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Antes de Julia Kristeva: Mikhail Bakhtin

Em 1966, Julia Kristeva, a partir de escritos de Saussure e Bakhtin, escreveu seu artigo “A palavra, o diálogo, o romance” e trouxe à tona, pela primeira vez, a palavra intertextualidade para conceituar a relação entre textos. Kristeva partiu da ideia que Mikhail Bakhtin havia apresentado em sua obra Problemas da Poética de Dostoiévski, na qual estão teorizados dois de seus conceitos-chave: dialogismo e polifonia. A obra do filósofo russo trata da conceptualização dessas duas ideias, as quais dizem respeito à interação de diversas vozes na obra de Dostoiévski. Paulo Bezerra, responsável pela tradução e prefácio da edição brasileira da obra de Bakhtin, escreve:

O dialogismo, essência do pensamento filosófico bakhtiniano e fundamento de Problemas da Poética de Dostoiévski, permite acompanhar as tensões no interior da obra literária, as relações interdiscursivas e intersubjetivas, as intenções ocultas das personagens, o diálogo entre culturas como essência da literatura, a luta entre tendências e "escolas literárias" entre vozes como pontos de vista sobre o mundo, o homem e a cultura. Na ótica do dialogismo, a consciência não é produto de um eu isolado, mas da interação e do convívio entre muitas consciências, que participam desse convívio com iguais direitos como personas, respeitando os valores dos outros que igualmente respeitam os seus. Eu tomo consciência de mim mesmo e me torno eu mesmo só me revelando para o outro, não posso passar sem o outro, não posso construir para mim uma relação sem o outro, que é a realidade que, por minha própria formação, trago dentro de mim, exerce um profundo ativismo em relação a mim (BEZERRA, 2015, p. XXII) Bakhtin trouxe, em seu Problemas da Poética de Dostoiévski, uma nova forma de se entender a língua, partindo dos pressupostos de Saussure. Ferdinand de Saussure descrevia a estrutura da língua como um sistema fechado, como uma instituição. Assim como descreve Bezerra, “Bakhtin não considera que os esquemas de Saussure sejam falsos e inaplicáveis a certos momentos da realidade. Mas está interessado no diálogo, na comunicação pelo discurso” (BEZZERA, 2015, p. XIII). Graham Allen também argumenta sobre:

Saussure, em outras palavras, no intuito de achar algumas regras generalizáveis dentro do estudo da língua, argumenta que apenas a linguagem, em seu sentido abstrato, que apenas as normas e convenções presumidas a estruturar a linguagem em qualquer momento do tempo histórico, podem se tornar objeto do estudo linguístico29 (ALLEN,

2000, p. 18, tradução nossa).

29 No original: “Saussure, in other words, in order to find some generalizable rules within the study of language,

argues that only language in its abstract sense, only the norms and conventions presumed to structure a language at any moment of historical time, can become the object of linguistic study”.

Para Bakhtin, os conceitos de dialogismo e polifonia são o que torna a obra de Dostoiévski tão rica e distinta. O filósofo empresta da música o termo polifonia que, resumidamente, caracteriza um conjunto de sons ou vozes dentro de uma melodia. Na obra do escritor russo, há, de acordo com Bakhtin, a presença da polifonia:

A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a

multiplicidade de caracteres e destino que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus

mundos que aqui se combinam, numa unidade de acontecimento,

mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas

objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante (BAKHTIN, 2015, p. 4 – 5, grifos do autor).

A polifonia, muitas vezes, é confundida ou usada como sinônimo de dialogismo pela grande parte das pessoas, mas é preciso ter em mente que esses conceitos não podem ser adotados como conceitos que exprimem o mesmo sentido. As diferenças entre essas duas ideias serão discutidas mais adiante. “Essa polifonia em que todas as vozes ressoam de um modo igual implica o dialogismo: os enunciados das personagens dialogam, com os do autor e ouvimos constantemente esse diálogo nas palavras, lugares dinâmicos onde se efetuam as trocas” (SAMOYAULT, 2008, p. 19).

