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CAPÍTULO I – (RE)DEFININDO OS COMPOSTOS

4.1 Compostos e colocações

As colocações, como se sabe, apresentam relativa composicionalidade semântica63 e são mais flexíveis sintaticamente.

Do ponto de vista sintático, o continuum estabelecido no âmbito da fraseologia situa as colocações como processos que apresentam menos restrições sintáticas do que as expressões idiomáticas. Dessa forma, é possível a inserção de outros elementos lingüísticos entre os itens que constituem a combinação: mudança radical: A mudança não foi assim tão radical como ela tinha anunciado; dar um passeio: Dar freqüentemente um passeio (IRIARTE SANROMÁN, 2001, p. 139).

Considerando-se esse aspecto, a distinção entre compostos (opacos morfossintaticamente) e colocações parece simples. No entanto, os testes de inserção de material lexical entre os constituintes podem, em alguns casos, não se mostrar cabais, pois vinculam-se não apenas a regras de gramaticalidade do sistema, mas também à intuição gramatical do falante.

Em relação aos termos empregados na descrição de uma colocação, distinguem-se a

base (ou palavra-chave), que é o elemento determinante no sentido em que é ele quem

determina a escolha do outro constituinte, selecionando neste uma acepção especial, e o

colocativo (ou colocado), que é o elemento selecionado. No nível das relações sintáticas, no

entanto, o papel de determinante é do colocativo. Nessa relação, baseada no princípio da

63 De acordo com Brinton e Akimoto (1999, p. 8), «[l]ike idioms, collocations are groups of lexical items which

repeatedly or typically cooccur, but unlike idioms, their meaning can usually be deduced from the meanings of their parts» [Trad.: «como expressões idiomáticas, colocações são grupos de itens lexicais que repetidamente ou tipicamente co-ocorrem, mas diferentemente de expressões idiomáticas, o significado delas habitualmente pode ser deduzido do significado de suas partes»].

hierarquização (semântica) dos constituintes, destaca-se a importância que recebe o papel do colocativo64

. Será este elemento quem vai atribuir ao todo um caráter convencional, não natural ou não esperado, portanto. Isso equivale a dizer que o termo modificador recebe um sentido diferente do sentido básico ou esperado. Por exemplo, na construção do inglês strong tea, strong recebeu um sentido diferente «rich in some active agent» [«rico em algum agente ativo»] do sentido básico «having great physical strength» [«com grande força física»]. Estruturalmente, um determinante como powerful ‘poderoso’ poderia ser empregado no lugar de strong (*powerful tea), mas o sentido diferenciador adquirido por strong bloqueia o uso de outro adjetivo quase sinonímico65. Como na literatura americana sobre os compostos, aqui também enfatizam-se as relações hipotáticas entre os constituintes, estando excluídos, pelo menos em grande parte das considerações sobre as colocações, relações paratáticas ou coordenativas66. Ou seja, mais uma vez a demasiada importância que é dada ao núcleo na análise desse tipo de construções obscurece outros tipos de relações sintático-semânticas que podem ocorrer também no nível de uma colocação.

No tratamento dos compostos, as relações intra-constituintes são estabelecidas a partir da noção de núcleo, avançando-se para as noções de núcleo formal e de núcleo semântico, como desenvolvido em Scalise e Guevara (2006).

A noção de núcleo constitui uma das principais áreas de interação entre sintaxe e morfologia67, tornando-se crucial nos estudos morfológicos, e, dessa forma, nos estudos sobre os compostos. No entanto, a importância da aplicação do conceito de núcleo no estudo dos produtos composicionais foi relativizada pela constatação da existência de estruturas compositivas coordenativas68

e de estruturas compositivas do tipo VN. É comum encontrar

64 Também nos compostos é inegável a importância do papel do não-núcleo na constituição do produto

composicional, embora muitos estudos sobre o tema prendam-se a teorias focalizadas no conceito de núcleo morfológico, a par do conceito de núcleo sintático.

65 Exemplo de Halliday (1966, p. 150), apud Manning; Schütze (1999).

66 Conforme aponta Zuluaga (2002, p. 60), «[e]n cambio, construcciones fijas cuyos componentes están en

relación de coordinación, por ejemplo, amigos y enemigos, sano y salvo, íngrimo y solo, única y exclusivamente no se consideran como colocaciones» [Trad.: «por outro lado, construções fixas cujos componentes estão em relação de coordenação, por exemplo, amigos e inimigos, são e salvo, íngreme e só, única e exclusivamente, não se consideram como colocações»] . No entanto, como referido por Athayde (a publicar), há autores que consideram essas construções em que os elementos estabelecem uma relação de coordenação como colocações. Mas embora mantenham o caráter transparente da sua semântica, essas combinações de tipo paratático parecem bloquear sintaticamente a alteração da ordem dos constituintes.

