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3.2 A Repercussão Geral

3.2.1 Antecedentes

No que diz respeito à repercussão geral, encontramos dois antecedentes98 dignos de nota. O primeiro deles repousa na experiência norte-americana. É o writ of certiorari. As contribuições e os esforços de William Howard Taft foram essenciais para a limitação da jurisdição recursal obrigatória da Suprema Corte norte-americana. Em 1921 Taft assumiu a presidência da Suprema Corte e atuou em defesa da concessão de amplos e discricionários poderes para que a Suprema Corte selecionasse os recursos que seriam apreciados por seus membros. (DANTAS, B., 2008)

O certiorari teve a sua dimensão definida com a Lei Judiciária de 1925 e foi implementado com o objetivo de combater o excesso de demandas ajuizadas perante a Suprema Corte.

Na sistemática do writ of certiorari basta que quatro dos nove membros que compõem a Corte vislumbrem a relevância da petição para que o recurso seja apreciado pelo Tribunal. Neste sentido há um costume segundo o qual se três juízes verificarem a presença da relevância da questão, o quarto, mesmo discordando da posição dos três, adere ao entendimento dos demais ministros, viabilizando o acesso do recurso à Suprema Corte. (Join- 3 Vote)

A rule 10 das regras da Suprema Corte norte-americana permite a concessão do certiorari mediante o voto de quatro dos nove juízes (rule of four): I) quando há divergência jurisprudencial entre as cortes de apelação federais ou entre as cortes estaduais supremas, ou entre estas e aquelas; II) quando as cortes de apelações federais ou cortes estaduais supremas tenham decidido uma questão importante de direito federal, em sentido que conflite com decisões da própria Suprema Corte, ou quando questão desta natureza, por sua importância deveria ser decidida, mas ainda não foi; III) também o interesse nacional, a manutenção da ordem, o desafio constitucional, além da carga de trabalho (workload) serve de critério para a concessão do certiorari.

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Ivo Dantas (2007, p. 457 e ss.) traz ainda outro antecedente da repercussão geral. Trata-se da Medida Provisória 2226, que inseriu o requisito da transcendência aos recursos de revista.

Importante destacar que se trata de poder discricionário da suprema corte e que não depende de fundamentação. Com o deferimento do certiorari, as partes são intimadas para apresentar as razões escritas (briefs), que são petições concisas, diretas e com limitado número de laudas. Em seguida, faz- se o debate oral, tendo cada parte à sua disposição trinta minutos para apresentar esclarecimentos e argumentar. A preocupação da Suprema Corte não é corrigir erros judiciários, mas discutir e julgar temas que apresentem amplo interesse ao sistema legal, apresentando como tendência contemporânea assuntos vinculados às ações afirmativas (affirmative actions) e sobre direitos dos homossexuais (gay rights). (CAMBI, 2005, p. 15-160)

Em 1988 foi aprovada a Supreme Court Case Selection Act. De acordo com esta nova disciplina legal um processo só pode chegar às portas da Corte Maior, em sede recursal, por meio do certiorari ou da certification of questions, mas como uso deste instrumento fora esvaziado pela própria Suprema Corte, na prática, apenas o writ of certiorari permite que as questões sejam apreciadas pelo Tribunal. (DANTAS, B., 2008)

No Brasil o writ of certiorari serviu de inspiração para análogos, como a argüição de relevância e a repercussão geral. 99

Vale ressaltar que não apenas os Estados Unidos e o Brasil desenvolveram técnicas voltadas à restrição de acesso às Cortes. Diversos ordenamentos jurídicos prevêem institutos similares ao writ of certiorari com o intuito de possibilitar que os tribunais selecionem as causas que irão apreciar. (DINAMARCO, 1990)

O segundo precedente da repercussão geral encontra-se na nossa própria experiência constitucional. Trata-se da argüição de relevância. 100

Em 1965 os ministros do Supremo elaboraram um estudo que relatava ao Ministério da Justiça quais eram os maiores problemas do Tribunal. Nessa oportunidade os magistrados sugeriram a adoção, entre nós, de um instituto similar ao writ of certiorari norte-americano.

A Carta de 1967 concedeu ao Supremo Tribunal Federal competência legislativa para estabelecer em seu regimento interno “o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou de recurso” (art. 115, parágrafo único, c). Essa previsão foi reproduzida pela EC nº1/69.

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No entanto, as diferenças entre esta e o certiorari são claramente visíveis. O regime jurídico inaugurado pela Carta de 1988 tornou obrigatório o dever de fundamentação dos atos judiciais. Além disto, o quorum para verificação da repercussão geral é diverso daquele exigido para a aceitação do certiorari norte-americano. Há diferenças entre os institutos, mas a idéia é a mesma: introduzir filtros que impeçam o acesso de determinadas demandas à Corte Maior.

