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Marcílio (1998) delineia a trajetória da criança abandonada reconstituindo os fatos históricos a partir da Europa Ocidental e posteriormente no Brasil, e levando em consideração como esse fenômeno esteve relacionado aos modos e meios de conceber a proteção e a assistência à infância.

Esta autora constata que houve épocas no Velho Mundo em que, para cada duas crianças nascidas, uma era abandonada. O que acentua a relevância de um estudo nessa área, posto que se pode mostrar a face da infância marginalizada e estigmatizada na figura das crianças abandonadas pelas nossas sociedades (MARCÍLIO, 1998, p.11).

Foi somente em 1959 pela Declaração dos Direitos Universais da Criança, promulgada pelas Nações Unidas, que a criança passou a ser concebida como um sujeito de direito, na Europa Ocidental. Antes disso, porém, houve uma longa jornada trabalhada ao longo de duzentos anos para se chegar à atual situação. Percurso este que

transitou da filantropia até a implementação do bem-estar social adotado pelo Estado (MARCÍLIO, 1998, p.12).

De acordo com os relatos da sua pesquisa, a prática de abandonar os bebês foi bastante comum e recorrente em várias épocas, além de aceita. O que a diferenciava através do tempo eram apenas os motivos e as circunstâncias em que ela se dava (MARCÍLIO, 1998, p. 21).

Encontram-se, inclusive, várias passagens bíblicas que reportam a esse fenômeno, a exemplo da história de Moisés. Assim como na mitologia encontramos uma vasta bibliografia referente ao tema: Édipo, Júpiter, Hércules, Príamo, Cibele, entre outros. Na Grécia Antiga, como os pais detinham o poder absoluto sobre os seus filhos, podiam fazer deles o que bem entendessem: matar, vender; e aqueles que nasciam com alguma deformidade física deveriam ser expostos. Em Roma, a prática do infanticídio também era adotada e um bebê só era recebido na sociedade a partir da decisão do poder do chefe da família. Conforme a mitologia, os fundadores desta cidade, Rômulo e Remo, foram abandonados por seu tio à beira do rio Tibre sendo adotados e criados em seguida por uma loba (MARCÍLIO, 1998, p.22).

Muitas eram as causas que levavam os romanos a abandonarem as crianças: os pobres porque não possuíam condições de sustentá-las; os ricos pela dúvida quanto à legitimidade do filho, ou porque já haviam repartido os seus bens entre os herdeiros existentes. Além disso, a prática era bastante comum com aquelas que nasciam com alguma deformidade física, ou mesmo em sinal de protesto político contra os deuses (MARCÍLIO, 1998, p. 25).

Em 315, Constantino, o primeiro imperador cristão, condenou o ato do infanticídio e reconheceu a relevância do fator econômico que levava os pais a abandonarem seus filhos. Criou então um sistema de assistência aos pais que impedisse a exposição das crianças. Aos poucos se percebe que se vão formulando leis em torno desta realidade, no entanto, o que se verifica é que nenhuma delas se preocupava com o lado ético e o futuro dos pequenos e por muito tempo continuou-se a ser admitida a eliminação de crianças defeituosas. Para os moralistas da época, o ato do abandono em si, feito pelos pais, não era condenado, mas sim os resultados em decorrência desta prática: o infanticídio, o incesto, o estímulo às relações extramatrimoniais e a prostituição (MARCÍLIO, 1998 p.27).

Foi o Império Romano ainda que estabeleceu o ato da adoção, uma vez que para os romanos os laços consanguíneos não eram tão importantes e isto servia para o controle da distribuição de herança (MARCÍLIO, 1998, p.26).

A Igreja, por seu turno, desde a sua origem, demonstrou uma condescendência à questão da pobreza. O que resultou em várias concessões ao longo da história. E, mais especificamente, uma atitude realista diante da situação do abandono. A saber, que os Concílios de Vaison (442), Agda (506), Arles (552) e Macôn (581) pediam aos fiéis que acolhessem os expostos, podendo impetrar o direito sobre eles. E os pais não teriam mais o direito de reclamar seus filhos enjeitados depois de 10 dias de abandono. Essa ideologia cristã estimulou uma larga prática da misericórdia em toda a Europa, pois influiu diretamente no sentimento de compaixão dos cristãos que enxergavam a criança exposta como criaturas de Deus. Aquele que encontrasse uma criança abandonada estava, pois, na obrigação de criá-la, sob pena de cometer um pecado grave por omissão (MARCÍLIO, 1998, p.28).

