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O constitucionalismo norte-americano tem especial importância na história constitucional do Ocidente. Parte da doutrina aponta que a Carta de 1787 foi a primeira Constituição escrita da modernidade30, mas a contribuição norte-americana vai muito além deste fato. Ao lado da forma federativa, esse país desenvolveu uma especial técnica de atuação da supremacia da Constituição: o judicial review of legislation.31

O controle judicial da constitucionalidade permite que juízes e tribunais neguem aplicação às leis contrárias a Constituição. Segundo Leal (2006b), a experiência norte- americana deu origem a uma nova forma de julgar não contemplada no sistema político de Montesquieu. No modelo clássico do princípio da separação dos Poderes os juízes estão submetidos à lei. A revisão judicial possibilitou o surgimento de um novo poder jurisdicional que, em nome da supremacia constitucional, se sobrepôs às leis, podendo negar-lhes aplicação.

No caso Marbury v. Madison o Chief Justice Marshall expôs as balizas do judicial review. Cumpre ressaltar que o poder de fiscalização não é ilimitado. A jurisprudência norte- americana, ainda no século XIX, estabeleceu restrições a esta atividade.

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Em sentido contrário, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello afirma que “A primeira Constituição escrita, em um corpo único, com poderes limitados, historicamente falando, é a de Cromwell. Expressamente declara que todo ato do Parlamento devia ser considerado ilegal, desde que não fosse contrário à Constituição, e mais, considera nulas e írritas as leis ofensivas da liberdade de consciência”. (MELLO, 1980, p. 107)

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A revisão judicial não ficou confinada aos limites territoriais dos Estados-Unidos. Expandiu-se sobre o Canadá, a Austrália, a Índia, o Japão e mesmo sobre a Europa. Países como Noruega, Suécia, Alemanha e Itália experimentaram de algum modo e em algum momento elementos cunhados na prática do judicial review norte- americano. (CAPPELLETTI, 1992)

A decisão proferida no caso Marbury v. Madison evidencia que a Constituição é norma jurídica de hierarquia superior e serve de parâmetro para aferir a legitimidade das demais normas jurídicas; que o juiz apenas declara um vício preexistente; que a atuação do Poder Judiciário nesta matéria só poderia ocorrer diante de um caso concreto, quando uma ameaça real ou uma efetiva lesão do direito subjetivo deduzido no processo se fizesse presente. (CRUZ, 2004)

A competência para o controle de constitucionalidade das leis, no sistema americano, é atribuída difusamente a todos os juízes ou tribunais, já que a função de controlar a constitucionalidade das leis é decorrência do poder de interpretá-las. Assim, o controle encontra-se disperso na estrutura do Poder Judiciário. Esse dado lhe confere um forte apelo democrático, pois permite que a questão amadureça durante o iter regular das impugnações até chegar às portas da Suprema Corte.

Geralmente a Corte Maior apenas se manifesta a respeito do caso após um longo período de discussão e debates nas instâncias inferiores acerca da constitucionalidade da lei. Laurence Baum (1987 apud LEAL, R.,S., 2006b) afirma que até o ano de 1982, 61% das declarações de inconstitucionalidade de leis federais emanadas pela Suprema Corte eram proferidas após quatro anos contados da edição da lei pelo Congresso. É de registrar que não são raros os casos em que a Suprema Corte se abstém de firmar sua posição por entender que a questão não está suficientemente madura. Reconhece-se que não é dado à Corte produzir um pronunciamento prematuro ou abstrato. Em outras situações, a Corte se abstém de decidir casos em que a questão fora levantada tarde demais, não gerando qualquer benefício para as partes interessadas. Mootness e ripeness constituem doutrinas de acesso à Suprema Corte.

Muito embora a competência para a fiscalização esteja difundida entre todos os órgãos jurisdicionais, a Suprema Corte, órgão de cúpula da estrutura judiciária, ocupa lugar de destaque. É que, em virtude do stare decisis32, suas decisões se tornam obrigatórias para todos os demais órgãos judiciais.

Nos primórdios da common law a produção legislativa era escassa e a jurisprudência se consolidou como principal fonte do Direito. Benjamim Cardozo (2004) afirma, com razão, que o início do trabalho do juiz norte-americano baseia-se no exame e na comparação dos diversos precedentes judiciais. Se estes são claros e objetivos, talvez o magistrado não tenha que recorrer a mais nada para resolver o caso concreto que lhe foi submetido.

