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3 AS NARRATIVAS DE HISTÓRIA DE VIDA DE

3.1 As primeiras experimentações e suas consequências

3.1.2 Antônio

(...) eu falava assim, como o adolescente, ao menos eu não sei, do sexo masculino, ele é muito homem da caverna.

Antônio

Antônio destaca alguns fatos específicos quanto à sua adolescência no local onde nasceu, revelando os impactos que estes tiveram em sua história.

(...) onde eu me criei a juventude, lá tinha essa questão de gangue, essa questão de briga, essa questão de pichação. E eu acabei me envolvendo com isso, eu achava bonito isso. Isso aí era algo que trazia, era valor. (...) eu falava assim, como o adolescente, ao menos eu não sei, do sexo masculino, ele é muito homem da caverna. Ele quer ser o mais bonito, quer ser o mais forte, quer bater nos outros, quer que os outros sirvam ele, e tem essa questão de tá junto, pra junto ter força pra vencer os outros. E eu vivi isso muito bem. (...) Então minha história de vida começou dessa for ma. Então, com 16 anos, eu tive a petulância de querer assumir uma filha, sem ter condições, porque com 16 anos não tem como uma pessoa assumir uma filha sem ter terminado o segundo grau, sem ter profissão, sem ter nada. E eu fui começar a trabalhar, eu fui trabalhar de ajudante de pedreiro, ajudante de bombeiro, ajudante de eletricista, fui trabalhar de garçom, fui trabalhar de faxineiro, fui trabalhar de chapeiro, fui trabalhar de caixa, trabalhos onde a questão de escolaridade não tinha. (...) eu era assim, muito rebelde. Tinha essas questões todas.

Desde cedo, múltiplos personagens já começam a entrar em conflito na vida de Antônio. Primeiramente, é o adolescente homem da caverna, que deve buscar seu reconhecimento através de atos demandados pela cultura das gangues. Revela, nessa fala, as relações de poder imbrincadas em nossas formas de convívio com o outro, e como se implicava nisso. Assim, ter poder era ser reconhecido enquanto membro daquele grupo, queria viver isto, e deveria se submeter a certas regras, sem maiores resistências.

Além disso, a personagem pai aparece também bem cedo e entra em conflito em vários momentos de sua vida. Este personagem evoca outro, o trabalhador, que deve se lançar no mercado de trabalho para, somente assim, poder promover o sustento de sua família. Lamenta estes acontecimentos, pois os mesmos acabaram influenciando de forma não muito positiva sua vida de formação acadêmica, principalmente, o que acarretava, ainda, vários outros impactos, como uma relação complicada com a esposa e a família nuclear.

Interessante se faz o fato de que se considera rebelde, personagem que aparece também em outros momentos, como veremos. Porém, sua rebeldia parece nunca ser positivamente encarada. Foi a sua rebeldia que o fez ser pai cedo, que o fez ter que trabalhar logo em sua adolescência, que o fez se envolver com gangues, e que o fez, também, iniciar o uso de drogas:

E, eu nesse caminho, tava usando droga. Comecei a fumar maconha com treze anos. O pessoal não queria. Então, fumar maconha era normal? Mais ou menos.

Mais ou menos normal. Como discutimos anteriormente, tendemos a distinguir as drogas, entre lícitas e ilícitas, e como Antônio coloca, também como normal ou não. Para ele, fumar maconha não era tão normal assim, as pessoas não queriam que ele fizesse tal uso. Mais uma vez, tal discussão se coloca como bem atual. Aqui não pretendemos dizer se é normal ou não fazer o uso de drogas, se deve ser feito ou não. O que pretendemos levantar como discussão é o uso constante das mesmas e seu histórico na vida dos sujeitos, independente da avaliação moral, jurídica ou cultural que se faz delas. As drogas fazem parte da vida humana. Isso nos parece um fato que não se pode negar. Observar, portanto, o processo social, histórico, econômico que envolve esses usos é de extrema importância para discussão e análise crítica de tal tema. Sobre isto, alguns pontos são importantes de serem levados em conta.

Como já começamos a discutir anteriormente, foi por volta do início do século XIX que as políticas adotadas no que se referia ao uso de drogas ilícitas, pela quase totalidade dos países, passaram a ter como principais pilares os modelos moral e criminal, o que concedia prioridade às ações referentes ao campo da Justiça e Segurança (SANTOS; SOARES; CAMPOS, 2012; MACHADO; BOARINI, 2013). A ênfase estava nas estratégias repressivas, proibicionistas, punitivas e com foco voltado unicamente para

a abstinência total de qualquer consumo de drogas, relegando ao segundo plano a prevenção ao uso ou mesmo uma análise mais ampla do papel das drogas em nossas vidas.

