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O anti-intelectualismo de Kant: intuições sem conceitos seriam cegas no sentido em que não

No documento THE BOUNDS OF SENSE (páginas 83-91)

compreenderíamos o que elas representam

A distinção fundamental entre as formas intuitiva e conceitual de representação pode ser depreendida da oposição formulada por Kant entre os verbos conhecer (kennen) e reconhecer (erkennen). “Kennen” significa

conhecer algo por contato (acquaintance) independentemente de reflexão ou autoconsciência. Em contrapartida, “erkennen” significa o processo de adquirir conhecimento ou tomar ciência de algo (“Er hat mich erkannt”, ele me reconheceu). Ademais, enquanto o verbo acusativo direto “kennen” tem por completo sempre um objeto (“I kenne sie”), o verbo acusativo direto “erkennen” pode ter por complemento ora um objeto (“Er hat mich

erkannt”) ora por uma proposição: “Er hat erkannt dass so-und-so der Fall ist”. Entretanto, pelos inúmeros exemplos fornecidos por Kant torna-se

claro que quando “erkennen” é complementado por um objeto, o que temos é uma forma elíptica de conhecimento proposicional: reconhecer algo é sempre reconhecer que algo satisfaz tais e tais condições.

Dito isso, a oposição kantiana entre intuições e conceitos deve ser entendida em primeiro lugar como a oposição entre consciência de objetos (intuições) e a consciência proposicional (conceitos) de que algo é o caso. Essa oposição fundamental entre conhecimento por contato de coisas ou objetos e conhecimento proposicional de verdades ou fatos é formulada claramente pela primeira vez em um opúsculo pré-crítico:

Vou além e digo: é totalmente diverso discriminar (unterscheiden) as coisas uma das outras e tomar ciência (erkennen) da distinção das coisas. A última só é possível por um juízo e não pode acontecer em nenhum animal irracional. A divisão seguinte pode ser de grande utilidade. Distinguir logicamente (logisch unterscheiden) significa reconhecer que (erkennen dass) alguma coisa A não é B e é sempre um juízo negativo. Discriminar fisicamente (physisch unterscheiden) significa ser levado a ações diferentes por representações diferentes. O cão discrimina o assado do pão porque ele é afetado diferentemente pelo assado e pelo pão (pois coisas diferentes são causas de sensações diferentes), e as sensações do primeiro são nele o fundamento de um desejo distinto do último (FSS., § 6, AA, 2: 60; p. 104).

A oposição kantiana é muito bem expressa nos termos da bem conhecida oposição de Dretske (1969) entre o ver não-cognitivo de particulares e o ver cognitivo proposicional. O cão (animal não racional vê particulares: o assado, o pão etc., na medida em que é capaz de discriminá-

los fisicamente (ver não-cognitivo). Entretanto, ele não vê que o assado não é pão ou que o pão não o assado (ver cognitivo). A capacidade de conhecer particulares por contato (Kennen).

Ora, mas a ideia fundamental de um conhecimento por contato (kennen) de objetos nos conduz diretamente a uma segunda tese fundamental: referência intuitiva é sempre imediata no sentido preciso de ser uma referência de re.

Todas as intuições, enquanto sensíveis, assentam em afecções e os conceitos, por sua vez, em funções. Entendo por função a unidade da ação que consiste em ordenar diversas representações sob uma representação comum. Os conceitos fundam-se, pois, sobre a espontaneidade do pensamento, tal como as intuições sensíveis sobre a receptividade das impressões. O entendimento não pode fazer outro uso destes conceitos a não ser, por seu intermédio, formular juízos. Como nenhuma representação, exceto a intuição, se refere imediatamente ao objeto, um conceito nunca é referido imediatamente a um objeto, mas a qualquer outra representação (quer seja intuição ou mesmo já conceito) (A68/B93).

O conhecimento, por sua vez, é intuição ou conceito (intuitus vel

conceptus). A primeira refere-se imediatamente ao objeto e é singular, o

segundo refere-se mediatamente, por meio de um sinal que pode ser comum a várias coisas (A320/B377).

Intuir significa singularizar, destacar ou discriminar particulares no espaço e no tempo (e o próprio espaço e tempo) a partir de uma relação fundamental de contato imediato (afecção) que o sujeito mantém com o particular, independente do seu reconhecimento conceitual como instâncias de tipos ou características gerais. Em outras palavras, intuir é sempre se referir a um particular de forma imediata ou de re. Em contrapartida, conceber significa prima facie referir-se a um particular como aquele que satisfaz as notas características (Merkmale) pensadas mediante conceitos. Em suma, conceber significa prima facie se referir a um objeto de forma mediata ou de dicto, ou seja, pela satisfação de determinadas condições impostas por conceitos. Refiro-me discursivamente a um particular como

sendo uma habitação quando sou capaz de reconhecer que (erkennen dass) tal particular satisfaz as condições impostas pelo conceito de habitação, ou seja, como aquele particular que instancia as notas características (Merkmale) que ele compartilha com inúmeros outros objetos: possuir quadros, portas, janelas, etc.