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A expressão traduz o seguinte enunciado latino: “stare decisis et non quieta muovere”, ou seja, ficar com o que foi decidido e não mover o que está em repouso.

No sistema norte-americano as decisões judiciais são baseadas em julgados anteriores. A cultura de respeito aos precedentes constitui um dado digno de nota nos países ligados à common law. Nas palavras de Appio (2008, p. 57) “Um juiz pode até discordar da correção da decisão anterior, firmada no precedente e, ainda assim, terá de aderir ao que já foi decidido no passado. Nos casos de vinculação vertical, a adesão é irrestrita e obrigatória.”

A regra do stare decisis revela a amplitude e a força do precedente jurisprudencial nos países de tradição anglo-saxã. A decisão judicial, para além de pôr termo a uma querela judicial, tem o condão de fixar um precedente que deverá ser obrigatoriamente seguido quando ocorrer um caso semelhante no futuro.

É graças a esse instituto que o judicial review adquire funcionalidade, de modo que, uma vez declarada inconstitucional, através do pronunciamento da Corte Maior, a lei, embora continue presente no ordenamento jurídico (law on the books) se transforma em lei morta (dead law). Assim, o stare decisis possibilita que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade proferida pela Corte Suprema se irradiem para além do caso concreto em que foi proferida.

Segundo Cappelletti (1992, p. 81):

[...] o resultado final do princípio do vínculo aos precedentes é que, embora também nas Cortes (estaduais e federais) norte-americanas possam surgir divergências quanto à constitucionalidade de uma determinada lei, através do sistema de impugnações a questão de constitucionalidade poderá acabar, porém, por ser decidida pelos órgãos judiciais superiores, e, em particular, pela Supreme Court cuja decisão será, daquele momento em diante, vinculatória para todos os órgãos judiciários. Em outras palavras, o princípio do stare decisis opera de tal modo que o julgamento de inconstitucionalidade da lei, acaba, indiretamente, por assumir uma verdadeira eficácia erga omnes.

À primeira vista tendemos a imaginar que o stare decisis e o efeito vinculante constituem uma mesma realidade, pois ambos tendem a tornar geral e obrigatória a interpretação realizada por um órgão. Existem, porém, diferenças entre esses dois institutos. O efeito vinculante foi forjado na Europa no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade como medida tendente a reforçar as decisões do Tribunal Constitucional em matéria de controle de constitucionalidade. O objetivo era pôr fim a reiterações de decisões contrárias às proferidas por este órgão. Já o stare decisis nasceu no seio da common law de modo a conferir estabilidade na regulação das relações sociais, ante a inexistência de uma densa produção legislativa. O stare decisis não foi criado especificamente para a prática

do controle de constitucionalidade, mas constitui instrumento de coerência interna do Poder Judiciário (LEAL, R. S., 2006a).33

Alguns autores fazem referência a uma “debilidade” na aplicação da regra do stare decisis diante de matéria constitucional. (LEAL, R. S. 2006b, p. 127-129) Contudo há que se reconhecer que a regra tem força institucional suficiente para dar estabilidade e eficácia ao judicial review of legislation. A aplicação do stare decisis tende a dar outra dimensão aos postulados firmados por Hamilton e reproduzidos por Marshall. Se estes entendiam que o controle de normas era fundado diretamente na competência dos juízes em solucionar a lide concreta por meio da interpretação do Direito, a regra do stare decisis tende a agigantar os efeitos deste controle, gerando uma legítima anulação da lei com efeitos retroativos. (CAPPELLETTI, 1992)

A regra do stare decisis prestigia a estabilidade, a previsibilidade, assegura igualdade de tratamento aos jurisdicionados, mas não significa que os juízes tenham que obedecer cegamente às decisões pretéritas. Há mecanismos que possibilitam a reversão do entendimento anterior e a conseqüente oxigenação da jurisprudência norte-americana. Para Tribe (2000) o stare decisis promove o equitativo, previsível e consistente desenvolvimento dos princípios legais.

Outra diferença marcante entre o sistema norte-americano e o austríaco está no caráter incidental que caracteriza o controle norte-americano. A declaração de inconstitucionalidade, nesta forma de controle, não se apresenta enquanto objeto central da causa, pois a declaração de inconstitucionalidade não se presta à tutela da ordem constitucional considerada objetivamente, mas a defesa de posições subjetivas.

