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A concepção da palavra: Julia Kristeva

A literatura se escreve certamente numa relação com o mundo, mas também apresenta-se numa relação consigo mesma, com sua história, a história de suas produções, a longa caminhada de suas origens. Se cada texto constrói sua própria origem (sua originalidade), inscreve-se ao mesmo tempo numa genealogia que ele pode mais ou menos explicitar (SAMOYAULT, 2008, p. 9, grifos da autora).

A intertextualidade pode ser apresentada ao universo teórico literário em 1966 com a filósofa e crítica literária búlgaro-francesa Julia Kristeva, em um artigo intitulado “A palavra, o diálogo, o romance”, publicado na revista Tel Quel. O artigo de Kristeva foi escrito após as considerações feitas por Mikhail Bakhtin em seu livro Problemas da Poética de Dostoiévski, obra essa que será discutida mais adiante. Kristeva inicia sua argumentação21 da seguinte forma:

Face a esta concepção espacial do funcionamento poético da linguagem, é necessário definir, primeiramente, as três dimensões do espaço textual, onde vão se realizar as diferentes operações dos conjuntos sêmicos e das sequências poéticas. Essas três dimensões são: o sujeito da escritura, o destinatário e os textos exteriores (três elementos em diálogo) (KRISTEVA, 1974, p. 63).

Logo no começo do seu artigo, a autora apresenta para o leitor os pilares mais importantes e significativos da construção do conceito de intertextualidade. É necessário que um texto seja lido de forma com que aquilo que está escrito esteja conectado com elementos relacionados ao

21 Para esse estudo, o texto foi retirado do livro Introdução à Semánalise de Julia Kristeva publicado no Brasil

diálogo intertextual. Ao apresentar três elementos essenciais para o funcionamento de uma obra, Kristeva inicia a discussão que culminará no entendimento do conceito de intertextualidade.

A autora segue: "[...] a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (de textos) onde se lê, pelo menos, uma outra palavra (texto)" (KRISTEVA, 1974, p. 64). É possível depreender dessa passagem uma breve introdução à intertextualidade. Um texto (ou obra literária) não está contido somente em si mesmo, mas invoca diversas perspectivas relacionadas a uma rede de intertextos que se conectam e se expandem. Para que um texto possa ser lido como parte integrante de outro(s) texto(s) é preciso que os três elementos apontados anteriormente por Kristeva estejam entrelaçados em si.

Kristeva prossegue sua discussão apontando questões referentes ao dialogismo e a polifonia de Bakhtin, empregando os conceitos discutidos pelo filósofo russo para distinguir certas construções relacionadas à intertextualidade e à forma como a obra de Mikhail Bakhtin impactou na composição da ideia de intertextualidade da própria Kristeva. A autora esclarece como o valor e o significado de uma palavra podem ser modificados e reintegrados nas obras intertextuais: "Mas o autor pode se servir da palavra de outrem, para nela inserir um sentido novo, conservando sempre o sentido que a palavra já possui. Resulta daí, que a palavra adquire duas significações, que ela se torna ambivalente" (KRISTEVA, 1974, p. 72, grifo da autora). Tal passagem logo pode ser remetida à icônica frase proferida por Lúcifer em Sandman na qual o anjo caído retoma as palavras de John Milton: “‘Ainda assim, melhor reinar no Inferno do que servir no Paraíso’, não é verdade, pequeno fraticida?” (GAIMAN, 2011, p. 57, grifos do autor). Essa citação do Paraíso Perdido adquire, assim como explana Kristeva, uma nova significação, que dialoga com o contexto e as personagens que estão sendo descritas e mostradas por Neil Gaiman, de modo que acrescenta e altera seus próprios sentidos e as possibilidades de sentido do poema miltônico.

A discussão avança construindo sua argumentação baseada em conceitos provindos de Saussure e Bakhtin. Kristeva utiliza a ideia de significante e significado em uma tentativa de criar sua própria conceptualização sobre a relação entre intertextos. Para a autora, a cadeia de significados contidos em uma obra é ilimitada e depende daquele que lê, do destinatário (o leitor/apreciador). Kristeva foge das construções trazidas pela semiótica a partir das ideias de Saussure para criar uma nova forma de entender a Arte (em especial, a Literatura) e constrói a ideia da Semanálise, “Termo de Kristeva para caracterizar sua abordagem semiótica. Ela a

define como ‘uma crítica de significado, de seus elementos e suas leis (Kristeva, 1980: 4)”22

(ALLEN, 2000, p. 218, tradução nossa).