67 O conceito de núcleo foi aplicado por Bloomfield (1933) na classificação de construções lingüísticas,

correspondentes a elementos «at least as big as morphemes» [Trad.: «pelo menos tão grandes como morfemas»] (ten HACKEN, 1994, p. 38).

68 Para Lang (1997, p. 99), esse tipo de formas demonstra que a presença de um elemento nuclear não é

condição necessária para que uma formação adquira o estatuto de composto, diferentemente do que defendem algumas teorias. Adams (2001, p. 3; 82), por exemplo, seguindo o princípio da necessidade de um núcleo no composto (como na sintaxe) considera, para a língua inglesa, que expressões contendo elementos coordenados

uma classificação dos compostos em endocêntricos e exocêntricos69, baseada na noção de núcleo, refletindo, num entendimento que é o mais comum, o seu grau de transparência semântica. Na realidade, esse entendimento decorre do fato de o núcleo ser responsável pelas propriedades morfológicas e sintático-semânticas do produto composicional. Portanto, um composto sintática e semanticamente endocêntrico vai pertencer à mesma classe gramatical do seu núcleo referencial e representar uma especialização deste, constituindo uma relação de hiperonímia e hiponímia. Nesse sentido, um composto endocêntrico prevê uma certa composicionalidade semântica. Os compostos sintática e semanticamente exocêntricos, por outro lado, além de serem destituídos do elemento responsável pelas propriedades gramaticais do composto, não estabelecem, entre os seus elementos, uma relação de hiperonímia e hiponímia.

Sintaticamente, as noções de endocêntrico e exocêntrico são articuladas principalmente com a natureza subordinativa do composto, ou seja, a distinção entre núcleo e não-núcleo se dá com base nas relações de dependência entre ambos. No que se refere às construções coordenativas, é consenso que se trata, na verdade, de um composto com duas possibilidades: ambos os constituintes podem apresentar-se como núcleo ou nenhum dos constituintes pode se apresentar como núcleo.

Antes de traçar a relação entre compostos e colocações, é preciso atentar, em primeiro lugar, para a dupla vertente dos compostos: compostos criados e compostos adquiridos. Os compostos criados nascem da vontade do falante que, nessa perspectiva, tem o domínio das regras ou dos padrões de formação de compostos e usa esse conhecimento para cunhar uma nova palavra. Os compostos adquiridos, por outro lado, somente existem por força da consagração pelo uso freqüente ao longo do tempo. Trata-se de combinações lexicais que se tornam habitualizadas, passando a ser associadas a um determinado recorte da realidade e, conseqüentemente, a ser guardadas na memória como uma unidade não decomponível. Ao

são frases: «In coordinative expressions for example, such as [...] ‘doctor-patient relationship’, ‘public-private partnership’, [...] neither element is dominant: these are phrases, not complex words» [Trad.: «Em expressões coordenadas como, por exemplo, [...] relação doutor-paciente, parceria público-privado [...], nenhum elemento é dominante: essas são frases, não palavras complexas»]; «Noun + noun examples in which both elements denote roles, like author-illustrator, producer-director are arguably also phrases, not complex words» [Trad.: «Exemplos de compostos NN em que ambos os elementos denotam papéis, como autor-ilustrador, produtor- diretor, são defensavelmente frases também, não palavras complexas»]. Esse é o pensamento comum nos estudos sobre a composição inglesa.

69 Segundo Bustos Gisbert (1986, p. 95), a classificação dos compostos como “endocêntricos” e “exocêntricos” é

muito antiga e foi alvo de muitas formulações ao longo da história lingüística. Nessas formulações, a relação existente entre o composto e o referente sempre esteve presente. Assim, enquanto um composto endocêntrico representa uma especialização do seu núcleo referencial, constituindo uma relação hiperonímia-hiponímia, um composto exocêntrico designa uma realidade que não é expressa por nenhum dos seus elementos.

nosso ver, os compostos adquiridos, com a estrutura NA/AN e NprepN, e as colocações com a mesma configuração (nominais, com sentido referencial70

) apresentam uma identidade genética, uma vez que a estabilidade formal e semântica de ambos depende do uso71. Contudo, a natureza prototípica dos compostos e das colocações situa esses dois fenômenos em patamares distintos: os compostos, quanto mais opacos sintática e semanticamente, mais prototípicos são, enquanto que as colocações, diferentemente, quanto menos opacas sintática e semanticamente, mais prototípicas são72.