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CAPÍTULO II – DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS COMPOSTOS VN, NN, NA,

1.1 Antecedentes históricos: breves considerações

Trata-se de um sistema de composição praticamente inexistente em latim (DARMESTETER, 1894 [1874], p. 169, 274), fornecendo raros exemplos que, geralmente, são formas imitadas do grego (e com feição de composto morfológico), como UERSI-PELLIS ‘o

que muda de pele’, UERSI-CAPILLUS ‘o que muda (a cor) o cabelo’, LAUDI-CENUS ‘o que faz o

elogio do jantar’, FULCI-PEDIA ‘o que sustenta os pés’ etc76 (MEILLET; VENDRYES, 1953

[1924], p. 429)77. De fato, se a ordem básica do latim é SOV, a ordem lógica é NV (como em compostos do tipo MANŪTENĒRE78), com N representando o complemento de V, e não VN79. A

ordem SVO corresponde à ordem determinado + determinante, enquanto a ordem SOV corresponde à ordem determinante + determinado (SCALISE, 1994, p. 131). No entanto, esse tipo composicional é bastante produtivo nas línguas românicas, diferentemente do que ocorre nas línguas germânicas80

, e constitui um forte argumento em favor da relativização da noção

76 Mattoso Câmara Jr. (1979, p. 213) remete esse processo ao latim vulgar tardio, fazendo também referência a

uma provável influência grega.

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Para Lloyd (1968, p. 11), os compostos VN das línguas românicas não podem ser derivados diretamente de fontes latinas; pelo contrário, eles devem ser considerados uma criação independente.

78 Klingebiel (1989) estudou os compostos NV (cujo padrão tem em MANŪTENĒRE – de MANUS ‘mão’ + TENERE

‘ter’, literalmente ‘ter na mão’ –, uma “leader word”) em quatro línguas românicas – francês, occitano, catalão e espanhol – utilizando um corpus do séc. XVI e outro do séc. XX. A autora observou a expansão desses compostos no occitano e no catalão pós-medieval, diferentemente do que ocorreu em francês e espanhol, afirmando, em virtude desse fato, que a alteração da ordem SOV para SVO não ameaçou a sobrevivência desse modelo. Para a autora, aspectos relativos ao campo semântico foram importantes na preservação dessas formas: «in the modern period as well, close investigation of the semantic fields into which these compounds fall is vital to an understanding of continued vitality of N + V after the disappearance of Latin in the very late medieval period of each vernacular» (KLINGEBIEL, 1989, p. 7) [Trad.: «também no período moderno, investigação cuidadosa dos campos semânticos em que esses compostos recaem é crucial para uma compreensão da continuada vitalidade dos compostos NV depois do desaparecimento do latim no fim do período medieval de cada vernáculo»]. Nesse tipo de construção, o valor primitivo do determinante nominal era instrumental, sendo MANUS e CAPUT os constituintes nominais mais comuns (KLINGEBIEL, 1989, p. 61). Namer e Villoing (2007) também estudaram os compostos NV, mas somente da língua francesa, confrontando-os com os compostos VN dessa mesma língua. Observaram que o padrão NV é bem menos restritivo do que o padrão VN, em termos categoriais, de tipos de processos descritos pelo verbo e de comportamento semântico do nome.

79 Piera e Varela (1999, p. 4374; 4383) referem que, como na sintaxe, em certas estruturas léxicas é a posição de

um determinado constituinte que se torna fundamental na identificação da relação de dependência que estabelece tal constituinte com o outro da mesma palavra, como, por exemplo, cubrecama (em port., cobre-leito ‘colcha’), em que o segundo constituinte é identificado como complemento do primeiro. Por outro lado, do ponto de vista de uma “gramática da palavra”, não se dá a relação NOME (Sujeito) + VERBO: *máquinafila, mas afilalápis.

80 Como exemplos de compostos VN do inglês, Booij (2005, p. 79) cita pickpocket ‘bate-carteira’ (= ‘batedor de

de núcleo nos estudos morfológicos81. O segundo termo funciona, nessa estrutura, como complemento do verbo, apresentando paralelismo com o sintagma verbal82

. Obtém-se como produto composicional um substantivo ou um adjetivo, ou ainda, uma construção adverbial, com significado modal, integrada numa estrutura com uma preposição: à queima-roupa, por exemplo (VAL ÁLVARO, 1999, p. 4788).

