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As disposições constitucionais de 1824 e sua regulamentação em 1828

1.2 As câmaras municipais

1.2.2 As disposições constitucionais de 1824 e sua regulamentação em 1828

Já após a independência, a Assembleia Constituinte tratou das bases do novo regimento municipal no Projeto de Constituição, que não chegaram a ser discutidas em plenário.58 Pretendeu-se corrigir a acumulação de funções judiciárias e outras atribuições não compatíveis com as câmaras municipais, que provocavam a indistinção de atribuições entre as esferas de poder. A correção pretendida era orientada pelos princípios do novo direito público então vigente. O Projeto reconhecia a importância histórica do municipalismo e sua fonte de poder de origem eletiva.59 De caráter descentralizado, previa-se a administração dividida em três circunscrições independentes: comarcas, distritos e termos. Todos com um presidente e um conselho eletivo. No termo, instituía-se um presidente com funções executivas e uma câmara, responsável pelo governo econômico e municipal. Os presidentes seriam autoridades nomeadas e previa-se lei regulamentar para definir suas atribuições e sua “gradativa

57 MOURÃO. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, p. 310. Cf., também: BANDECCHI.

Revista de História, p. 520-521.

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O Projeto de Constituição foi apresentado na sessão de 1º de setembro e era constituído de 15 títulos e 272 artigos. Apenas 23 artigos foram discutidos até a última sessão de 11 de novembro, na qual foram discutidos e aprovados os arta. 22 e 23, seguida da dissolução da Assembleia pelo imperador. (Cf. BRASIL. Projeto de Constituição para o Imperio do Brasil, 30 de agosto de 1823. Diario da Assemblea Geral Constituinte e

Legislativa do Imperio do Brasil. 1823. Brasília: Senado Federal, 1973. v. 2, p. 689- 699; Diario da Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil, v. 3, sessão de 11 de novembro, p. 398.

subordinação” ao governo, bem como as competências das autoridades eletivas.60

Essa subordinação não se aplicava às câmaras, por serem eletivas. Assim, no âmbito da proposta de delimitar os poderes e suas respectivas atribuições, a autonomia municipal estava admitida no esboço desse Projeto de Constituição.

A Constituição de 1824, que, como referido, adotou pressupostos do projeto da Assembleia Constituinte, tratou do município de forma mais clara, seguindo as proposições dos constituintes favoráveis à autonomia do poder municipal. A esfera municipal foi extensiva a todas as vilas e cidades, nas quais deveria haver câmaras, competindo-lhe o governo econômico e municipal das mesmas vilas e cidades. As câmaras seriam eletivas, compostas por vereadores, sendo o presidente o vereador mais votado. Suas atribuições municipais, a formação de suas posturas policiais, aplicação das rendas e outras particularidades seriam determinadas por lei regulamentar.61 Assim, coube às câmaras competência para “todos os atos” de economia e administração municipal, conferindo-lhe a categoria de governo e demarcando autonomia em relação às outras esferas de poder. Foi-lhes autoridade deliberativa e executiva, diferentemente do projeto Constituinte, que previu os poderes municipais representados pela câmara e por um administrador. A presidência da câmara, conferida ao vereador mais votado, remeteu-se a origem eletiva da instituição.62

A disposição constitucional mais explícita em favor da autonomia das câmaras estava expressa nos arts. 71 e 72. Referia-se ao reconhecimento e garantia “do direito de todo cidadão intervir nos negócios da sua província, imediatamente relativos a seus interesses peculiares”. Esse direito seria “exercitado pelas câmaras dos distritos e pelos conselhos gerais de províncias”. Duas determinações aparentemente, contudo, impuseram às câmaras sujeição aos conselhos gerais de província em desacordo com essa disposição: a primeira (art. 81)

60 BRASIL. Projeto de Constituição para o Imperio do Brasil, 30 de agosto de 1823, arts. 209 a 214, p. 698.

Diario da Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil.

