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Ao observarmos o percurso histórico-evolutivo da Ciência da Informação, verificamos que, embora sua formação esteja atrelada ao contexto científico e tecnológico do pós-Segunda Guerra Mundial, os conceitos-chave que a fundamentam e os elementos da prática profissional surgem anteriormente a esse momento, mais precisamente nos anos que transitam entre o final do século XIX e meados do século XX. (SILVA; RIBEIRO, 2002).

Nesse período, concentram-se as contribuições do advogado belga Paul Otlet e de seu colaborador Henri La Fontaine, dentre as quais se destacam: a criação do Instituto Internacional de Bibliografia (IIB) que, anos mais tarde, se tornaria Federação Internacional de Documentação (FID); a criação da Classificação Decimal Universal (CDU), baseada na classificação criada por Melvil Dewey em 1876; o lançamento do Repertório Bibliográfico Universal; e a publicação do importante Tratado de Documentação36. (SILVA; RIBEIRO, 2002). Paul Otlet (1868-1944) foi um dos fundadores da Documentação e considerava a importância da criação de uma Enciclopédia Documentária ou Livro Universal com vistas ao acesso, à socialização e à universalização do conhecimento humano. Ademais, projetou uma cidade livre que funcionaria como um centro coordenador de uma rede de informação e de conhecimento, um lugar em que as pessoas poderiam ter acesso ao conhecimento produzido em todo o mundo, em outras palavras, a materialização arquitetônica do conhecimento e da memória. Esse projeto foi encomendado ao arquiteto Le Corbusier e se chamaria Cite Mondiale ou simplesmente Mundaneum37. (SANTOS, 2006).

Em uma perspectiva menos patrimonial e mais dinâmica, conforme explicam Silva e Ribeiro (2002), o sistema de informação concebido por Otlet atuava como centro difusor de informação, em que prevalecia a disseminação, o acesso e o uso da informação. Ou seja, mesmo que Otlet tenha proposto formas consistentes para a organização e para a representação da informação e do conhecimento, seu propósito era eliminar as barreiras e facilitar o acesso ao conhecimento humano por meio de técnicas e de tecnologias que possibilitassem a recuperação da informação por sujeitos informacionais remotos, inclusive.

Otlet visionou um ambiente em que os sujeitos poderiam realizar pesquisas, ler e escrever à sua maneira por meio de uma base de dados mecânica armazenada em fichas 3x5. Poderiam, ainda, anotar os relacionamentos entre os originais recuperados e acessar bases de dados de grandes distâncias por meio de um telescópio elétrico conectado por uma linha telefônica, recuperando uma imagem do fac-símile que seria remotamente projetada em uma tela lisa. Essa noção de originais em rede foi definida como “links” por Otlet, a fim de descrever esse tipo de relacionamento. (WRIGHT, 2003).

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OTLET, P. Traité de documentation: le livre sur le livre: théorie et pratique. Bruxelles: Mundaneum, 1934. 37

“[...] funcionou no Palais du Cinquantenaire, em Bruxelas até 1940, vindo, o que restou após a invasão nazi, a ser transferido para a cidadezinha de Mons, Bélgica, no ano de 1998.” (SILVA, 2011, p. 5). O web site do Musée

Diante disso, Wright (2003) considera Otlet o antepassado esquecido da Arquitetura da Informação devido à sua preocupação em representar, organizar e apresentar a informação da melhor forma para os sujeitos informacionais, atribuindo a estes grande importância. O autor destaca ainda que Otlet imaginou além do que seria a rede mundial de computadores, a Web e o hipertexto ao idealizar “[...] um sistema simultaneamente ordenado e auto-organizado, e infinitamente reconfigurável pelo leitor ou pelo autor.” (WRIGHT, 2003, p. 5, tradução nossa38).

No trecho39 do último livro de Otlet (1935), Monde40, reproduzido por Wright

(2003), percebemos claramente seu posicionamento diante das infinitas possibilidades relacionadas à produção e ao acesso ao conhecimento universal, o que nos reporta hodiernamente para o contexto sociotécnico do ciberespaço, em que os sujeitos informacionais produzem, reproduzem, representam, organizam, armazenam, acessam e compartilham informação e conhecimento; geram um conteúdo intelectual colaborativo; e contribuem para a formação de comunidades virtuais e inteligência coletiva no ciberespaço.

É inegável a contribuição de Otlet para a sustentação dos pilares da Documentação que, por seu turno, acabaram por edificar a Ciência da Informação a partir de perspectivas que ampliaram a visão a respeito do documento e da prática profissional, mormente quanto à utilização de técnicas e de tecnologias para promover a produção, a disseminação e o acesso à informação e ao conhecimento.

Anos mais tarde, Vannevar Bush publicou o importante artigo “As we may think” que teve por objetivo incentivar a produção científica no pós-Segunda Guerra Mundial. Enfatizou a importância da ciência para a comunicação humana e vislumbrou o memex, um dispositivo que seria utilizado individualmente como um arquivo ou biblioteca mecanizados para uso pessoal. (BUSH, 1945).

Similar à Otlet, Bush imaginou uma tecnologia que possibilitasse o acesso a informações interconectadas, iniciando uma reflexão sobre o que, anos mais tarde, seria a

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[…] a system simultaneously ordered and self-organizing, and endlessly re-configurable by the individual reader or writer.