De forma semelhante, Simões (2008, p. 14) aponta que as drogas foram, na atualidade, associadas unilateralmente ao perigo para a saúde pessoal e coletiva, como aspecto de crime e violência urbana.

Esse viés da ameaça à saúde, à juventude, à família e à ordem pública, que ainda organiza em grande parte a discussão do tema, promove uma distorção decisiva, já que tende a atribuir à existência de 'drogas' o sentido universal de encarnação do mal e a tratá-lo como um problema conjuntural que poderia ser definitivamente eliminado por meio de proibição e da repressão. Há, pois, pelo menos dois sérios inconvenientes com a acepção convencionalmente predominante que identifica o uso de 'drogas' com o abuso de psicoativos ilícitos. Em primeiro lugar, ela confina a discussão ao âmbito da patologia da drogadição: drogas seriam substâncias usadas por 'viciados' ou 'dependentes' e, por conta disso, acarretam graves problemas à saúde pessoal e à ordem pública. Em consequência, a própria existência de 'drogas' é tida unilateralmente como um perigo em si, uma ameaça à sociedade. Compõe-se assim o cenário familiar da “guerra às drogas” com sua sequela de estigmatização, violência, cinismo e estreiteza intelectual, numa espécie de espiral viciosa que naturaliza a ilegalidade e potencializa a repressão.

Essa perspectiva que coloca o uso de drogas como uma doença, uma adicção, é extremamente atual e marca de forma decisiva a postura de Antônio quanto ao uso de drogas ao longo de sua vida, como veremos mais propriamente ao longo desse estudo.

Além disto, destacamos ainda a “guerra às drogas” como algo extremamente presente em nosso cotidiano. Passos e Souza (2011) indicam uma visão ampla quanto a este tema, especificamente no contexto brasileiro. Para estes autores, vivemos, no Brasil, na década de 80 e no começo da década de 90, o fracasso do “milagre econômico”, o alto índice de inflação, a explosão demográfica nos grandes centros urbanos (o que aumentou os cinturões de pobreza nas periferias e favelas), o desemprego conjuntural, o sucateamento da educação pública, o aumento da violência urbana e a falência do modelo econômico nacional, o que acabou por acompanhar o aumento do mercado ilícito. É nesse contexto que o tráfico de drogas toma repercussões nacionais e internacionais.

As disputas por pontos de venda de drogas e o enfrentamento direto com a polícia agregaram ao mercado de drogas o mercado de armas, dando início a uma guerra civil. No âmbito internacional, as drogas e o terrorismo passaram a substituir gradativamente o comunismo como figura ideológica de ameaça à democracia, o que gerou uma política de “guerra às drogas”, liderada pelos Estados Unidos, primeiramente, mas depois dissipadas por vários outros países (PASSOS; SOUZA, 2011). Há, portanto, uma aposta permanente

na guerra como forma de manter a ordem social, destituída de seu caráter de exceção (discussão desenvolvida por Agamben (2004), como discorrermos um pouco mais adiante), passando a ter uma perspectiva de algo contínuo nas sociedades. O usuário de drogas será tido, portanto, como a encarnação do inimigo a ser combatido, que representa o mal nas relações e deve ser denunciado e combatido sempre que possível.

Dentro deste contexto, há a formação de uma política de identidade2 para aqueles que usarem drogas, política esta que acaba por determinar o local do sujeito como uma encarnação de um mal, alguém a quem se deve temer e se evitar a qualquer custo, um sujeito perigoso, o marginal, sobre quem não é possível prever comportamentos. Passa, consequentemente, a ser indesejado, muitas vezes não tolerado por grande parte da sociedade. É melhor, então, que não se faça uso de drogas, como bem foi colocado para Antônio, pois não é assim tão normal. Essa perspectiva, muitas vezes, é repassada de forma acrítica, ahistórica, naturalizada, como sendo as drogas encarnadas de um mal substancial.

É dentro deste contexto e desta período histórico de acirramento da “guerra às drogas” que Francisco e Antônio vão fazendo o uso de substâncias específicas. Esses usos se desenvolvem até chegar ao ponto de Francisco e Antônio precisarem ser internados em clínicas de assistência a usuários de drogas e comunidades terapêuticas.