As passagens supracitadas de A68/B93 e de A320/B377 parecem excluir definitivamente a possibilidade de pensamentos de re ou de conceitos singulares em Kant, ou seja, pensamentos e conceitos que se referiram diretamente a objetos sem a mediação da satisfação das notas características comuns. Se isso for correto, mesmo conceitos de indivíduos como “Caio” deveriam ser entendidos como análogos mentais das descrições definidas: o primeiro grande imperador romano; aquele que cruzou o Rubicão; aquele que foi morto por Brutus e os senadores, etc. Com efeito, essa é a interpretação hegemônica entre os grandes nomes da historiografia de Kant.

Ora, mas se quisermos evitar um regresso, temos que admitir, como Kant o faz em A68/B93, que alguns conceitos se referem aos seus respectivos objetos com base apenas em intuições sensíveis. Ele pelo que vimos, intuições não são de modo algum conceitos parciais (Merkmale) e se referem aos seus objetos de forma relacional, ou seja, com base nas relações causais de afecção. Isso é o que Kant parece afirmar em texto bastante controverso:

Mas o uso de um conceptus pode ser singularis. Por que o que se aplica a muitas coisas também pode ser aplicado a um caso individual. Penso de um homem in individuo, isto é, eu uso o conceito de um homem para ter um ens singulare. Posso fazer uso de um conceito na medida em que ele se aplica a muitos objetos; então o conceito é empregado como uma

representatio communis, isto é, empregado in abstracto, por exemplo,

uma casa. Se digo agora que todas as casas têm que ter um telhado, então esse é um usus universalis. [...] Ou eu emprego o conceito apenas para um indivíduo singular, por exemplo, essa casa é cimentada dessa ou daquela forma (V-Lo/Wiener, AA, 24, 909).

Nestes termos, “Caio” não seria o análogo mental de uma descrição definida, mas o análogo mental de um nome próprio à la Kripke ou de um dêitico “esse homem” cuja referência não é determinada de dicto pela satisfação de notas características comuns a vários objetos, mas na forma de re, ou seja, como aquele ens singularis com o qual a intuição sensível me põe em relação. Essa casa é cimentada dessa ou daquela forma é um exemplo típico de pensamento de re cujo conceito-sujeito é um conceito singular: essa casa.

Essa segunda tese nos conduz diretamente a uma terceira: como o sujeito é capaz de se referir de re a particulares por contato independentemente do concurso de conceitos, Kant deve ser visto, se não como um expoente, ao menos como o grande precursor do que hoje se entende por não-conceitualismo. Tal como é hoje entendido, o não- conceitualismo é a tese segundo a qual um sujeito é capaz de representar sem ter que possuir os conceitos indispensáveis para a especificação canônica do conteúdo que é representado pelos seus sentidos. Assim, no exemplo kantiano, sou capaz de singularizar uma habitação no meu campo visual sem que eu tenha que possuir o conceito de habitação por meio do qual se especifica o particular a que estou me referindo ou representando e que me permitiria compreender ou reconhecer que (erkennen dass) o que estou a representar é uma habitação:

Em todo conhecimento é necessário que se distingam a matéria, i. é, o objeto, e a forma, i. é, o modo pelo qual nos tornamos conscientes (erkennen) do objeto. Assim, se um selvagem, por exemplo, vê à distância uma casa cujo emprego ele não conhece: então ele tem diante de si na representação o mesmo objeto que um outro que o conhece de modo determinado como uma habitação destinada a seres humanos. Entretanto, segundo a forma, esse conhecimento de um e mesmo objeto é diverso em ambos. Em um é uma mera intuição, no outro, intuição e conceito ao mesmo tempo (LOG, AA 9, 33, grifos do autor).

O que coloca Kant como precursor do não-conceitualismo é o seguinte. O selvagem se refere ao mesmo particular que o não-selvagem que possui o conceito de habitação, não havendo, portanto, nenhuma diferença de refe-

rência (o que Kant denomina ai de “matéria”). Não obstante, e esse é o pon- to crucial, os estados mentais do selvagem e do não-selvagem são significa- tivamente distintos (Kant denomina isso de “forma”). Enquanto o selvagem representa a habitação mediante apenas um intuição empírica, o estado mental do não-selvagem é individuado e constituído tanto por uma intuição empírica quanto pelo conceito de habitação.

