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3.3 A nova interpretação do art 52, X, da Constituição Federal de 1988

3.3.3 Argumentos contrários à tese da mutação constitucional

Um dos primeiros e mais importantes estudos relativos à questão da mutação constitucional do art. 52, X foi elaborado por Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont´Alverne Barreto Lima. Os juristas vêem no desfecho da Reclamação nº 4335/AC a possibilidade de afirmação de novas concepções acerca do controle de constitucionalidade, do poder constituinte, do princípio da separação dos Poderes e do equilíbrio federativo. No artigo intitulado “A nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: mutação constitucional e limites da legitimidade da Jurisdição Constitucional” os constitucionalistas atacam o recurso ao instituto da mutação constitucional para fazer valer a tese defendida pelos ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, assim como criticam a possibilidade de equiparar os efeitos das declarações de inconstitucionalidade proferidas nas duas modalidades de controle.

A tese proposta por Gilmar Mendes e endossada por Eros Grau encontra vários óbices para ser aceita pela comunidade jurídica. Ao transformar o recurso extraordinário em

instrumento de controle abstrato de constitucionalidade, o apelo extremo deixa de ter como característica fundamental a salvaguarda de direitos fundamentais lesados ou ameaçados de forma concreta, para se transformar em mecanismo de uniformização de jurisprudência.

Sendo o controle difuso de constitucionalidade um controle que aproxima a jurisdição constitucional da sociedade, essa forma de controle apresenta um potencial significativo para o incremento da cidadania e para o desenvolvimento de uma interpretação constitucional aberta. Ao maximizar a feição objetiva do recurso extraordinário, enfraquecendo-o enquanto instrumento de tutela de posições subjetivas, o Supremo Tribunal Federal e o legislador acabam por reduzir a participação do cidadão no controle de constitucionalidade.

Para os autores que seguem essa linha de raciocínio, a mitigação, o enfraquecimento, ou mesmo o esvaziamento do controle difuso de constitucionalidade em detrimento do fortalecimento do controle abstrato é algo extremamente danoso para o projeto democrático.

Gilmar Mendes sustenta sua argumentação em defesa da ocorrência da mutação constitucional do art. 52, X, CF com base em alterações jurisprudenciais e legais tendentes a reforçar as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso de constitucionalidade. Neste sentido, o ministro faz referência à flexibilização da cláusula de reserva de plenário.

Sabe-se que a flexibilização da referida cláusula surgiu na jurisprudência do STF. Apenas posteriormente adveio autorização legislativa neste sentido. A Lei nº 9.756/98 introduziu o parágrafo único do art. 481 do CPC. Mas nem todos louvaram a introdução desse dispositivo no ordenamento jurídico. Afirmando que a disposição subverte o regramento constitucional dado à declaração de inconstitucionalidade nos tribunais, afirmam Cruz e Souza:

Não são poucos os que se opõem a tal mudança, sob a alegação de que celeridade e economia processuais não podem violar os princípios constitucionais do devido processo legal, em claro detrimento da idéia de formação democrática das decisões judiciais. Para esses, essa inovação trazida pela Lei nº 9.756/98 representa ameaça aos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e da livre apreciação do Poder Judiciário das matérias que se lhe apresentar. (2009, p. 99-100)

Para os autores a Lei nº 9.756/98 transformou um juízo de aplicação em juízo de fundamentação, típico do exercício de um poder constituinte anômalo. (CRUZ; SOUZA, 2009)150 Esta parcela da doutrina entende, portanto, que as inovações encampadas pela

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Segundo Lenio Streck (2004), ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei no âmbito do controle difuso o Supremo deve remeter a decisão ao Senado, para dar cumprimento ao art. 52, X. Neste caso se o Senado editar a resolução, a dispensa de suscitação do incidente de inconstitucionalidade perde a sua razão de ser. Em situação diversa, se a Corte Maior não enviar ao Senado sua decisão, esperando consolidar melhor a sua posição antes de

jurisprudência e pelo legislador no campo do controle de constitucionalidade das leis tende a desconsiderar que o constituinte positivou o controle misto de constitucionalidade. Dar às decisões proferidas em sede de controle difuso o mesmo efeito reconhecido às decisões proferidas em sede de controle concentrado, significa ignorar que a Constituição brasileira consagrou o sistema de controle misto.

É um fato inquestionável que a medida positivada no parágrafo único do art. 481 do Código de Processo Civil tende a fortalecer as decisões do Supremo Tribunal Federal. Contudo, a disposição em apreço não autoriza uma interpretação da Constituição a partir das leis infraconstitucionais. J. J. Gomes Canotilho é enfático ao afirmar que:

Esta leitura da constituição de baixo para cima, justificadora de uma nova compreensão da constituição a partir das leis infraconstitucionais, pode conduzir à derrocada interna da constituição por obra do legislador e de outros órgãos concretizadores, e à formação de uma de uma constituição legal paralela, pretensamente mais próxima de dos momentos “metajurídicos” (sociológicos ou políticos). (2003, p. 1230)

Por outro lado, um dos principais argumentos utilizados pelos publicistas para criticar a nova interpretação dada pelo ministro Gilmar Mendes ao instituto da suspensão da execução da lei declarada inconstitucional pelo Senado Federal é a mitigação da legitimidade democrática no controle de constitucionalidade. É que, sendo o Senado Federal um órgão composto por representantes eleitos pelo voto, a possibilidade de concessão de efeitos erga omnes a partir da decisão deste órgão consagraria a participação da sociedade no controle de normas, reduzindo os impactos da chamada dificuldade contramajoritária.

