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destituídas de conteúdo

No documento THE BOUNDS OF SENSE (páginas 75-81)

A partir do Bounds of Sense de Strawson (1966), uma determinada interpretação da conexão entre referência intuitiva e referência discursiva tornou-se um paradigma na literatura. Embora a leitura de Strawson nunca

tenha sido aceita pelo mainstream dos scholars kantianos, ela é por si mesma interessante e merece ser discutida e comparada com a própria concepção de Kant. Essa é a proposta desse trabalho. Assim, com base em uma vaga analogia entre ontologia, epistemologia e linguagem, Strawson sugere que as intuições deveriam ser entendidas como a consciência imediata de particulares que exemplificam tipos ou características expressas por conceitos:

A dualidade entre intuições e conceitos é, com efeito, apenas uma forma ou aspecto de uma dualidade que tem que ser reconhecida em qualquer sistema filosófico que seriamente se ocupe com o conhecimento humano, seus objetos ou suas expressões e comunicação. Essas constituem três diferentes direções de uma mesma preocupação filosófica ao invés de três diferentes preocupações filosóficas. A teoria do ser, a teoria do conhecimento e a teoria do enunciado não são verdadeiramente separáveis; e a nossa dualidade necessariamente aparece em todas as três sob diferentes formas. Em primeiro lugar, não podemos evitar a distinção entre itens particulares e tipos ou características gerais que os primeiros exemplificam. Em segundo lugar, temos que reconhecer a necessidade de possuirmos tanto conceitos gerais quanto de nos tornarmos conscientes na experiência de objetos. Em terceiro lugar, temos que reconhecer a necessidade de recursos linguísticos ou outros que nos permitam tanto classificar ou descrever em termos gerais quanto indicar a quais casos particulares nossas classificações e descrições se aplicam (STRAWSON, 1966, p. 47, grifos meus).

Ao opor intuições a conceitos Kant não estaria apenas enunciando a tese (consensual entre os scholars de Kant) de que não há conhecimento (Erkenntnis) que não envolva a consciência de particulares (mediante intuições sensíveis) como instâncias de tipos ou características gerais (mediante conceitos gerais). A oposição psicológica entre intuições e conceitos (como formas distintas de representação) não seria essencialmente distinta da oposição ontológica entre particulares e tipos gerais ou da oposição semântica entre termos singulares e termos gerais. Não se trata de três questões distintas; por exemplo, como particularidades

instanciam tipos de características gerais? (metafísica); como reconhecemos que o que é dado pela representação sensível é ou não um objeto que pertence à extensão daquilo que representado por um conceito geral? (epistemologia); como reconhecemos que um predicado é verdadeiro de um objeto identificado por um termo singular? (semântica). Essas oposições apontam antes na direção de três diferentes formulações e abordagens de um mesmo e único problema filosófico fundamental.

A pergunta fundamental que se coloca é sobre qual seria essa questão central e única. Strawson silencia a esse respeito. E eu suspeito que não haja de fato aqui nada além do que uma mera analogia. Em todo caso, o que fica patente na passagem supracitada é que para Strawson a colaboração entre intuições e conceitos não se resume à explicação de como o conhecimento seria possível, a saber, representando de forma imediata um particular que satisfaz a um conjunto de características pensadas por ao menos dois conceitos (em um juízo categórico fundamental). Strawson sugere que intuições e conceitos se complementam tal como termos singulares e gerais em uma predicação. Tal assimilação das intuições sensíveis aos termos singulares demonstrativos é claramente sugerida em uma nota na página seguinte:

A dualidade das convenções semânticas de Austin corresponde à duali- dade das faculdades cognitivas de Kant. Pelas convenções demonstrati- vas (particularizantes), uma correlação é alcançada em situações históri- cas. Uma vez que “históricas” é evidentemente uma expressão temporal, e “situações” uma expressão espacial, isso se parece bastante com a dou- trina de Kant segundo a qual espaço e tempo são formas da intuição (STRAWSON, 1966, p.49).

Ora, como não faz sentido falar do emprego de termos singularizantes em um enunciado predicativo sem falarmos ao mesmo tempo do reconhecimento desses particulares por meio de termos gerais, conclui-se que não seria possível representar particulares no espaço e no tempo, sem reconhecermos ao mesmo tempo de quais termos gerais eles seriam instâncias particulares. Em outras palavras, Strawson estaria endossando a

tese conceitualista de que não seria possível representarmos particulares no espaço e no tempo sem possuirmos os conceitos necessários para especificar o que estamos representando. Essa suspeita é corroborada por ao menos duas passagens. Na primeira, retomando o supracitado adagio kantiano de A52/B75, Strawson afirma: “A sua palavra (kantiana) para a percepção na experiência de instâncias particulares de conceitos gerais é “intuição”; e o ponto é resumindo no seu famoso dictum: ‘pensamentos sem conteúdos são vazios; intuições sem conceitos são cegas’” (1966, p.20).