Embora deva ser visto como o percursor do não-conceitualismo, Kant não pode ser visto como um expoente. A razão é muito simples. Embora Kant caracterize as intuições sensíveis como representações que se referem imediatamente aos seus objetos, ele não as concebe com um conteúdo representacional na acepção contemporânea técnica do termo, ou seja, como estados mentais com condições de satisfação independentes das condições de satisfação dos juízos de experiência correspondentes. Isso significa dizer que ao se referir aos seus respectivos objetos, as intuições sensíveis projetariam determinadas condições de satisfação sobre o mundo, a satisfação das quais tornaria o seu suposto conteúdo verídico ou inverídico. Ora, é exatamente a possibilidade de uma ilusão pelos sentido o que Kant explicitamente rejeita em várias obras de vários períodos de sua carreira.

A teoria kantiana da ilusão sensível desenvolveu-se de modo bastante considerável entre os escritos pré-críticos e os críticos. No opúsculo pré- crítico Sonhos de um visionário explicados pelos sonhos da metafísica, no parágrafo 13 da edição A, Kant parece entender a ilusão como uma forma de erro próprio à visão. Entretanto, já na Dissertatio Kant passa a subscrever as desconfianças cartesianas quanto à natureza ilusória das aparências per se. Entretanto, é apenas no período crítico que encontramos a distinção decisiva entre o aparecer sensível <Erscheinung> e a ilusão <Schein>. Na KrV, lê-se o seguinte:

Podemos dizer, pois, que os sentidos não erram, não porque seu juízo seja sempre correto, mas porque não ajuízam de modo algum. Eis porque no juízo apenas, ou seja, na relação do objeto com o nosso entendimento, se encontram tanto a verdade como o erro e, portanto, também a

aparência, enquanto induz a este último. [...] Em uma representação dos sentidos (na medida em que ela não contém nenhum juízo) não há erro (A 293-294=B350).

Exatamente a mesma tese pode ser lida na Antropologia:

Os sentidos não enganam.<betrügen> [...] Não por que eles sempre ajuízem corretamente, mas antes porque eles de forma alguma ajuízam.; por isso é sempre o entendimento que suporta o ônus do erro. [...] Entretanto, se a aparência dos sentidos <Sinnesschein> não justifica, ao menos desculpa por que as pessoas sempre se veem na situação de tomar erroneamente o subjetivo pelo objetivo (a torre distante, aparecendo redonda a quem não vê seus lados ...) (Anthr, § 11, Ak., 7: 146; 258). Na relação entre o objeto e a sensibilidade não há verdade nem erro. Intuições sensíveis per se não são nem verídicas nem ilusórias. No âmbito da sensibilidade, não caberia a distinção entre verdade <Wahrheit> e aparência <Schein>, as coisas são (em sentido empírico) tais como me aparecem. Enquanto filósofos contemporâneos atribuem normatividade à sensibilidade humana (Dretske, Tye, Fodor dentre inúmeros outros) uma dimensão, para Kant, “verdade e a aparência não estão no objeto enquanto é intuído, mas apenas no juízo sobre o mesmo na medida em que é pensado” (A293/B350). Essa é a razão pela qual Kant denomina o objeto das intuições sensíveis de “Erscheinungen” em oposição às aparências <Schein>. Não seriam, portanto, os nossos sentidos que nos enganariam <betrügen>, mas antes a nossa capacidade de julgar <Urteilskraft> ao tomar o que aparece aos sentidos como real ou objetivo (quando tal não for o caso).

Referências

ALLISON, Henry E. (1983/2004). Kant’s transcendental idealism. An

interpretation and defense. New Haven: Yale University Press.

______. Kant’s Transcendental Deduction: An Analytical-Historical

Commentary. Oxford: OUP, 2015.

DRETSKE, Fred (1969). Seeing And Knowing. Chicago: University Of Chicago Press.

GUNTHER, Y. General Introduction. In Essays on nonconceptual

content. York H. Gunther (ed.). Cambridge: MIT Press, 2003.

KANT, Immanuel. Gesammelte Schriften, ed. by Preussische. Akademie19 der Wissenschaften, Berlin, 29 vols. 1902/1983. (Indicado por <AA> (Akademie-Ausgabe) seguido pelo número do volume. A exceção é a Crítica da Razão Pura que é citada tanto na primeira edição –A- quanto na segunda edição –B- da edição da Felix Meiner Hamburg, 1956).

MCDOWELL, J. Mind and world. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1994.

STRAWSON, P. F. The Bounds of Sense: An Essay on Kant's Critique

of Pure Reason. London: Methuen, 1966.

19 As obras de Kant são citadas pela edição da Academia prussiana. Abreviações seguindo

a regra da Academia: FSS: Die falsche Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figuren (AA 02); LOG: Jäsche Logik (AA. 09); Anthr: Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (AA 07); V-Lo/Wiener: Wiener Logik (AA 24).

O princípio de significatividade em Kant e

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