[...] o modelo de participação democrática no controle difuso também se dá, de forma indireta, pela atribuição constitucional deixada ao Senado Federal. Excluir a competência do Senado Federal – ou conferir-lhe apenas o caráter de tornar público o entendimento do Supremo Tribunal Federal – significa reduzir as atribuições do Senado Federal à de uma secretaria de divulgação intra-legislativa das decisões do Supremo Tribunal Federal; significa, por fim, retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de 1988. (STECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 7)

remetê-la à Casa Alta, não parece aconselhável que os demais tribunais se vinculem a essa decisão, nesta oportunidade, já que os próprios membros da Corte Maior entendem que ela precisa ser mais debatida. Para o autor “a imposição da exceção prevista no parágrafo único do art. 481 só adquire significado nas hipóteses em que o Supremo Tribunal Federal, ao decidir a questão constitucional em sede de controle difuso, já tenha

remetido a decisão para o Senado (porque só então estará consolidada a posição do STF), e o Senado ainda não

tenha promulgado a resolução suspensiva da execução da lei. Fora de tal hipótese, é temerária (e inconstitucional) a dispensa de suscitação do incidente de inconstitucionalidade pelos tribunais da República, porque decorrência, nestes casos, de decisão do Supremo Tribunal que não cumpriu o disposto no art. 52, X, da

Entende-se, ademais, que se a tese da mutação constitucional prosperar haverá a lesão a direitos fundamentais. Haverá violação da cláusula do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, posto que a decisão do Supremo Tribunal Federal afetará pessoas que não tiveram a oportunidade de participar do processo em que o Tribunal declarou incidenter tantum a inconstitucionalidade da lei.

O ministro Gilmar Mendes, no seu voto na Reclamação nº 4335/AC, afirmou que a previsão de súmulas vinculantes no ordenamento jurídico pátrio corrobora a tese da mutação constitucional do art. 52, X da Carta Política. Justifica seu entendimento no fato de que as súmulas vinculantes possibilitam a concessão de efeitos gerais a um entendimento consolidado pela Corte em processos subjetivos independentemente do cumprimento do art. 52, X, da Constituição Federal.

É cediço que as súmulas vinculantes representam uma ponte entre o controle difuso- concreto e o controle concentrado-abstrato, na medida em que o entendimento proferido reiteradas vezes pelo STF (em sede de controle concreto) a respeito da eficácia, da validade e da interpretação da norma acaba generalizando-se. De fato, parece-nos que se a tese da mutação constitucional prosperar, as súmulas vinculantes perderão, em parte, o seu objeto. Já que a súmula vinculante pode ter por objeto a validade de determinada norma, o que está em questão é a constitucionalidade da lei. (LEITE, 2008) Se a tese perfilada pelos ministros prosperar, o Supremo não precisará editar súmula vinculante para que seu entendimento ganhe força obrigatória geral. Esta força decorreria de uma única decisão do Pretório Excelso.

Se foi desenvolvido, através de Emenda Constitucional, todo um regime jurídico para as súmulas vinculantes, e se um dos requisitos para a sua edição é existência de reiteradas decisões em um mesmo sentido, é porque essas decisões, inclusive as declaratórias de inconstitucionalidade, não possuem eficácia geral e obrigatória. Do contrário, seria inútil implantar o mecanismo da súmula vinculante se as decisões singulares que estão em sua base possuíssem o efeito vinculante. Vê-se, então, que se o constituinte originário considerou que as decisões em controle difuso têm efeitos apenas entre as partes, essa posição acabou sendo confirmada pelo poder reformador através da EC nº 45-2004, ao permitir a criação de súmula vinculante para exprimir decisões de inconstitucionalidade do STF proferidas incidentalmente. (LEITE, 2008, p. 19)

Ao conceder efeitos vinculantes apenas para as súmulas, o constituinte reformador só quis que os julgamentos proferidos em sede de controle difuso tivessem efeitos equivalentes aos do controle concentrado se o Tribunal procedesse à elaboração de súmula vinculante.151

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“Decidir – como quer, a partir de sofisticado raciocínio, o Min. Gilmar Mendes – que qualquer decisão do Supremo Tribunal Federal em controle difuso gera os mesmos efeitos que uma proferida em controle concentrado (abstrato) é, além de tudo, tomar uma decisão que contraria a Constituição. Lembremos, por

Vê-se, pois, que a tese da mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição de 1988 encontra muitos óbices. Porém, o mais forte deles diz respeito ao manejo da tese da mutação constitucional como meio de possibilitar a transformação pretendida pelos ministros Eros Grau e Gilmar Mendes. É que a mutação constitucional defendida pelos ministros contraria a Constituição, a qual consagrou o sistema misto de controle de constitucionalidade.

Em síntese, a tese da mutação constitucional advoga em última análise uma concepção decisionista da jurisdição e contribui para a compreensão das cortes constitucionais como poderes constituintes permanentes. Ora, um tribunal não pode mudar a Constituição; um tribunal não pode ‘inventar’ o direito: esse não é o seu legítimo papel como poder jurisdicional numa democracia.

[...]

Ao pretender que caibam reclamações contra as suas teses e não contra suas decisões proferidas em casos concretos e questões judiciais, o Supremo Tribunal Federal desloca a discussão jurídica para os discursos de fundamentação (Begrüngsdidkurs), elaborados de forma descontextualizada. Passam a ser “conceitos sem coisas”. E isso é metafísica, para utilizarmos uma linguagem cara à hermenêutica de cariz filosófico. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 21)

Nesta linha de pensamento, não cabe aproximar o direito das teses realistas, conferindo ao Supremo Tribunal Federal o poder de corrigir a Constituição, sempre que a considere obsoleta. Permitir que a Corte realize de per se a substituição do enunciado normativo pelo pretendido, significa usurpar a competência para reformar a Constituição, violando, assim, a distribuição de competências realizada pelo constituinte.