61 BRASIL. Constituição política do Império do Brazil, arts. 167, 168 e 169. Coleção das Leis do Brazil de 1824. 62 MAIA. O município, p. 178-179.

atribuía aos conselhos “por principal objeto propor, discutir, e deliberar sobre os negócios mais interessantes das suas províncias, formando projetos peculiares e acomodados às suas localidades, e urgências”; a segunda (art. 82) determinava que “os negócios que começassem nas câmaras fossem remetidos oficialmente ao secretário do Conselho, onde deveriam ser discutidos, bem como os que tiverem origem nos mesmos conselhos”.63

A subordinação das câmaras aos conselhos nessas disposições é apenas aparente porque a principal atribuição dos conselhos era deliberar sobre assuntos de suas províncias, e não dos municípios. A atribuição de elaborar projetos adequados “às suas localidades e urgências” referia-se a providências de interesse provincial localizado, mas de relativo caráter geral. Tratando-se de interesses provinciais e municipais, os conselhos tinham autoridade para elaborar projetos relativos a essa ordem de interesses, cabendo às câmaras encaminhar suas propostas aos conselhos. Assim, não se feriam as competências das câmaras de deliberar sobre assuntos exclusivamente municipais, visto que na disposição do art. 167 foi conferido às câmaras “o governo econômico e municipal”.64

Mas as disposições constitucionais sobre as relações jurídicas entre províncias e municípios deveriam ser tratadas por leis regulamentares, permanecendo a administração local, no interstício, regulada pelas Ordenações Filipinas.

Em 1827, foram decretadas as primeiras leis referindo-se às competências das câmaras. A Assembleia Geral, restabelecida em 1826, decretou a Lei de 15 de outubro de 1827, que criou a justiça de paz, instituindo um juiz de paz e suplente nas freguesias e capelas curadas. Às câmaras foram conferidas as atribuições de nomear os escrivães desse juízo, conhecer do impedimento dos eleitos para o cargo de juiz de paz, recolher ao cofre municipal o produto das multas que esses juízes impusessem e contar com o auxílio deles para a execução de suas posturas.

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BRASIL. Constituição política do Império do Brazil, arts. 71, 72, 81, 82. Coleção das Leis do Brazil de 1824. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1826.

Outra lei com a mesma data determinou a criação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos. Foi atribuído às câmaras o direito de serem ouvidas pelos presidentes de províncias quanto à localidade e ao número de escolas a serem instaladas.65 Já em 1828, a Lei de 29 de agosto de 1828, que regulava o serviço de obras públicas, autorizou as câmaras a contratar obras de utilidade municipal e a estabelecer taxas de passagem nas pontes e estradas que construíssem. A Lei de 22 de setembro do mesmo ano, que suprimiu o Desembargo do Paço, transferiu para as câmaras todas as atribuições que eram exercidas relativas a objetos de economia municipal. A lei conferiu às câmaras, também, o direito de aforarem seus bens, mas com a aprovação do conselho geral de província, e de contratarem médicos e cirurgiões de partido, com rendimento de seus cofres.66 Essas e outras leis regulamentares dispuseram sobre atribuições das câmaras até a decretação do regimento municipal pela Lei de 1º de outubro de 1828.

Em suas disposições, a Lei de 1º de outubro de 1828, denominada também Regimento das câmaras municipais, trouxe duas mudanças substanciais em relação à legislação anterior: a eleição direta para seus membros e a supressão de funções judiciais.67 Ambas as alterações estavam em consonância com texto constitucional, facultando ao cidadão o exercício mais direto de intervir nos negócios locais, cujo direito estava garantido pelo art. 71, e respeitando o princípio da divisão dos poderes. O regimento constituía 90 artigos em cinco títulos: Forma de eleição das câmaras; Funções municipais; Posturas policiais; Aplicação das rendas; Dos Empregados. No que se refere à mudança legislativa em relação à eleição, os arts. 1º e 2º dispunham sobre a eleição e a composição dos membros, determinando que as câmaras das cidades se comporiam de nove membros e as das vilas, de sete e de um secretário. A eleição

65 BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827. Crêa em cada uma das freguezias e capellas curadas um juiz de paz e

suplente; Lei de 15 de outubro de 1827. Manda crear escolas de primeiras letras. Colleção das leis do Imperio

do Brazil de 1827. BRASIL. Actos do poder legislativo. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878. p. 67-

71. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa>. Acesso em: 14 set. 2011.

