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1.2 As câmaras municipais

1.2.1 Antecedentes

Até então, a organização e a definição de atribuições das câmaras municipais eram reguladas pelas Ordenações do Reino, cujas características mais importantes eram a eletividade e certa independência no exercício de suas funções.44 Modelo de organização local da monarquia portuguesa nos territórios do reino e ultramarinos, as câmaras foram órgãos fundamentais na construção e na manutenção do Império português na América, na África e na Ásia, constituindo-se pilar da sociedade colonial portuguesa.45 Os grupos locais representados nas câmaras desempenharam papel importante na integração política da colônia no território imperial. Eles tinham na câmara espaço para expressão de seus interesses, de tráfico de influências e de poder. A instituição tornou-se lugar de nobilitação, obtenção de privilégio e de negociação de demandas com a administração central do Império.46

Inicialmente, os termos de vilas eram fundadas em decorrência da delegação de poderes feita pela Coroa portuguesa aos donatários. Erigindo povoações, eles lhes concediam o foral de vila, levantando o pelourinho, que simbolizava jurisdição e liberdade municipal. Os forais eram, depois, confirmados por carta régia ou por alvará.47 A primeira vila foi criada na capitania de São Vicente, em 1532, pelo donatário Martim Afonso de Souza. A instalação da vila de São Vicente assinalou a inauguração do governo local no início do processo de colonização do território. Somente em localidades com o estatuto de vila é que foram instaladas câmaras. Elas eram regidas, inicialmente, pelas Ordenações Manuelinas, publicadas em 1521, e depois pelas Ordenações Filipinas de 1603, que definiram atribuições gerais dos

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MAIA, João de Azevedo Carneiro. O município: estudos sobre administração local. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger & Filhos, 1883. p. 176. Acervo do AN-RJ. Obras raras.

45 BOXER, Charles R. O Império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981. p. 263-282. 46 BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império português: o exemplo do Rio de Janeiro.

Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 36, p. 251-280, 1998.

47 MOURÃO, João Martins de Carvalho. Os municípios: sua importância política no Brasil-colonial e no Brasil-

municípios do Império português e estabeleceram um sistema de eleições para os oficiais das câmaras, denominadas, também, de conselhos.48

Em tese, as normas metropolitanas deviam ser seguidas, quer no reino, quer nas conquistas. A hierarquia de comando e as áreas de jurisdição eram bem definidas. Entretanto, as situações específicas, em escala variável de distância da administração central, modificavam a legislação em uma combinação de interesses metropolitanos, regionais e locais. A rigidez da administração foi negada, principalmente, por grupos locais, que flexibilizaram a interpretação legal, conforme situações e interesses em questão. Interferindo na lógica sistêmica da administração do Império, forjou-se um eixo vertical, que permitiu aos colonos serem ouvidos no centro decisório do poder em Lisboa. Existiu, também, um eixo horizontal local passível de aproximar colonos, ministros régios e governantes.49

O poder régio teve presença representativa na colonização e na administração de territórios ultramarinos por meio de homens e instituições. O exercício de governo foi bem diverso no reino. A arte de governar foi desenvolvida em uma sociedade plural – étnica e culturalmente –, tributária de modelos europeus, mas com conteúdos novos. As vilas e cidades foram lugar de convivência, por vezes conflituosa, entre diferentes segmentos e representantes lusos. A Coroa estabeleceu pactos diferenciados com segmentos de muitas localidades do Império, conforme as próprias demandas e demandas específicas, quer regional quer localmente circunscritas.50 As disputas ocorriam entre os diferentes grupos sociais e econômicos dominantes. Os vitoriosos de dado período reafirmavam as relações políticas com

48 LAXE, João Batista Cortines. Câmaras municipais (histórico). 4. ed. São Paulo: Brasil Bandecchi; Obelisco,

1963. p. 26-28. Acervo do AN-RJ. Obras Raras.

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A respeito d a atuação de agentes locais e sua capacidade de flexibilizar o sistema, cf. RUSSEL-WOOD, A. Governantes e agentes. In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti. História da expansão

portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1999. p. 169-192 apud SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra:

política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 45-46; RUSSEL-WOOD, A. O governo local na América portuguesa. Revista de História, São Paulo, v. 55, n. 108, p. 25-79, 1977.

