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3. Discursos apologético-morais

3.1. Relação de Fr Iluminato de San Sepolcro

A Relação do capuchinho fora redigida debaixo dos efeitos imediatos da catástrofe, em que o autor se vira «aterrorizado como qualquer outro mísero espectador» 169. Pretextada como missiva a uma religiosa italiana

que, anos atrás, lhe descrevera um tremor de terra ocorrido em Nocera, na Umbria, havia sido também apresentada ao monarca D. José, possivelmente por intermédio de Pombal, embora não gozasse de uma apreciação valora- tiva do Núncio Apostólico que, no entanto, a enviou para Roma na corres- pondência diplomática 170. Sublinhado, à maneira de intermitentes refrões,

por citações bíblicas dos profetas Jeremias e Joel e do apóstolo S. João, o tónus apocalíptico é insistente. A devastação de Lisboa – cujo «traçado tem o aspecto de um caranguejo, que para além do seu grande corpo tem também em redor compridos subúrbios, que lhes servem de pernas» 171

deveu-se ao terramoto, maremoto e fogo. O quadro a que se vira reduzida, “mar de fogo e pequeno inferno”, excedia o de Jerusalém, descrito nas

Lamentaçõesde Jeremias: «Pois que se via entre a multidão aterrorizada de fugitivos, que corriam atordoados de um lado para o outro, e entre a densidade da poeira que levantada no ar pelos edifícios destruídos eclip- sava o sol, surgir daqueles escombros como de sepulcros gente pálida e mortificada, ensanguentada e desfeita e outra oprimida por pedregulhos e prisioneira de pedras, presa pela roupa ou pelos membros, caída deitada de bruços, de lado ou para baixo, deixando de fora o pé, a cabeça ou os braços que estendiam pedindo socorro. Debaixo das ruínas e dos vãos ouviam-se lamentáveis clamores de pobres oprimidos e sepultados que faziam chorar aquelas mesmas pedras que os sufocavam semi-vivos, pedindo piedade ao céu e socorro aos vivos» 172. Nos três primeiros sucessivos abalos, os que

estavam nas ruas fugiam para as igrejas e no caminho e nestas encontraram «aquela mesma morte que se esforçavam por evitar», sucumbindo com «os

169 Ibid..

170 Cf. Correspondência do Núncio, p. 96. Para Arnaldo Pinto Cardoso, «o Frade ita-

liano constrói um texto minucioso e ordenado não só para informação da religiosa italiana a quem se dirige, mas também à edificação do Rei e daqueles que o vierem a ler. […] Trata- -se de um discurso de cunho histórico e religioso, onde a realidade se torna espaço e sinal de uma conversão, à imagem da linguagem profética das Escrituras». As passagens bíbli- cas, de que se serve, «emprestam a linguagem ao evento e estimulam o sentimento de con- versão nas pessoas». Cf. “O Terramoto de Lisboa (1755). Documentos do Arquivo do Vaticano”, in Revista de História das Ideias, vol. 18 (1996), p. 444.

171 Cf. Fr. Illuminato, loc. cit., p. 325. 172 Ibid., p. 329.

Sagrados Ministros, uns no Púlpito, outros no Confessionário, outros no Altar e o povo a ouvir Missa, a confessar-se, a ouvir a palavra de Deus ou a receber a Sagrada Comunhão, pelo que se pode piamente acreditar que num dia tão solene e num acto tão sagrado o Inferno fez poucas aquisições e o Céu teve grande lucro de Almas, graças à misericórdia de Deus» 173.

Os que se entregaram à fuga corriam «de um lado para o outro apavorados e aturdidos, deixando os Sagrados Ministros, espalhados pela Igreja, peliças, roquetes, magnas capas, estolas, casulas, dalmáticas e capas de asperges, uns com píxides, outros com cálices e outros com as demais alfaias sagra- das, com que se encontravam nas suas sagradas funções» 174. Por sua vez,

os seculares, «igualmente aterrorizados, e confusos deixavam chapéus, peru- cas, canas-da-Índia, espadas, mantos, jóias, colares e todos os outros orna- mentos femininos e masculinos» 175. Fora dos templos, em algumas «praças

e ruas mais largas da cidade e nas praias do Tejo encontravam-se em magotes homens e mulheres, pequenos e grandes, de todos os estados e condições com retratos mortais no rosto, uns agarrados a um crucifixo, outros a uma imagem da Virgem Maria ou a uma estátua ou relíquia de um seu qualquer santo devoto, que era a única peça que ao fugirem das suas casas e Oratórios tentaram salvar da ruína universal levando-a consigo para protecção e defesa, pedindo misericórdia e perdão em voz alta» 176.

Esta horrenda desolação, que mais parecia «o último dia do universo, antes do derradeiro juízo universal», se era justa punição também devia entender-se como aviso do Céu a uma cidade «que sempre foi morigerada» e devota, mas cuja opulência «despertou nela estímulos de soberba e fausto, de emulação e de inveja, de engano e de fraude, de liberdade e de brandura, e sobretudo de profanação dos templos sagrados e dias feriados (= santificados)» e de «corrupção nos bons costumes» 177. Mesmo que algu-

mas causas naturais hajam sido apresentadas para explicar o «incêndio universal» que invadiu o perímetro de «uma légua e meia de circunferên- cia no coração» de Lisboa, adverte o capuchinho que, na «opinião de vários sábios e melhores cristãos», foram-no «como instrumentos da ira de Deus» que a quis castigar à semelhança de Jerusalém na descrição de Jeremias (I, 13). E, a terminar, reforça este juízo ao afirmar não acreditar que alguém pense ser «o dito flagelo obra meramente natural, como alguns

173 Ibid.,p. 329. 174 Ibid.,p. 327. 175 Ibid.,p. 328. 176 Ibid.,p. 329. 177 Ibid.,pp. 325-326.

demasiado naturalistas e pouco cristãos se esforçaram por fazer crer a tíbios como eles», esclarecendo melhor ainda a sua visão teológica do evento: «como muitos com melhor senso», há que reconhecer antes «o rigor do céu, que piedoso, ao castigar-nos quer corrigir e emendar»; e mesmo aceite o concurso das causas naturais para um tal desastre, elas apenas foram «instrumentos usados por Deus para a correcção deste Reino e de toda a cristandade, que se sente abalada por todos os lados, porque é de fé que o senhor previu com as outras coisas, desde o princípio da eter- nidade com o seu número, peso e medida, ainda as nossas culpas para as quais dispôs igualmente a grande máquina das causas naturais, para que chegadas elas a determinado sinal disparassem para nossa punição um determinado flagelo», que, para si, até resultou em tanta glória de Deus e «proveito para as almas» que nem imaginar se pode 178.