No livro Intertextuality, Grahaam Allen explana a forma como Kristeva utiliza os conceitos trazidos por Saussure na construção da sua ideia de intertextualidade:

Apesar dos pontos acima, é verdadeiro o suficiente dizer que a base sobre a qual diversas das principais teorias de intertextualidade são desenvolvidas nos leva de volta à noção de signo diferencial [differential sign] de Saussure. Se todos os signos são de alguma maneira diferenciais, eles podem ser entendidos não apenas como naturalmente não-referenciais, mas também como ofuscado por um vasto número de relações possíveis23 (ALLEN, 2000, p. 11, tradução

nossa).

Na passagem acima, Allen explicita a maneira como pontos principais da teoria de Saussure circundam e são remanejados por Kristeva. Para a filósofa, a rede de referenciais possui relações internas e externas que se multiplicam criando novas formas significativas. Kristeva traz à luz a ideia de Saussure a fim de demonstrar como a intertextualidade é criada a partir de diversos referenciais que fazem parte do entrecruzamento entre a relação significante e significado.

Allen continua: “Isso também deve evitar o fato de que significantes são plurais, repletos de sentido histórico, orientados não tanto para significados estabilizados como grande número de significantes”24 (ALLEN, 2000, p. 32, tradução nossa). Ao trazer à tona a noção de que os significantes possuem um sedimento histórico, Kristeva demonstra a forma como os textos estão intrinsicamente ligados uns aos outros devido às suas ligações constantes. Retomando o que Aristóteles escreve acerca da imitação, tem-se aqui uma explanação acerca da construção de textos que possuem uma correlação com outros textos, criando um elo constante entre as obras.

Em Sandman é possível aprofundar e “escavar” os sentidos múltiplos que o permeiam. Assim como explanado brevemente no capítulo anterior25, as relações entre o enredo de Neil Gaiman com múltiplas obras inseridas no universo literário é o que constrói e reconstrói o imaginário ficcional contido nessa obra. Trazendo personagens que pertencem à história da

22 No original: Kristeva’s term to characterize her approach to semiotics. She defines it as a ‘critique of meaning,

of its elements and its laws’ (Kristeva, 1980: 4).

23 No original: “Despite the above points, it is true enough to say that the basis upon which many of the major

theories of intertextuality are developed takes us back to Saussure’s notion of the differential sign. If all signs are in some way differential, they can be understood not only as non-referential in nature but also as shadowed by a vast number of possible relations”.

24 No original: “It must also evade the fact that signifiers are plural, replete with historical meaning, directed not

so much to stable signifieds as to a host of other signifiers”.

literatura, Gaiman foi capaz de ressignificar palavras e contextos através de sua construção ficcional.

Grahaam Allen continua sua explanação a respeito de como Kristeva elaborou seus escritos acerca da intertextualidade. A filósofa não se baseou somente nos escritos de linguistas e filósofos como Mikhail Bakhtin e Ferdinand de Saussure, mas buscou também em teorias marxistas e freudianas ideias que fariam parte do surgimento da palavra intertextualidade, já que, até o momento de suas publicações, essa palavra não havia sido apresentada:

Combinando uma atenção marxista sobre produção ou “trabalho” com análise freudiana do “trabalho” (do sonho), Kristeva ressalta que não é apenas o objeto de estudo que está “em processo”, o processo de estar sendo produzido, mas também o sujeito, o autor, leitor ou analista. Autor, leitor ou analista participam de um processo de produção contínua, estão “em processo/em juízo” (le sujet-en-procès), sobre o texto26 (ALLEN, 2000, p. 34, tradução nossa).