50 Sobre vassalagem política, cf. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século

XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 346-384; MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no

espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América (1640-1720), São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2002.

o centro, garantindo sua inserção na rede de poder local, estabelecida com a monarquia. Em meio aos conflitos intra-autoridades, a Coroa soube garantir a ordem colonial, por meio de representação efetiva nos territórios conquistados.51

Retomando a legislação que regulava as câmaras municipais, as Ordenações Filipinas de 1603 vigoraram até 1828, quando foi publicada a Lei de 1º de outubro do mesmo ano, que dispôs sobre a regulamentação das câmaras municipais no sistema monárquico e constitucional. Isso significa dizer que durante a época colonial, internamente, não se elaborou nenhuma disposição normativa para reger a administração local. Verificaram-se apenas graças honoríficas e privilégios concedidos às câmaras mais importantes, não se tratando de um tipo diferenciado de organização municipal.52 Foi o caso, por exemplo, de alvarás que concederam às câmaras do Rio de Janeiro (1642), da Bahia (1646) do Pará (1655) e de São Paulo (1730) os privilégios outorgados à câmara do Porto.53 As Ordenações Filipinas regularam as câmaras, portanto, por boa parte do período colonial. No Livro I, Títulos 66 a 71 dessas Ordenações, registram-se determinações sobre sua organização, composição, forma de eleição e atribuições.

A instituição passava a ter um caráter mais administrativo em relação às normatizações anteriores, com as atribuições judiciárias reduzidas ao julgamento pelo juiz das causas de injúrias verbais, furtos pequenos e algumas da almotaceria. A câmara era composta de juiz ordinário, seu presidente, de três ou quatro vereadores, de um procurador, de dois almotacés e de um escrivão. Em algumas havia um advogado e um tesoureiro. Todos eles eram denominados oficiais da câmara. As funções deliberativas eram exercidas pelos

51 Há extensa produção historiográfica que trata das câmaras na época colonial. A respeito da dimensão da

atuação do governo português na política e na administração da colônia, os estudos trazem interpretações divergentes sobre o tema. Sobre esse debate, cf. SOUZA. O sol e a sombra, p. 27-77.

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MOURÃO. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, p. 302.

53 Os privilégios concedidos a essas câmaras referiam-se à eleição para sua composição: “Na inscrição dos

pelouros, para votar e ser votado nos cargos do conselho, só entravam homens limpos e de boa geração, nobres, fidalgos da Casa Real, infanções e descendentes de conquistadores ou povoadores que haviam ocupado empregos públicos”. (Cf. BANDECCHI, Brasil. O município no Brasil e sua função política (I).

vereadores, sob a presidência do juiz. Os juízes ordinários, os vereadores, o procurador, o tesoureiro e o escrivão eram eleitos por eleição indireta para servirem à câmara por três anos. No processo eleitoral, reuniam-se os homens bons e o povo para a nomeação de seis homens, denominados eleitores, os quais elegiam os oficiais das câmaras.

As competências das câmaras eram bastante abrangentes. Além das atribuições de interesse próprio do município, elas denunciavam crimes e abusos aos juízes; desempenhavam funções de polícia rural e de inspeção de higiene pública; auxiliavam os alcaides no policiamento da terra e elegiam diversos funcionários da administração, como os almotacés, os quatro recebedores das sizas, os depositários judiciais, do cofre de órfãos e da décima, os escrivães das armas e os guardas policiais do termo. Outra função era,organizar as posturas de acordo com os juízes e homens bons, sem dependência de aprovação de autoridade superior. Elas tinham o direito de nomear procuradores às cortes para tratar de assuntos de seu interesse, sem intermediação na comunicação com o governo. Assim o fez a câmara do Rio de Janeiro quando nomeou seu procurador perante as cortes Francisco da Costa Barros, em 1641.54 Somadas às funções gerais das câmaras, seus oficiais tinham competências específicas que conferiam à instituição relativa autonomia na administração de seus interesses locais.55

Além das atribuições legais, as câmaras exerciam funções da esfera de outros órgãos da administração, cujo exercício era legitimado pela tradição e pelo costume. A instituição adquiriu determinados poderes reservados a outras autoridades. Os abusos passavam a figurar “um certo direito, ora contestado, ora tolerado e ora formalmente reconhecido pelos governadores e pela corte”.56

Assim, as câmaras tinham suas atribuições definidas pelas

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Para um estudo sobre a câmara do Rio de Janeiro, cf. BICALHO. A cidade e o Império.

55 A respeito dessas informações sobre composição das câmaras municipais, eleições e atribuições conforme as

Ordenações Filipinas, cf. MOURÃO. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, p. 307-312; LAXE. Câmaras municipais, p. 26-35.

56 LISBOA, João Francisco. Apontamentos para a história do Maranhão apud BANDECCHI. Revista de

Ordenações, mas tomaram para si outras funções que não eram de sua alçada. Isso resultou na indiscriminação de atribuições, que se favoreceu, de um lado, às câmaras invadirem a esfera de jurisdição do governo central, de outro, permitiu ao governo colonial usurpar poder dessas instituições, no contexto de políticas de centralização de poder, estreitando a subordinação do governo local na hierarquia da administração colonial.57 A indefinição da responsabilidade de determinadas competências conformava os conflitos de interesses entre colônia e metrópole, consubstanciados entre as câmaras, onde residiam representantes de grupos influentes locais, e os governadores, delegados diretamente do governo português.

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