66 BRASIL. Lei de 29 de agosto de 1828; Lei de 22 de setembro de 1828. Colleção das leis do Imperio do Brazil

de 1828. Actos do Poder Legislativo. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878. p. 47-51 e p. 67-70.

Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa>. Acesso em: 14 set. 2011.

deveria ser feita de quatro em quatro anos, no dia 7 de setembro em todas as paróquias dos respectivos termos das cidades e das vilas. Regulamentavam-se, portanto, os arts. 167 e 168 da Constituição, cuja disposição era de que em todas as cidades e vilas haveria câmaras eletivas e compostas do número de vereadores que a lei designasse. Poderia votar nas eleições de vereadores aqueles que tinham voto na nomeação dos eleitores de paróquias, na conformidade dos arts. 91 e 92 da Constituição. Já para se candidatar vereador, estavam aptos todos os que pudessem ser eleitores nas assembleias paroquiais, que tivessem dois anos de domicílio no termo.68

O art. 90 do texto constitucional dispunha sobre as eleições indiretas para deputados e senadores para a Assembleia Geral e para os membros dos conselhos gerais de províncias. Cabia aos cidadãos ativos em assembleias paroquiais eleger os eleitores, que, por sua vez, elegeriam os representantes nacionais e provinciais. O art. 91 dispunha sobre quem tinha voto nas eleições primárias paroquiais: os cidadãos brasileiros em gozo de seus direitos políticos e estrangeiros naturalizados. No art. 92, estavam elencados os excluídos de votar nessas assembleias paroquiais. O critério socioeconômico era um dos quesitos de exclusão. Entre os excluídos estavam os que não tivessem renda líquida anual de 100$000. Já a definição de eleitor era feita nos arts. 93 e 94. Poderia ser eleitor quem estava qualificado a votar nas assembleias primárias, com exceções. O pré-requisito censitário permanecia excludente, exigindo renda de valor maior, com a exclusão dos que não tivessem renda líquida anual de 200$000. Os libertos e os criminosos, pronunciados em querela ou devassa, eram, também, impedidos de ser eleitores.69 Tanto a lei como as disposições constitucionais ancoravam nas

Instruções de 19 de junho de 1822, referentes às eleições para a Assembleia Nacional

Constituinte, convocada por Dom Pedro.

68

BRASIL. Lei de 1º de outubro de 1828, arts. 1º, 2º, 3º e 4º. Colleção das leis do Imperio do Brazil de 1828, p. 74-75.

A determinação das Instruções era de que as eleições deveriam ocorrem em dois estágios: inicialmente, nas eleições primárias, os votantes elegeriam os eleitores de paróquias, que posteriormente elegeriam os deputados constituintes por províncias.70 O decreto de 26 de março de 1825, que determinou sobre o procedimento das eleições para deputados e senadores da Assembleia Geral Legislativa e para membros dos conselhos gerais de província, promoveu poucas alterações em relação à normatização anterior. As eleições indiretas, cujo processo ocorria em dois níveis, envolvendo votantes e eleitores de paróquias, foram mantidas.71 A Lei de 1º de outubro reportou a essa legislação para determinar quem estaria apto a votar na eleição para vereador e quem poderia se candidatar ao cargo. No caso, estava qualificado a ser vereador apenas eleitor de paróquia. Já as eleições, elas foram estabelecidas na forma direta, incluindo a participação de votantes. Como referido, esses eram excluídos de votar nas eleições paroquiais e de concorrer a cargos eletivos, inclusive os cargos locais, conforme essa lei. Quanto aos cidadãos que não tinham renda líquida anual de 100$000, estavam excluídos de todo o processo eleitoral.

