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A liberdade enquanto uma ideia

No documento THE BOUNDS OF SENSE (páginas 133-136)

Na terceira antinomia Kant se ocupa da ideia da liberdade transcendental como um modelo para entender o agir humano, pois, segundo ele, sem essa ideia a liberdade prática não seria possível. Portanto, a ideia transcendental que regula o agir humano em geral é a ideia transcendental da liberdade, uma ideia da espontaneidade absoluta. Essa relação entre a ideia da liberdade e a ação foi expressa por Kant da seguinte forma. Primeiramente, será preciso reconhecer nos eventos naturais a ideia de liberdade no sentido da causa dos mesmos, pois, “caso se reconheça uma pura necessidade em toda a série de todos os eventos, é possível encarar exatamente esta série como um mero efeito natural sob um aspecto e como efeito da liberdade sob outro aspecto, ou se dá uma contradição direta entre estes dois tipos de causalidade?” (KANT, 1980, p. 276).

A resposta de Kant segue de perto a argumentação da Analítica

Transcendental, afirmando que “todas as ações das causas naturais também

são, por sua vez, efeitos na sucessão temporal, os quais da mesma forma pressupõem suas causas na série temporal”. Assim, “uma ação originária mediante a qual ocorra algo que antes não exista, não pode ser esperada na conexão causal dos fenômenos” (KANT, 1980, p. 276). A razão disso se deve ao fato de que a conexão entre fenômenos diz respeito a uma causalidade de natureza empírica. Contudo, como para Kant a questão é saber se uma ação ou evento pode ser efeito de uma causa inteligível e não empírica, ele se pergunta se análogo aos eventos naturais, outros eventos não possuem uma causa natural, mas inteligível. A resposta kantiana para essa questão é de que existe essa causalidade inteligível, e que a mesma atua como ação originária.

Para Kant, dado que os objetos de uma experiência possível “não passam de fenômenos, isto é, meras representações” (KANT, 1980, p. 253), então deve existir algo que subjaza aos mesmos, algo que, mesmo não sendo um fenômeno, funcione como fundamento deles. Interessante observar que na “elucidação da ideia cosmológica de uma liberdade em ligação com a necessidade universal da natureza”, Kant afirma que “é uma lei da natureza que tudo o que ocorre possui uma causa, e que a causalidade desta causa, isto é, a ação, também tem, entre seus fenômenos, a causa mediante a qual é determinada, e isto porque tal causalidade precede no tempo e, considerando um efeito que então surgiu, não pode sempre ter existido, mas tem que ter ocorrido” (KANT, 1980, p. 275). Mais adiante diz que, “dos imperativos que impomos, em tudo o que tange às questões práticas, como regras às forças que as executam, segue-se claramente ou que esta razão possui uma causalidade ou que, pelo menos, a representamos para nós como possuindo tal causalidade.” (KANT, 1980, p. 277).26

Disso se segue que, análoga a causalidade natural, temos uma causalidade por liberdade. Em termos kantianos isso quer dizer que a razão atua como a causa inteligível de um efeito sensível: “uma ordem própria segundo ideias, à qual adapta as condições empíricas e segundo a qual declara necessárias até as ações que ainda não ocorreram” (KANT, 1980, p. 278). Essa espontaneidade da razão, que caracteriza o caráter inteligível do agente, permite em Kant compatibilizar o determinismo causal e a liberdade. Por isso, diz Kant, “se compararmos estas ações com a razão tendo em vista um propósito prático, então encontraremos uma regra e uma ordem que são totalmente diversas da ordem da natureza” (KANT, 1980, p. 279).

26 Essa concepção da liberdade como uma ideia, como representação, aparecerá

novamente na Fundamentação da metafísica dos Costumes: “Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou, só ele tem uma vontade. E, uma vez que, para das leis derivar as ações, é necessária a razão, a vontade outra coisa não é senão a razão prática [...] A representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se imperativo.” (KANT, 1988, p.47-48)

Desta maneira, fica garantido que o mundo pode possuir, ao mesmo tempo, uma realidade empírica, fenomênica, e uma realidade transcendental, numênica. O que, por conseguinte, possibilita que liberdade e necessidade, cada qual no seu âmbito, sejam encontradas sem nenhum conflito nas mesmas ações. Com essa conciliação e esclarecimento das diferentes naturezas, Kant procurou não somente sustentar que os fenômenos se encadeiam segundo leis fixas, mas também que eles necessitam de uma causa primeira e espontânea. Essa ideia de espontaneidade absoluta servirá de princípio de explicação de certos eventos do mundo, eventos que não mais serão ligados através de causas naturais (fenomênicas).

Todos os eventos produzidos por seres racionais pertencentes também ao mundo inteligível, serão explicados a partir desse princípio. Como podemos perceber, ao atribuir liberdade à razão, enquanto faculdade de iniciar espontaneamente uma série de eventos, Kant estabelece que a razão é “a condição permanente de todas as ações de arbítrio sob as quais se manifesta o homem” (KANT, 1980, p. 280). Esse poder de determinação da ação, através da razão, deve ser entendido de maneira análoga ao princípio de causalidade natural.

Esse caráter intelectual da liberdade é o que permite explicar as nossas ações e, nesse preciso sentido, a máxima que permite explicar uma ação, assemelha-se a lei da causalidade, a lei imutável da natureza que permite explicar um fenômeno qualquer. Como lei que regula o dever e não o que simplesmente é, ela precisa ser entendida de modo transcendental, enquanto ideia de uma causalidade espontânea, ideia a partir da qual é possível atribuir aos seres racionais autonomia frente a necessidade natural. Essa ideia que instaura o mundo prático, em Kant recebe o nome de liberdade.

No documento THE BOUNDS OF SENSE (páginas 133-136)