O dialogismo é apresentado por Bakhtin como uma forma artística inaugurada por Dostoiévski. Para o filósofo:

Desse modo, todos os elementos da estrutura do romance são profundamente singulares em Dostoiévski; todos são determinados pela tarefa que só ele soube colocar e resolver em toda a sua amplitude e profundidade: a tarefa de construir um mundo polifônico e destruir as formas já constituídas do romance europeu, principalmente do romance

monológico (homofônico) (BAKHTIN, 2015, p. 6, grifos do autor).

E, mais adiante, Bakhtin complementa:

No romance polifônico de Dostoiévski, o problema não gira em torno da forma dialógica comum de desdobramento da matéria nos limites de sua concepção monológica no fundo sólido de um mundo material uno; o problema gira em torno da última dialogicidade, ou seja, da dialogicidade do último todo. Já dissemos que, neste sentido, o todo dramático é monológico; o romance de Dostoiévski é dialógico. Não se constrói como o todo de uma consciência que assumiu, em forma objetificada, outras consciências, mas como o todo da interação entre várias consciências dentre as quais nenhuma se converteu definitivamente em objeto da outra (BAKHTIN, 2015, p. 18 – 19).

Ou seja, o dialogismo é a forma de linguagem utilizada por Fiódor Dostoiévski, a maneira pela qual o escritor encontrou para fazer com que as vozes (polifonia) fossem integradas às suas obras. Assim como destaca Marcuzzo (2008, p. 10):

O dialogismo define as relações linguageiras, as práticas discursivas e, mais do que isso, a visão de mundo de Bakhtin. Já a polifonia se refere à multiplicidade de vozes em um texto, seja ele literário ou não. A polifonia pressupõe uma multiplicidade de mundos, ou seja, vários sistemas de referência, vozes plenivalentes e pontos de vista ideológicos acerca do mundo (BAKHTIN, 2008, p. 38-39).

Dessa forma, Bakhtin descreve em Problemas da Poética de Dostoiévski uma nova forma artística e literárias que foi apresentada pelo escritor russo. Bakhtin tinha em mente entender os mecanismos que tornavam possível a ideia de diversas vozes dentro de um texto e da interação dessas vozes com aquilo que rodeia a obra. O dialogismo é parte integrante de todo diálogo, já que, no momento em que a língua está sendo posta em prática, os sujeitos que a realizam estão em constante ligação com suas “bagagens” externas que estão relacionadas a sua condição histórica e social. O romance de Dostoiévski coloca em prática o dialogismo por meio da polifonia, ao fazer com que suas personagens possuam uma multiplicidade de vozes.

Apesar de Kristeva, no artigo em que introduz a palavra intertextualidade, partir das ideias expostas por Mikhail Bakhtin, é importante ressaltar que Paulo Bezerra, crítico e tradutor que prefaciou a obra do filósofo russo, não acredita que Kristeva fez bom uso dos conceitos que foram introduzidos em Problemas da Poética de Dostoiévski:

[...] Kristeva lhe atribui uma “dinamização do estruturalismo” e manterá sempre a visão entre a maneira bakhtiniana de pensar o método estruturalista, com sua ênfase reducionista no texto e na personagem literária como função, ao passo que a ênfase de Bakhtin é no discurso e na personagem como sujeito consciente de seu próprio discurso (BEZERRA, 2015, p. XIII)

Para Paulo Bezerra, Kristeva erra ao utilizar os termos de Bakhtin em uma abordagem puramente “estruturalista” e esquece do principal fator que levou Bakhtin a conceituar os dois termos descritos anteriormente: o filósofo russo não desejava perpetuar as ideias de Saussure de linguagem como mecanismo fechado, mas sim como um sistema que envolvia fatores externos.

Kristeva utiliza os termos de Bakhtin em sua obra, mas sempre deixa claro que eles foram parte da construção de sua ideia de intertextualidade. Quando a filósofa búlgaro-francesa retoma os conceitos apresentados por Bakhtin, ela enfatiza o fato de que eles foram pensados

levando em consideração aquilo que o cerca e aquilo que faz parte de sua constituição. Assim como já assinalado anteriormente, Kristeva acredita que a ligação entre os textos, da qual ela chama de intertextualidade, não está ligada somente aquilo a estrutura da obra, mas também daquilo que a cerca, que entrelaça a ideia de que as obras não são tidas como “sozinhas no universo artístico”, mas como interações dialógicas com outras obras e elementos sociais e históricos.

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