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“Embora se diga, não sem boa dose de razão, que a argüição de relevância foi o antecedente histórico nacional da repercussão geral, é necessário consignar que essa semelhança se deve muito mais às linhas gerais do instituto do que a aspectos propriamente dogmáticos.” (DANTAS, B., 2008, p. 249)

Preocupado com a crescente sobrecarga de trabalho, e exercitando a competência legislativa primária que lhe fora constitucionalmente conferida, o STF iniciou, já em 1970, o movimento que culminaria na adoção da argüição de relevância da questão federal no ano de 1975. Com efeito, naquele ano editou-se emenda regimental que estabelecia filtros relacionados com o valor e a natureza da causa, excetuando das restrições impostas os casos de ofensa à Constituição e de discrepância manifesta da jurisprudência dominante do STF. (DANTAS, B., 2008, p. 250-251)

Em 1975 houve a primeira positivação da argüição de relevância de questão federal no Direito brasileiro. A Emenda Regimental nº 3, de 12.06.1975, modificou o art. 308 do regimento interno do STF, incluindo disposição que teve por fim justificar o conhecimento de determinadas questões federais que, em princípio, não estariam albergadas nas hipóteses de cabimento do recurso extraordinário.101

A disciplina dada pela Corte abriu as portas para que o Tribunal conhecesse recursos, cuja apreciação seria expressamente vedada pelo art. 308, desde que a questão federal fosse relevante.102 De acordo com o entendimento de alguns autores, a função da argüição de relevância, nessa primeira sistematização ofertada pelo regimento interno, era inclusiva. Segundo a doutrina, tratava-se de expediente que – pondo em destaque a importância jurídica, social e econômica da matéria versada no apelo extremo – buscava obter o acesso desse recurso no Supremo Tribunal Federal, nas hipóteses em princípio excluídas de seu âmbito. (CÔRTES, 2005)

Veja-se que a argüição de relevância não se destinava a subtrair o número de recursos extraordinários apreciados pelo Supremo Tribunal. Pelo contrário, a demonstração da relevância fazia com que um recurso que normalmente não seria cabível, passasse a sê-lo. Em outras palavras, a comprovação da relevância possibilitava que um recurso, em princípio incabível, fosse apreciado pelo STF. (REIS, 2008).

Em 1977, por ocasião da EC nº 7, a questão de relevância ganhou status constitucional. O §1º do art. 119 da Carta Constitucional passou a dispor: “As causas a que se refere o item III, alíneas “a” e “d” deste artigo serão indicadas pelo STF, no regimento interno, que atenderá a sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão

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Registre-se que havia uma espécie de “permissão geral” de cabimento de recursos extraordinários no Regimento Interno do Supremo. O referido diploma normativo, lançando mão de uma técnica legislativa pouco usual nos dias de hoje, arrolava apenas as hipóteses de não cabimento do recurso extraordinário.

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“Pode-se dizer que no modelo não recepcionado pela CF de 1988, argüia-se o reconhecimento da relevância da matéria levada ao STF, para a admissibilidade do recurso extraordinário, ainda que os demais requisitos não estivessem atendidos. A argüição de relevância tinha o condão de justificar o conhecimento do apelo extremo, mesmo diante de hipóteses taxativas de não cabimento, numa perspectiva de inclusão.” (ARAÚJO; BARROS, 2006, p. 15)

federal.” Por sua, vez o § 3º do mesmo artigo prescrevia: “o regimento interno estabelecerá: c) o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal e da argüição de relevância da questão federal”.

Em 1985, com o advento da Emenda Regimental nº 2, houve modificação na forma de estabelecimento das hipóteses de cabimento do recurso extraordinário. Ao invés de arrolar as hipóteses em que o apelo extremo não era cabível, o art. 325 passou a elencar a elencar os casos de cabimento do recurso extraordinário, contudo era possível levar ao Tribunal matéria não contemplada no rol do art. 325, desde que ficasse comprovada a relevância da questão federal.

Com isso, alterou-se também o escopo da argüição de relevância das questões federais. No novo modelo, em vez de viabilizar a inclusão daquelas espécies negativamente citadas, a relevância passou a funcionar como “válvula de escape”, criando uma hipótese genérica de cabimento do RE, ao lado das hipóteses específicas arroladas nos incisos I a X do art. 325 do RISTF. (DANTAS, B., 2008, p. 254)

A questão de relevância, segundo este diploma normativo, era aquela que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigiria a apreciação do recurso pelo Tribunal.