Além da legislação eleitoral vigente, foram publicadas, em decreto imperial de 1º de dezembro de 1828, as Instruções para as eleições das câmaras municipais e dos juízes de paz

e seus suplentes.72 Nas Instruções, de caráter especial, foram definidas as normas para a organização a primeira eleição de membros das câmaras municipais no sistema monárquico e constitucional, juntamente com a eleição de juízes de paz. Definiu-se data e local das eleições; composição das mesas das assembleias paroquiais; procedimentos para a eleição, a apuração dos votos e a elaboração das atas de eleição; e os procedimentos para juramento e posse dos

70

BRASIL. Instruções, a que se refere o Real Decreto de 3 de junho do corrente ano que manda convocar uma Assembléa Geral Constituinte e Legislativa para o Reino do Brazil, n. 57, 19 de junho de 1822. Collecção das

Decisões do Governo do Império do Brazil de 1822. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887. Disponível em:

<http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa>. Acesso em: 15 set. 2011.

71

BRASIL. Decreto de 26 de março de 1824. Colleção das leis do Imperio do Brazil de 1824: decretos, cartas imperiais e alvarás. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/ atividade-legislativa>. Acesso em: 15 set. 2011.

72

BRASIL. Decreto de 1º de dezembro de 1828. Colleção das leis do Imperio do Brazil de 1828: actos do poder executivo. Typographia Nacional, 1878. p. 167-173. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/ atividade- legislativa>. Acesso em: 15 set. 2011.

eleitos na câmara. As Instruções trataram, também, dos qualificados para votar e ser eleitos, em conformidade como a Lei de 1º de outubro de 1828 para a eleição de vereadores e da Lei de 15 de outubro de 1827, para a eleição de juiz de paz. Esta lei, que instituiu a junta de paz, já previa, no art. 2º, que os juízes de paz seriam eletivos “pelo mesmo tempo e maneira que se elegessem os vereadores das câmaras”, respeitando disposição constitucional de igual teor.73 Assim, para a eleição das duas autoridades eletivas locais, seguiam-se as mesmas normas para a qualificação de eleitor e elegível. Depois, essas eleições seguiram as determinações da Lei de 19 de agosto de 1846, que regulamentou as eleições no Brasil. Não houve alterações no processo eleitoral para as autoridades locais. As eleições permaneceram organizadas em dois níveis, na forma direta apenas para vereador e juiz de paz. O intervalo para as eleições de vereadores e juízes de paz continuou de quatro em quatro anos e de forma conjunta. Marcadas para o dia 7 de setembro, somente poderia concorrer a esses cargos que tinha a qualificação de eleitor.74

Essa disposição legislativa sobre quem poderia votar e ser eleito nas eleições para vereadores remete à questão do conceito de cidadania da época. O debate sobre a cidadania, presente já nas sessões da Assembleia Constituinte em 1823, foi delimitada pelo perfil da sociedade, profundamente marcada pelo sistema escravista. Em decorrência disso, constituiu- se uma sociedade escravista caracterizada por distinções jurídicas entre escravos e livres, por princípios hierárquicos baseados na escravidão e na raça e por deferência dos socialmente

73 BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827, art. 2º. Colleção das leis do Imperio do Brazil de 1827; Constituição

Política do Império do Brazil, art. 162. Coleção das Leis do Brazil de 1824.

74 BRASIL. Lei de 19 de agosto de 1846, arts. 92 a 99. Colleção da leis do Imperio do Brasil de 1846. Rio de

Janeiro: Typographia Nacional, 1847. p. 13-39. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/atividade- legislativa>. Acesso em: 16 set. 2011. A respeito das eleições para as câmaras municipais na época imperial, cf. MACHADO, Joaquim de Oliveira. Manual dos vereadores: contendo a Lei de 1º de outubro de 1828 sobre as camaras municipais do Império do Brasil. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1868. p. 19-64. Acervo do AN-RJ Obras raras; PINTO, Caetano José de Andrade. Atribuições dos presidentes de províncias. Rio de Janeiro: B. L. Garnier; Pariz: Aug. Durand, 1865. p. 129-131. Acervo do AN-RJ. Obras raras. Sobre eleições e sistema eleitoral, cf. SOUSA, Francisco Belisario de. O sistema eleitoral no Império. Brasília: Senado Federal; Univ. de Brasília, 1979; CARVALHO. A construção da ordem, p. 391-416; GRAHAM. Clientelismo e política no

Brasil do século XIX; SARAIVA, Luiz Fernando. O Império nas Minas Gerais: café e poder na zona da mata

mineira, 1853 – 1893. 2008. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008, p. 257-294.

inferiores.75 A discussão da cidadania nesse período ficou circunscrita à divisão social instituída entre os homens livres e escravos, que se desdobrou na demarcação dos cidadãos e não cidadãos, respectivamente.