Ai não se trata apenas de definir a intuição sensível como a consciência de particulares que eventualmente exemplificam tipos ou características gerais; tese irretorquível como interpretação de Kant. Strawson está definindo as intuições como a consciência de particulares que instanciam tipos ou características gerais. Em outras palavras, não poderíamos tomar ciência de tais particulares ou representá-los como objetos sem ao mesmo tempo reconhecê-los como instâncias de conceitos gerais. Assim, ele entende o dictum kantiano de que intuições sem conceitos seriam “cegas” como se Kant estivesse dizendo que sem conceitos intuições seriam destituídas de conteúdo representacional, ou seja, sem conceitos intuições seriam cegas no sentido de que nada representariam. Inúmeros conceitualistas seguiram essa mesma interpretação proposta por Strawson. McDowell afirma por exemplo:

[...] a própria ideia de um conteúdo representacional, não apenas a ideia de juízos que sejam adequadamente justificados, exige uma colaboração entre conceitos e intuições, informações da entrada experiencial (bits of experiencial intake). De outra forma, um quadro formado apenas por conceitos descreveria apenas formas vazias (1994, p.6).

Curiosamente, a leitura conceitualista de Strawson fez escola não apenas entre os conceitualistas. Mesmo não-conceitualistas identificam Kant como seu principal oponente em razão da leitura proposta por Strawson do

No seu slogan: “pensamentos sem intuições são vazios, intuições sem conceitos são falsas”, Kant resume a doutrina do conceitualismo. […] Segundo o conceitualismo, nenhum conteúdo intencional, por mais que portentoso e mundano que fosse, seria um conteúdo a menos que fosse estruturado por conceitos que o seu portador possuísse (2003, p.1). Hoje nenhum scholar de Kant, nem mesmo conceitualistas, aceita mais a leitura proposta por Strawson. Está claro que quando Kant afirma que sem conceitos as intuições seriam “cegas” ele não está dizendo que elas nada representariam ou seriam destituídas de conteúdo. “Cegas” em A52/B75 significa apenas dizer que seu sujeito nada compreenderia acerca do que suas intuições estariam representando. Ora, mas essa tese é o cerne do não- conceitualismo: podemos representar pelos sentidos particulares sem que saibamos ou compreendamos o que estamos representando.

Hoje o debate entre interpretações conceitualistas e não-conceitualistas está centrado na passagem do parágrafo 13 onde Kant explica por que o empreendimento de uma Dedução Transcendental seria incontornável:

As categorias do entendimento, pelo contrário, de modo algum apresentam as condições em que os objetos nos são dados na intuição; por conseguinte, podem sem dúvida nos aparecer objetos, que não se relacionem necessariamente com as funções do entendimento e dos quais este, portanto, não contenha as condições a priori (A89/B122).

Não-conceitualistas interpretam essa passagem de forma literal. É metafisicamente possível que objetos podem aparecer aos sentidos (ou que possamos representá-los no espaço e no tempo) sem que eles tenham que ser conceituados ou categorizados. Trata-se do caso das intuições cegas por meio das quais representamos particularidades sem que compreendamos por meio de conceitos o que estamos a representar.

Em contrapartida, conceitualistas como Allison (1983/2004, 2015) afirmam que ai Kant estaria aventando uma hipótese (um espectro como afirma Allison) para ser excluída ao fim da Dedução: de modo algum objetos poderiam nos aparecer aos sentidos sem estarem subordinados a

categorias. Com efeito, parece que é isso que Kant estaria dizendo ao fim e ao cabo da Dedução: “Pois sem esta aptidão das categorias não se compreenderia como é que tudo o que se pode apresentar aos nossos sentidos deve estar submetido a leis que derivam do entendimento” (B160).

Strawson é ambíguo a respeito. Por um lado, ele parece dizer que a Dedução é uma prova da objetividade, dando a entender assim que poderíamos sim representar objetos “no sentido fraco” sem que eles estejam necessariamente subordinados às categorias. Entretanto, em uma série de outras passagens, ele claramente se alinha com a leitura conceitualista das intuições sensíveis, quando afirma, por exemplo, que sem as categorias a nossa experiência seria impossível, uma vez que se reduziria a um agregado desconexo, incapaz de ser auto-atribuído. Assim, ele afirma, por exemplo: “Não há experiência que não envolva a recognição de um item particular como sendo de tal e tal tipo geral” (STRAWSON, 1966, p.100).

Uma leitura mais atenta do final da Dedução-B deixa claro que o que Kant tinha em mente não era o conceito de intencionalidade no sentido usual de objeto intencional das nossas representações. O que ele tinha em mente era o conceito de objetividade, a representação de algo como um objeto:

O espaço representado como objeto (tal como é realmente necessário na geometria) contém mais que a simples forma da intuição, a saber, a

síntese do diverso, dado numa representação intuitiva, de acordo com a forma da sensibilidade, de tal modo que a forma da intuição concede

apenas o diverso, enquanto a intuição formal dá a unidade da representação (B161).

O que ele diz então ao final da Dedução-B é que todas as representações de objetos enquanto objetos, ou seja, como algo que exista independentemente da minha mente, estão subordinadas às categorias.

Assim, ao contrário do que sugerem os conceitualistas, Kant não está afirmando de forma alguma que as categorias seriam condições para representarmos os objetos tal como eles nos aparecem aos sentidos. As categorias seriam condições para representarmos objetos como objetos. Nestes termos, o conceitualismo se equivoca mais uma vez: realizamos inúmeras experiências sem que tenhamos que reconhecer mediante conceitos os “itens particulares” representados pelas intuições como instâncias de tipos gerais. Ademais, mesmo sem categorias, essas experiências nada teriam de caóticas ou desconexas (aqui basta nos lembrarmos que para Kant animais representam o mundo sem conceitos e a sua experiência nada tem de caótica).

O verificacionismo de Strawson: sem intuições

No documento THE BOUNDS OF SENSE (páginas 75-81)