Allen argumenta que, para Kristeva, o processo de “produção contínua” é realizado a partir da ativa interação entre o autor e o leitor. Para que esse processo se dê, é importante que o leitor do texto esteja previamente de acordo com os referenciais trazidos pelo autor. Porém, um texto pode ser lido por qualquer pessoa, mesmo que esta não esteja de acordo com o material que foi levantado na construção da obra. É possível, também, que o leitor (ou analista, de acordo com Graham Allen) traga, de acordo com sua própria bagagem intelectual, outros textos que possam não ter sido pensados pelo autor no momento da concepção de sua obra.

Autores não criam seus textos a partir de suas próprias mentes originais, mas compilam estes de textos pré-existentes; dessa forma, como Kristeva escreva, um texto é “uma permutação de textos, uma intertextualidade no espaço de um texto dado”, no qual “diversas afirmações, tiradas de outros textos, se entrecruzam e neutralizam um ao outro” (ibid: 36). Textos são feitos do que às vezes foi determinado como “o texto cultural (ou social)”, todos os distintos discursos, modos de falar e dizer, estruturas institucionalmente sancionadas e sistemas os quais produzem o que chamamos cultura. Nesse sentido, o texto não é um objeto individual, isolado, mas, ao invés disso, uma compilação de textualidade cultural. Texto individual e texto cultural são feitos do mesmo material textual e não podem ser separados um do outro27

(ALLEN, 2000, p. 35 – 36, tradução nossa).

26 No original: "Combining a Marxist attention to production or ‘work’ with the Freudian analysis of (dream) -

‘work’, Kristeva stresses that it is not merely the object of study that is ‘in process’, the process of being produced, but also the subject, the author, reader or analyst. Author, reader or analyst join a process of continual production, are ‘in process/on trial’ (le sujet-en-procès), over the text.”

27 No original: "Authors do not create their texts from their own original minds, but rather compile them from

preexistent texts, so that, as Kristeva writes, a text is ‘a permutation of texts, an intertextuality in the space of a given text’, in which ‘several utterances, taken from other texts, intersect and neutralize one another’ (ibid: 36).

Novamente, é possível perceber o cuidado que Kristeva teve ao aproximar a teoria literária/linguista de teorias relacionadas à cultura e ao social. Nessa passagem, Allen reforça a ideia de que o que Kristeva entende como o texto dialoga constantemente com aquilo que é “externo” a ele. A filósofa deixa claro que nenhum texto funciona somente como algo singular e fechado. Para ela, a concepção de uma obra depende de seus diversos diálogos com aquilo que está ao seu redor.

A comunicação entre autor e leitor é sempre desempenhada através de uma comunicação ou relação intertextual entre palavras poéticas e o estado precedente dessas em textos poéticos do passado. Autores comunicam aos leitores no mesmo momento em que suas palavras ou textos comunicam a existência de textos passados em seu interior28

(ALLEN, 2000, p. 39, tradução nossa).

Tiphaine Samoyault também traça o percurso que fez com que Kristeva chegasse ao termo intertextualidade. “‘O eixo horizontal (sujeito-destinatário) e o eixo vertical (texto- contexto) coincidem para desvelar um fato maior: a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (de textos) em que se lê pelo menos uma outra palavra (texto)’” (KRISTEVA apud SAMOYAULT, 2008, p. 16). Visualmente, o conceito de intertextualidade poderia ser colocado da seguinte forma:

Samoyault argumenta que a conceptualização do termo intertextualidade inaugurada por Kristeva “trata-se naquele momento de romper com a tradicional crítica das fontes que considerava os mesmos fenômenos, mas de um ponto de vista estritamente biográfico ou psicológico [...]” (SAMOYAULT, 2008, p. 17).

Texts are made up of what is at times styled ‘the cultural (or social) text’, all the different discourses, ways of speaking and saying, institutionally sanctioned structures and systems which make up what we call culture. In this sense, the text is not an individual, isolated object but, rather, a compilation of cultural textuality. Individual text and the cultural text are made from the same textual material and cannot be separated from each other”.

28 No original: "The communication between author and reader is always partnered by a communication or

intertextual relation between poetic words and their prior existence in past poetic texts. Authors communicate to readers at the same moment as their words or texts communicate the existence of past texts within them”.

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