A divisão social punha em destaque dois atributos fundamentais dessa sociedade: liberdade e propriedade. Os escravos, por serem despossuídos de liberdade e, por consequência, da propriedade pessoal, eram excluídos da sociedade e, portanto, não cidadãos. O atributo da propriedade, por sua vez, se circunscrevia em duas dimensões: na propriedade pessoal e na propriedade de bens. Assim, os cidadãos, homens livres, eram portadores de liberdade e da propriedade de suas pessoas. Ambos os atributos existiam de modo articulado, com o último fundando o primeiro.76 O atributo da propriedade no âmbito da propriedade de bens, por sua vez, promoveu distinção entre os cidadãos. Eles foram hierarquizados em dois grupos: como proprietários apenas de suas pessoas e como proprietários também de bens. Os primeiros usufruíam apenas os chamados direitos civis, enquanto para os do segundo grupo acrescia-se o usufruto dos direitos políticos. Essa divisão foi inspirada na Constituição francesa de 1791, que instituiu duas categorias de cidadãos, com base em determinados valores de impostos pagos, para demarcar os que participavam das eleições primárias, os cidadãos passivos, e os que poderiam ser eleitores e elegíveis, os cidadãos ativos.77

Conforme as disposições constitucionais, os cidadãos que tinham renda líquida anual inferior a 100$000 não estavam qualificados a participar das eleições primárias, que nomeariam os eleitores aptos a eleger os representantes dos conselhos de províncias e da Assembleia Geral. Excluídos do nível mais elementar da participação representativa, esses cidadãos, portanto, tinham seus direitos restritos ao âmbito civil. Quanto aos cidadãos que gozavam dos direitos políticos, havia uma hierarquização em três níveis imposta pelo quesito

75 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. 2. ed. São Paulo: Cia. das

Letras, 1999. p. 209-210.

76

MATTOS. O tempo saquarema, p. 109-110.

77 MATTOSO, Katia Queiros. Textos e documentos para o estudo da história contemporânea (1789-1963)

censitário, além de outras exceções. Em primeiro nível, incluindo a maioria dos cidadãos, estavam os que poderiam participar apenas das eleições primárias, cuja renda líquida anual deveria equivaler entre 100$000 e 199$000. Eles eram denominados de votantes. Em segundo nível, restringindo o número de cidadãos, incluíam-se os que poderiam ser eleitores, com renda correspondente a 200$000. Por último, um grupo mais restritivo cidadãos poderia ser deputado, desde que tivesse renda de 400$000.78

Nesse sentido, a distinção entre os cidadãos assinalou uma desigualdade vista como naturalmente dada pelas qualificações de cada um, e não como resultado da dominação exercida pelas frações de classes dirigentes. Um grande contingente de cidadãos estava impedido do usufruto dos direitos de eleição e elegibilidade, restringindo aos segmentos de homens livres e pobres o acesso aos canais de participação e de decisão política. A manipulação dos processos eleitorais por lideranças políticas locais era outro elemento a restringir o exercício do direito de voto do cidadão. Era comum facções de influência econômica e política assumirem o controle de eleições, violando desde as listas de votantes e eleitores até a apuração dos resultados.79

Os dois atributos fundamentais para o princípio da cidadania – liberdade e propriedade – não eram próprios apenas da sociedade brasileira; eles norteavam a organização social de outras sociedades contemporâneas. Na França, os legisladores dos séculos XVIII e XIX pautaram-se neles para definir critérios de cidadania. Os constituintes norte-americanos, que promulgaram sua Constituição em 1787; os espanhóis de 1812, em Cádis; os revolucionários liberais portugueses, com as bases da Constituição portuguesa de 1822; propostas constitucionais formuladas no México, na Guatemala e em Cuba, no início do século XIX, também se basearam nesses princípios para discriminar cidadãos e não cidadãos, bem como para hierarquizar os cidadãos em suas nações. Os fundamentos dessa concepção de

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