e só para os fructos da penitencia era este- ril, só do fructo das boas obras se tinha feito fecundo» 279. O desamparo a

que Cristo votou o povo português, apesar de ser o seu eleito como lhe anunciara em Ourique, deve entender-se de um duplo modo que o prega- dor assim enuncia: aos pecadores Deus desampara de duas maneiras – se os considera réprobos, entrega-os ao demónio «o senhor destes desampa- rados para os castigar com a pena eterna»; aos outros «deixa ao desamparo entre as tribulações, mas nunca sahe deles, constituindo-se o Senhor des- tes desamparados, para os fecundar nos fructos da penitencia» 280. Mas,

desamparando-os, «como Deos de Vinganças» quer ficar «como Senhor dos Desamparados». O passo do capítulo 51 de Jeremias, em que era vati- cinado o castigo da cidade de Babilónia, pôde ver-se repetido em Lisboa, por também ela haver deixado reinar em si «toda a liberdade dos seus grandes peccados» 281. Nenhum caso, de facto, fora feito nem de auxílios

nem de passadas ameaças de castigos do Autor da Natureza: os anos de seca, a que se respondeu apenas com «publicas procissões»; os horrores provocados por mortes repentinas; «o aviso de formidaveis incendios, que principiando no Hospital de Todos os Sanctos, parece que indicava, que no seu dia faria a consummação do seu furor» 282. Reconhecia-se que eram avi-

sos de Deus para reforma dos corações endurecidos e obstinados no pecado, mas continuavam a impenitência e a «escandalosa soltura» de costumes, «sem temer os castigos para a emenda, nem abraçar os auxilios para a peni- tencia» 283. Deus, clama apocalíptico o pregador, perante a resistência às

suas inspirações e insensibilidade a seus auxílios, pôs a todos em desam- paro. Os elementos que serviam de benefícios revoltaram-se furiosos: a

278 Ibid.,p. 1. 279 Ibid.,p. 2. 280 Ibid.,p. 4. 281 Ibid.,p. 5. 282 Ibid.,p. 8. 283 Ibid.

terra abriu-se em bocas para tragar; o mar dilatou os braços para subver- ter; o fogo multiplicou-se em línguas para consumir; «o vento crescendo nos sopros para espalhar as cinzas da sua reducção» 284. À objecção, fun-

damentada no salmo 36, versículo 25, de que Deus não desampara o justo, Fr. António Andrade enfatiza-a para melhor ponderar a extensão dos pre- varicadores sobre os quais recaíra mais que um justo castigo: «Como desamparais [Senhor] a Lisboa, aonde piamente creyo, que se acharião muitos, não só no austéro das clausuras, mas ainda nas liberdades do seculo! Huma cidade, em que se exercitava tão copiosa, e tão heróica a vir[tu]de da Caridade! Em que tanto se engrandecia a vossa soberania, no serio, no magnifico, e no sumptuoso dos Templos!» 285. Em resposta, no

diálogo retórico tecido, o exemplo de Sodoma, é invocado a propósito, porque dela se fartou Deus, «deixando-a em total desamparo, entregue ao fogo elementar, para que logo principiasse a sentir o tormento da eterna condemnação». A Lisboa, no entanto, o Senhor, se a desamparou, não se apartou dela só a entregou «ao fogo material, não para a perdê-la, mas para purificá-la; porque no incendio he que se purifica o ouro» 286. Surge outra

vez a ideia utópica do Quinto Império prometido em Ourique e ainda sem se cumprir. Por isso, o orador aproveita a deixa para adiantar a prova da sua argumentação teológica: «E como deste ouro queria Deos compôr a corôa do Reyno, que ha de estabelecer em Portugal; para renová-lo foi necessário desfazê-lo com hum Terremoto; para purificá-lo foi preciso metê-lo em hum incendio; e isto não foi desamparo, foi clemencia, não foi effeito da vingança, para nos fazer vitima da sua ira, foi affecto da bene- volencia, para fazer em nós hum sacrifício de expiação; porque a mão de Deos sempre remissa para a pena, he tão liberal para a misericordia, que até quando nos castiga, he para favorecer-nos! Pareceo, que nos desampa- rava pela rigorosa execução de tantas tribulações; mas sempre ficou conosco para benevolo exercicio da sua grande misericordia!» 287. A justi-

ficação da circunstância motivadora desta parénese volta a ser sublinhada em seus aspectos simbólicos conducentes às finalidades ascéticas preten- didas. Continua o pregador: «Talvez que para explicar este mysterio dis- pusesse a sua altissima providencia, que nem o Terremoto derribasse, nem o fogo offendesse esta Sancta Imagem, quando consentio nas mais o estrago das suas furias; porque como nesta o veneramos com o titulo do