Os registros mais antigos de compostos VN em língua vernácula remontam à Itália (labamanos, séc. IV) (PRATI, apud LLOYD, 1968, p. 11) e à Espanha (Speraindeo, 621) (LLOYD, 1968, p. 11-12) . Esses dados, no entanto, não são muito fiáveis, conforme deixa perceber Lloyd. Quanto aos dados da língua francesa, Darmesteter (1894 [1874], p. 148, 150) identifica em dois topônimos Tenegaudia (séc. IX) e Tornavent (séc. X) formas compostas de Verbo + Nome. Infelizmente, para a língua portuguesa não se conhecem estudos diacrônicos sobre esse tipo de composição. De uma forma geral, os compostos VN parecem expandir-se a partir do século VIII, como apontam os dados referentes ao italiano e ao espanhol (LLOYD, 1968, p. 11-12).

Parece que os compostos VN referiam-se, num período mais recuado das línguas, a apelidos (“nicknames”) de pessoas, com conteúdo geralmente anedótico, constituindo, portanto, formas bastante expressivas83

. Essa expressividade também se estendia aos nomes de lugar84. A partir dos apelidos devem ter se desenvolvido os nomes referentes a tipos de ocupação, pois, segundo Lloyd, apenas no século XII começam a ser encontrados registros destes (Escornavacas, Torcefeces, Descalza Boves). A partir do século XIII, compostos VN

81 Villoing (2002, p. 66) refere que alguns autores, como Di Sciullo e Williams (1987) e Zwanenburg (1992), não

interpretam os compostos VN como construções morfológicas porque as suas propriedades não são expressas por meio de um núcleo morfológico.

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Referindo-se ao mecanismo em indo-europeu, Meillet e Vendryes (1953 [1924], p. 428) lembram que o primeiro termo podia ter «le caractère d’un thème verbal, auquel le second terme servait de régime» [Trad.: «o caráter de um tema verbal, ao qual o segundo termo servia de regime»].

83 Vasconcellos (1928, p. 278-281) refere que «[m]uitas expressões substantivas da língua comum são

constituidas por frases, sérias ou ironicas, do tipo de verbo (no imperativo) & nome (no acusativo), ás vezes aliteradas, por exemplo, bate-folha, ganha-pão, espirra-canivetes (metafora muito viva), mata-mouros, fura- bolos, escorropicha (ou escorripicha)-galhetas ‘sacristão’». Cita outras ocorrências, como Fura-covas, Salta- pocinhas, Papa-unhas, Mata-gatos, Papa-arroz, Defeca-sangue, Matafome etc.

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Como registra Lloyd (1968, p. 21), «early v-c compounds in Spain, as in other countries, are found as the names of witnesses to diplomas and legal charters and, at about the same time, as place names» [Trad.: «antigos compostos VN na Espanha, como em outras regiões, são encontrados como nomes de testemunhas para diplomas e documentos legais e, ao mesmo tempo, como nomes de lugares»]. Ainda segundo Lloyd (1968, p. 22), a existência de compostos referentes a plantas nos dialetos moçárabes constitui uma forte evidência de que a restrição do padrão VN a pessoas e lugares deve ter sido quebrada muito antes (thorna-xole ‘girassol’ e vinze- thóxicox ‘espécie de planta venenosa de uso medicinal’, por exemplo, atestados no séc. X, podem ter se originado até mesmo antes). Quanto à natureza semântica das primeiras formações VN em espanhol, Lloyd afirma que tanto nomes de lugar como de pessoas apresentam-se geralmente como neutros e meramente descritivos, não predominando as conotações humorísticas.

referentes a instrumentos85 começam a ser encontrados nos textos (picamuelas86 e mondadientes87

, XIII; alçapié e pujavante, XIV), e no século seguinte surgem compostos referentes a artigos do vestuário (cortapeu ‘saia’, guardabraz ‘peça da armadura destinada a cobrir e proteger o braço’, tirabraguero ‘espécie de bandagem ou ligadura’), e, ainda, a noções abstratas (escombraduenyas ‘de pouco valor’) (LLOYD, 1968, p. 22-23)88.