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3 AS NARRATIVAS DE HISTÓRIA DE VIDA DE

3.1 As primeiras experimentações e suas consequências

3.1.1 Francisco

Ao final desse livro, eu tava decidido que eu ia passar por essa experiência, de usar substâncias em algum momento, sobretudo LSD, porque os capítulos sobre LSD são maravilhosos.

Francisco

Francisco é uma pessoa que, desde bem jovem, sempre teve acesso e gosto pelas leituras. Relata que a atividade de ler sempre foi incentivada em sua casa, algo que o pai fazia com gosto para os filhos, por não ter ele mesmo tido isto em sua infância e adolescência. Por volta de seus 10 anos, seu pai comprou uma grande leva de livros para os filhos e, dentre estes, teve acesso à sua primeira literatura sobre drogas: o livro intitulado “A ilusão das drogas”. Ao terminar a leitura do livro, diz que:

Então eu, tinha muito claro que eu ia passar por essa experiência, que ia experimentar as substâncias, enfim. E por alguma razão eu também acreditava que o fato de eu ter tido acesso a uma literatura preventiva, o fato de eu saber que lidar com essas coisas era algo perigoso, eu achava que eu, o simples fato de eu saber disso seria o suficiente pra eu evitar, talvez, qualquer tipo de

problema com uso abusivo, eu achava que eu poderia simplesmente passar por uma etapa de experimentação e sair disso tranquilo.

Sua análise sobre o uso de drogas começa bem cedo. Não somente se preocupava em conhecê-las, mas ler sobre elas, experimentá-las, começando já a esboçar suas primeiras expressões críticas. Mesmo tendo lido um livro preventivista quanto ao uso de drogas, toma a própria decisão de fazer tais usos em algum momento de sua vida. Francisco começa já a construir e nos mostrar uma personagem marcante em vários momentos de sua vida, o questionador, personagem que atravessa sua forma de pensar, de agir, de fazer escolhas, de tomar decisões e de se relacionar. Prioriza uma análise crítica das situações pelas quais passa, estando sempre em processo de reinvenção, de metamorfose.

Francisco, contudo, ressalta neste ponto estar em uma fase ainda bem jovem em sua vida. Muito ainda tinha a viver e a se transformar. Mesmo assim, neste momento, acreditava que o fato de ter lido o livro e esclarecido algumas questões quanto às drogas já era garantia de que nada sairia do seu controle. Sua postura atual, porém, através deste seu relato, já nos mostra um certo questionamento disto, uma vez que o uso que fez das drogas nem sempre se deu de forma tranquila, como veremos a seguir.

Esses usos começam, portanto, em sua adolescência, por volta de seus quatorze ou quinze anos. Neste momento, considerava serem as experiências com uso de drogas tranquilas e sempre compartilhadas com amigos:

Então aquilo que eu considerei, na época, como sendo a minha primeira experiência com drogas foi ali nos meus, passagem dos quatorze pros quinze, mais ou menos, a minha primeira experiência com maconha, através de amigos que conseguiram, enfim, a gente acabou experimentando juntos. Eu já tinha, antes disso, bebido, mas eu não entendia aquela experiência com álcool como tendo uma experiência com drogas, porque pra mim, eu significava as drogas como sendo substâncias ilícitas, né?

Francisco toca, aqui, em um ponto interessante. É muito comum pensarmos, ao falarmos de drogas, que nos remetemos somente às chamadas drogas ilícitas, amenizando o impacto que determinados tipos de drogas têm em nosso cotidiano e “demonizando” outros tipos. Simões (2008, p. 13), esclarece-nos bem essa questão ao assinalar que:

Deve-se ressaltar que mesmo entre os próprios especialistas das ciências biomédicas não há acordo no que diz respeito ao sentido preciso do termo droga. Na linguagem mais técnica, 'droga' serve para designar amplamente qualquer substância que, por contraste ao 'alimento', não é assimilada de

imediato como meio de renovação e conservação pelo organismo, mas é capaz de desencadear no corpo uma reação tanto somática quanto psíquica, de intensidade variável, mesmo quando absorvida em quantidades reduzidas. Nesse plano, estamos falando de substâncias tão diferentes como a cerveja, a cocaína, a jurema e o diazepam.

As drogas fazem parte de nosso cotidiano, da nossa atividade mais rotineira. Diferente do que comumente se pensa, a determinação do que é uma droga lícita e ilícita não parte apenas de uma decisão quanto aos compostos de uma substância ou unicamente de sua atuação no organismos. Esse contrato, primeiramente, é feito pela cultura, pelos indivíduos que a compõe e pelos sentidos atribuídos às drogas que fazem parte de nosso dia-a-dia.

(...) a categorização social de uma substância como “droga” e sua classificação jurídica como “entorpecente” dependem muito mais de uma convenção social e cultural. Isso quer dizer que o conceito “droga” e a diversidade de substâncias que ele compreende em seu perímetro devem ser considerados o produto, por natureza provisório, de lutas simbólicas e científicas, tanto quanto políticas e sociais: a fronteira que separa a classe das drogas ilícitas e a classe dos produtos psicoativos lícitos é bastante permeável, como nos ensina a história (BERGERON, 2012, p.8-9).

Francisco nos mostra o quanto isto está arraigado em nossa cultura através de seu próprio exemplo, quando adolescente, fazendo essas mesmas distinções: beber cerveja não era fazer uso de drogas, fumar maconha, sim. Obviamente, o uso da droga nem sempre foi moralmente repreendido. Em várias sociedades antigas, as drogas que hoje conhecemos como nocivas eram usadas para diversos fins, sob regulações culturais, religiosas, farmacológicas ou profissionais, marcando eventos sociais, reuniões grupais e diferenciações entre classes de indivíduos. Foi somente a partir da segunda metade do século XIX que o uso regulado, e depois compulsivo, independentemente de qualquer contexto terapêutico, começa a se desenvolver (BERGERON, 2012), caindo, assim, em questões de avaliação moral, judicial e médica.

Nesse momento de sua vida Francisco segue seu uso de drogas, sempre com os amigos, o que considerava uma experiência prazerosa, rica e tranquila. O usuário de drogas de forma tranquila estava sempre na roda com os amigos, e não fazia simplesmente uso de drogas, mas tocava violão, conversava sobre filosofia, política, jazz e artes de forma geral, lugar onde podia expressar livremente o artista, o músico, o militante político, todos personagens importantes e marcantes na sua forma de representar-se. Assim, para ele, usar drogas não se tratava do simples uso de substâncias

psicoativas com um objetivo específico de alterar seu nível de consciência, mas um uso relacionado a um momento de compartilhar, de trocar prazeres, saberes e realizar-se enquanto ser social naquele determinado grupo.

Como podemos perceber, já traz na adolescência elementos importantes no tocante ao uso de drogas que se desenvolverão ao longo de sua vida, tanto quanto à postura que tem diante dos usos como sua forma de desnaturalizar certos aspectos, evidenciando já seus processos de metamorfoses. Porém, considera que terá seu primeiro problema com as drogas alguns anos mais tarde, como explanaremos no tópico seguinte.