A questão sobre a inconstitucionalidade da lei só será enfrentada pelo juiz caso seja relevante para a resolução do caso concreto. Recorde-se que a própria Constituição norte- americana prescreve que a jurisdição dos membros do Poder Judiciário se restringe aos casos e às controvérsias. A atuação do Poder Judiciário norte-americano só pode ocorrer diante de um conflito de interesses. Nas palavras de Clève (2000, p. 92), “[...] a argüição manifestar-se-

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Para Hans Kelsen (2003, p. 307-308) “[…] a norma de stare decisis não é de modo algum absoluta. Não está bem claro até que ponto sua validade é reconhecida. Acima de tudo, admite-se que ela não é válida no caso de interpretação da Constituição. “Questões constitucionais estão sempre abertas a exame”. Portanto é possível que a Suprema Corte declare uma mesma lei inconstitucional num caso e inconstitucional noutro, ou vice-versa. O mesmo é verdade no que concerne às outras cortes. Tais casos têm, com efeito, ocorrido. Não está excluída também a possibilidade de que uma corte inferior, em particular uma corte estadual, decida a questão da constitucionalidade de uma lei se, que o caso seja trazido perante a Suprema Corte, e que esta, ao examinar a lei dentro de outro caso, decida a questão de forma contrária. Nesse caso o princípio da res judicata impossibilita a outra corte de adaptar sua decisão prévia àquela da Suprema Corte.”

á, sempre, no curso de um processo. Não há ataque direto à lei inquinada de vício. Ataca-se, antes, o ato, o fato ou a conduta que se pretende praticar com base na lei”.

Portanto, é natural que não haja qualquer procedimento específico para a obtenção da declaração de inconstitucionalidade. A regra fundamental do sistema é que inexiste qualquer modo especial de procedimento – assim como não existe um órgão especial competente – para as questões constitucionais, as quais se decidem na medida em que surgem em cada caso concreto, qualquer que seja a natureza dos direitos em questão.

Segundo a jurisprudência dos tribunais estadunidenses, a lei presume-se constitucional, sendo a declaração ato excepcional realizado ante a manifesta inconstitucionalidade. Trata-se de um incidente a ser apreciado pelo juiz antes da decisão acerca da procedência ou improcedência do pedido.

Como se dá no bojo de um processo subjetivo, em que o magistrado limita-se a resolver a lide, a declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum não tem o condão de expurgar o ato normativo do ordenamento jurídico. Tradicionalmente a decisão só tem projeção no processo em que houve a declaração; portanto, apenas gera efeitos para as partes envolvidas no litígio.

A preocupação central não é a integridade do sistema jurídico, mas a tutela de determinado direito que pode ser negada em virtude da aplicação de uma lei inconstitucional. No cenário estadunidense os direitos formaram o fundamento sobre o qual a ordem constitucional foi construída, diferentemente do que ocorreu na Europa, onde as conquistas do constitucionalismo francês conduziram ao fortalecimento do Parlamento e da lei. O judicial review surgiu, então, como instrumento de proteção dos direitos do cidadão, consagrados na Carta Constitucional contra os excessos eventualmente cometidos pelo legislador.

Outro dado importante na configuração do controle de constitucionalidade de origem norte-americana diz respeito aos efeitos no tempo da declaração de inconstitucionalidade. Tradicionalmente associa-se este tipo de controle com a atribuição de efeitos retroativos à decisão que reconhece a incompatibilidade da lei com a Carta Maior.

Sendo a Constituição o texto ápice antecedente cronologicamente, era até natural defender-se que toda lei editada que se afigurasse contrária a ela o seria desde seu nascimento, uma vez que jamais deveria ter sido elaborada e ingressado na ordem jurídica. A declaração de inconstitucionalidade implicava necessariamente a nulidade ab initio, também denominada nulidade de pleno direito, na medida em que se entendia a incompatibilidade como a ausência dos elementos essenciais que a identificavam, o que acarretava a carência de produção de efeitos jurídicos desde a origem e a impossibilidade de ser ratificada ou sanada. (FERREIRA, C. W. D., 2007, p. 157)

A consolidação da tese da nulidade no Direito americano se deve, também, ao caráter incidental que caracteriza a judicial review. É que, como a inconstitucionalidade era declarada com vistas a solucionar o caso concreto, o juízo de inconstitucionalidade proferido pelo magistrado apenas seria útil se fosse dotado de efeitos retroativos. Veremos mais adiante que a questão dos efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade recebeu conformação diversa sob a égide da Corte Warren.