Para Moreira Alves (1982, p.48)

[...] o julgamento em tese da relevância, ou não, da questão federal é antes ato político do que, propriamente, ato de prestação jurisdicional, e isso porque não se decide o caso concreto, mas apenas se verifica a existência, ou não, de um interesse que não é o do recorrente, mas que é superior a ele, pois é o interesse federal de se possibilitar ao Tribunal Supremo do país a manifestação sobre a questão jurídica que é objeto daquele caso concreto, mas que transcende dele, pela importância jurídica, social, econômica ou política da questão mesma em julgamento, abstraídos os interesses concretos das partes litigantes.

A proximidade entre o conteúdo da questão de relevância e a repercussão geral faz com que vejamos similitudes entre os dois institutos. Estas semelhanças, no entanto, não podem conduzir ao equivocado juízo de identidade entre a repercussão geral e a argüição de relevância. Barbosa Moreira, em escrito recente, traça distinções entre os dois institutos:

[...] tempo houve, sob outro regime constitucional, em que a admissibilidade do recurso extraordinário se subordinava, em certas hipóteses, à demonstração da então denominada questão de relevância federal. A idéia é a mesma, se bem que consagrada agora sob forma de algo diverso. O que se pretende é evitar que o Supremo Tribunal Federal tenha de ocupar-se de questões de interesse visto como restrito à esfera jurídica das partes do processo, em ordem a poder reservar sua atenção e seu tempo para matérias de mais vasta dimensão, para grandes problemas cuja solução deva influir

com maior intensidade na vida econômica, social, política do país. (MOREIRA, 2005, p. 56)

Deste modo, entendemos que não se pode confundir a repercussão geral com a argüição de relevância. Uma das distinções fundamentais entre os dois institutos é que a relevância da questão federal permitia que o Tribunal apreciasse questões que, em princípio, não podiam ser conhecidos pela Corte. A questão de relevância permitia que fossem incluídas na pauta de julgamento do STF questões que em condições normais não seriam apreciadas pela Corte. Já a repercussão geral atua de modo totalmente diverso, pois limita atuação do Tribunal às questões de repercussão geral. Além disso, na argüição de relevância, a decisão do STF não precisava de motivação e era tomada sob sigilo. Comentando este aspecto da argüição de relevância, Doreste Baptista afirma:

[...] a apreciação em conselho não comporta pedido de vista, dispensando a motivação e sendo irrecorrível. Dispensará, também, acórdão, como o dispensam as decisões a que se referem os arts. 12 e 297 §1º. A dispensa de motivação decorre do alto grau de subjetividade que contém a noção de questão federal relevante e às mutações que, no tempo, pode sofrer. (1976, p. 114)

Na repercussão geral tem-se a necessidade de motivação da decisão, decorrente do imperativo prescrito no art. 93, IX, da Constituição de 1988; a necessidade de obtenção de um quorum especial para a deliberação; e, por fim, a necessidade de a decisão ser pública, não mais se admitindo sessões sigilosas.103

A configuração da repercussão geral traz um dado digno de atenção. Ainda que o recorrente tenha o dever de demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, vale sublinhar que o STF somente não conhecerá do recurso se dois terços dos seus ministros entenderem que não há repercussão geral na matéria veiculada no bojo do apelo extremo. Há, assim, uma presunção de relevância em favor do recorrente.

A negativa de acesso ao Supremo Tribunal Federal só pode ocorrer quando dois terços dos ministros vislumbrarem ausência de repercussão geral. Esse quorum, bastante significativo, indica que existe, em princípio, uma presunção de repercussão geral em favor do recurso extraordinário interposto. Em outras palavras, basta que uma minoria dos membros do Tribunal vislumbre a repercussão geral para que se supere esse requisito de

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“O incidente concernente à relevância era distribuído aos onze ministros, nele não havendo relator. Por conseguinte, era julgado pelo Plenário do STF, em sessão de conselho, por votação secreta, sendo irrecorrível a decisão tomada, da qual não havia fundamentação e muito menos a possibilidade de embargos de declaração. Para que fosse acolhida a argüição era necessário que a minoria de quatro ministros lhe fosse favorável.” (LAMY, 2005, p. 168-169).

admissibilidade. Com isso, evita-se que uma decisão deste porte seja tomada por maioria apertada.

No caso da repercussão geral, o fato é que estamos diante de um conceito jurídico indeterminado que encerra restrição a recurso de estatura constitucional. Dada sua indeterminação conceitual – que necessariamente envolve um elevado teor de subjetividade na aplicação in concreto -, o elevado quorum, serve como “elemento compensador” da natural redução da previsibilidade, especialmente se cotejado com um conceito minucioso (DANTAS, B., 2008, p. 221)

3.2.2 A repercussão geral como elemento de aproximação entre o controle