284 Ibid.,pp. 8-9. 285 Ibid.,p. 9. 286 Ibid.,p. 11. 287 Ibid.,p. 12.

Senhor dos Desamparados, quiz mostrar-nos, que ainda fica comnosco para favorecer-nos no mesmo desamparo, em que nos punha; e que até o mesmo fogo sabia respeitar este mysterio, na reverencia com que ardeo, sem se atrever a toca-la» 288. Subtilezas metafóricas próprias da engenhosi-

dade barroca são incorporadas no fio demonstrativo do discurso, como acontece com o recurso aos episódios bíblicos da aparição de Deus a Moisés nos montes Horeb (Genes. cap. 3, n. 2), e Sinai (Exod. cap. 19, n. 18), sendo o mistério assim interpretado: «no Sinai arde o fogo terrivel, e abrazador, mostrando-o entre labaredas como Deos de justiça; e no Horeb arde o fogo suave, e sem queimar, mostrando-o entre chamas, como Deos de misericordia» 289. De novo, o franciscano o agita a conotação messiânica

de povo eleito, lembrança afectiva para suster a desesperança, e assim se dirige aos presentes: «Catholicos Irmãos meus, este Reyno he particular de Jesus Christo, como já o disse no Campo de Ourique ao seu primeiro Monarcha, por onde nos constituio os seus filhos mais amados: desampa- rou-nos este Pay entregando-nos nas mãos da sua justiça, e com constante animo vio em nós as suas rigorosas operações, a violencia do Terremoto, rasgando não só o insensivel das pedras, mas também o animado das crea- turas, padecendo cauterio de fogo igualmente os homens, e os edificios» 290.

O desamparo divino não foi para perdição, mas para remédio; e, se Deus desamparou como um «Pai amante», ficou a velar na Santa Imagem de Cristo dos Desamparados, «dilatando os olhos da sua misericordia» para, à vista da cura, afastar de Lisboa «a ultima desolação» 291. Lamenta o ora-

dor que haja já caído no esquecimento o trágico dia do primeiro de Novembro e a capital do reino pareça «huma farça theatral», recrudes- cendo o crime, a imoralidade e o luxo; «o fogo da ambição nos roubos, e nas injustiças de que todos se queixão, e quando devia crescer a caridade, augmentou-se a carestia! O fogo da lascivia porque a liberdade das barra- cas abrio mayores portas para a desenvoltura dos vicios! O fogo da vai- dade porque a falta dos mantos faz mais publicas as affectações da bizarria! em fim o fogo de todos os peccados he o incendio, em que ainda arde Lisboa, e que desafiará a ira de Deos como fogo para a sua ultima des- truição» 292. Surpreende-se o pregador ao ver, neste intervalo de tempo

após o terramoto, que o “santuário de penitentes” voltou a ser “teatro de 288 Ibid.,pp. 12-13.

289 Ibid.,p. 13. 290 Ibid.,p. 14. 291 Ibid.,p. 16. 292 Ibid.,p. 17.

escandalosos” no regresso às mesmas culpas. E o sermão prossegue na alternância entre a denúncia da falta de contrição e o amparo da misericór- dia divina sempre pronta a perdoar e esquecer as culpas passadas. A dor, reacção ao medo natural da morte, não era, no entanto, um acto de autên- tica penitência 293. Motivo por que não havia resposta de sincero arrepen-

dimento aos “avisos do Céu e os remorsos da consciência”, por insinceros, permitiam concluir não existir «nem Fé, nem Religião verdadeira»: a fé estava «morta pela falta das boas obras, que a vivificaõ», e a «Religião ago- nizante pela falta da Fé com que se anima» 294. O problema da causa do ter-

ramoto, sempre em público debate, surge apenas enunciado e sem intenção de considerá-lo, como se deduz pela forma pela qual é introduzido: «A que causa atribuís, Catholicos, este Terremoto, em que vos vistes? Não a per- gunto aos Filosofos, que tudo querem attribuir ás causas naturaes, nem aos politicos, que se servem das suas doutrinas para desvanescer o temor das creaturas, pergunto-a aos Catholicos, e aos tementes a Deos, que sabem respeitar a Veneravel Imagem da sua altissima Providencia: Sabeis qual foi a causa? forão os nossos grandes peccados, que provocárão a ira de Deos