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Everything in the universe, and everything of man, would be registered at a distance as it was produced. In this way a moving image of the world will be established, a true mirror of his memory. From a distance, everyone will be able to read text, enlarged and limited to the desired subject, projected on an individual screen. In this way, everyone from his armchair will be able to contemplate creation, as a whole or in certain of its parts.

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OTLET, P. Monde: essai d’universalisme: connaissance du monde, sentiment du monde, action organisée et plan du monde. Bruxelles: Mundaneum, 1935.

rede mundial de computadores e o hipertexto. Isso pode ser visualizado a partir das principais características do memex resgatadas do texto de Bush: consiste de um escritório, análogo a uma mesa de trabalho, com telas, teclado, botões e alavancas, podendo ser operado a distância; possui grande capacidade de armazenamento de informações que poderão ser consultadas com grande velocidade e flexibilidade; suplemento ampliado e íntimo da memória, permitindo interconexões.

Rayward (1994) considera que Paul Otlet, conquanto não reconhecido como tal, foi precursor daqueles que contribuíram com projetos relacionados ao que conhecemos hoje como hipertexto, como o próprio Vannevar Bush e também Douglas Engelbart e Ted Nelson, sendo este último o responsável pelo termo, cunhado no início da década de 1960 a partir do projeto Xanadu (LÉVY, 1993).

O hipertexto influenciou a estrutura textual associativa, dinâmica, interativa, flexível e não-linear da World Wide Web, anos mais tarde, permitindo “[...] substituir as estruturas clássicas arborescentes da informação por estruturas mais ricas e mais complexas, organizadas em redes, mostrando um número infinito de caminhos, abertos a todas as navegações e interligando múltiplos objetos.” (LE COADIC, 2004, p. 60).

O cenário científico e tecnológico no pós-guerra, em que Bush se insere, é marcado pela explosão da informação, especialmente a partir dos anos 1950, gerando discussões e realização de eventos, dentre os quais se destaca a International Conference on Scientific

Information, realizada em 1958 na cidade de Washington. Esse evento marcou a

transformação da Documentação em Ciência da Informação. Desde então, outros eventos apontaram para discussões acerca da Ciência da Informação, bem como da influência das TIC para este campo científico. Em especial, as conferências do Georgia Institute of Technology, realizadas entre 1961 e 1962, apresentaram os primeiros resultados dos trabalhos realizados a fim de formular o que seria e do que se trataria efetivamente essa ciência (ROBREDO, 2003).

Harold Borko formulou uma das primeiras definições para a Ciência da Informação a partir das discussões realizadas nessas conferências, aperfeiçoando a definição apresentada anteriormente por Taylor (196641):

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TAYLOR, R. S. Professional aspects of information science and technology. In: CUADRA, C. A. (Ed.). Annual

Ciência da Informação é a disciplina que investiga as propriedades e o comportamento da informação, as forças que regem o fluxo de informação e os significados de processamento da informação, com vistas à otimização do acesso e do uso. Ela está preocupada com esse corpo de conhecimentos relacionados com a origem, coleção, organização, armazenamento, recuperação, interpretação, transmissão, transformação e utilização da informação. Isto inclui a investigação sobre representação da informação em sistemas naturais e artificiais, o uso de códigos para a transmissão eficiente da mensagem, bem como o estudo de dispositivos e técnicas de processamento da informação como computadores e seus sistemas de programação. [...] Ela tem tanto um componente de ciência pura, porquanto investiga seu objeto sem considerar sua aplicação, e um componente de ciência aplicada, visto que desenvolve serviços e produtos. (BORKO, 1968, p. 3, tradução nossa42).

Essa definição pode ser considerada a base da Ciência da Informação, pois apresenta muitos pontos que são abarcados nas pesquisas atuais, como a gestão dos fluxos informacionais; a comunicação da informação com utilização de ferramentas tecnológicas, com destaque às formas de representação e recuperação da informação; a abordagem dos sistemas auto-organizados, considerada por Borko (1968) um dos focos de investigação da área dentre outros. Além disso, o comportamento da informação e a otimização do uso e do acesso à informação parecem conferir uma preocupação com os sujeitos informacionais, os quais devem participar de todos os processos relacionados à estruturação de sistemas e ambientes informacionais.

As premissas de Borko (1968) permanecem nas abordagens conceituais conseguintes, as quais não apresentam diferenças substanciais. (SILVA; RIBEIRO, 2002). Todavia, a evolução da Ciência da Informação é demarcada por alguns momentos que concentram aspectos comuns no tocante ao seu objeto de investigação, às percepções investigativas e também à práxis e, a partir disso, é possível refletir acerca das perspectivas contemporâneas da área, considerando suas raízes, em especial a influência das TIC a partir das ações promovidas por Paul Otlet no seio da Documentação.

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Information science is that discipline that investigates the properties and behavior of information, the forces governing the flow of information, and the means of processing information for optimum accessibility and usability. It is concerned with that body of knowledge relating to the origination, collection, organization, storage, retrieval, interpretation, transmission, transformation, and utilization of information. This includes the investigation of information representations in both natural and artificial systems, the use of codes for efficient message transmission, and the study of information processing devices and techniques such as computers and their programming systems. […] It has both a pure science component, which inquires into the subject without regard to its application, and an applied science component, which develops services and products.

Com vistas a esses diferentes momentos, que preliminarmente podem ser considerados como paradigmas, versamos na subseção que segue a respeito do percurso paradigmático da Ciência da Informação tendo como respaldo os autores Rafael Capurro (2003), Aldo Barreto (2006) e Armando Malheiro e Fernanda Ribeiro (2011).