O dever de dar esmola e o exercício da caridade eram encorajados pela Igreja como um ato para se obter a salvação. Assim, os bens e as rendas das igrejas, bem como as obras de caridades dos fiéis, eram convertidos para corrigir as desigualdades sociais existentes na Idade Média. Os primeiros hospitais, por exemplo, nasceram por iniciativas dos bispos (MARCÍLIO, 1998, p.31).

Entre os séculos V e X, com a fragmentação da Europa em feudos e reinos de diferentes línguas, culturas e estruturas sociais e o crescimento demográfico, o grande aumento de crianças abandonadas se tornou um problema extremamente difícil de ser resolvido. E a Igreja intervém nessa situação, ajudando, por exemplo, na recepção e distribuição dos bebês abandonados. O infanticídio passa a ser então severamente condenado, além dos métodos contraceptivos, o aborto e o abandono de crianças. Este último considerado apenas como um mal menor dentre os demais (MARCÍLIO, 1998, p.32).

Entre uma das medidas tomadas pela igreja na contenção deste agravante social estava a de tornar os mosteiros refúgio destas crianças. Os monges assumiam o papel de pais de criação e pais espirituais. Posteriormente, foram criadas as escolas externas, que separam os aspirantes a monges e as crianças seculares (MARCÍLIO, 1998, p.35). Muitos pais ofereciam livremente seus filhos para serem criados pelos monges, a chamada oblação, sendo que, ao atingirem uma certa idade, aqueles podiam escolher se queriam permanecer no caminho da vida religiosa ou não. Entretanto, se verificou

também que existiram muitos oblatas infelizes que quiseram deixar a vida monástica e não puderam, pois, alguns pais, a fim de melhor distribuir a herança entre os primeiros filhos, muitas vezes, os abandonavam no mosteiro (MARCÍLIO, 1998, p.35).

Ainda no campo da assistência aos bebês abandonados, no século XI, surge a figura do ermitão, imbuído da tarefa de recolher os expostos. É a época das fundações criadas pelas comunidades urbanas e pelos príncipes atestadas como obras de caridades.

No século XII, com os infortúnios, a miséria, o aumento da pobreza e de pessoas incapazes de garantir sua própria existência, decorrente da ampliação demográfica, se tornam ainda mais agravantes e as instituições eclesiásticas já não davam conta da demanda. Desse modo, a ideia da necessidade de assistência social passou a se desenvolver e as ações de caridades fora da igreja a serem estimuladas (MARCÍLIO, 1998, p.36).

Assim, a assistência aos desamparados passou a ser vista não somente como uma necessidade espiritual. Algumas iniciativas laicas fundaram confrarias caricativas que se juntaram às intervenções das autoridades. Outras confrarias de Misericórdia também surgiram com o objetivo de abster tanto espiritualmente como materialmente os mais necessitados. Em consequência disso, veem-se despontar nas regiões mais populosas da Europa estabelecimentos hospitalares para os pobres, além de albergues, leprosários, hospícios e asilos, e dessas associações surgiram as primeiras instituições caricativas de assistência à criança órfã (MARCÍLIO, 1998, p.41).

A Igreja, que à época havia sofrido algumas transformações estruturais, pois passou a assumir a forma de uma monarquia centralizada, regulamentou os aspectos da moral e sexualidade familiar, em que se sancionavam os graus de parentesco para contrair matrimônio. Decorrente disso e com o aumento da população, que culminou não somente no crescimento da pobreza, mas trouxe consigo problemas para as famílias, crescia também o número de crianças consideradas ilegítimas, geradas fora do casamento, que, consequentemente, eram abandonadas. E a mortalidade geral também se elevou, sobretudo, a infantil. Havia, assim, muitas categorias de bastardos, entre eles os filhos de padres. Posteriormente, no século XII foi instaurado o sacramento da ordem, no qual o celibato dos padres era declarado definitivo, universal e indelével (MARCÍLIO, 1998, p. 42).

O século XIII, a Igreja definiu as condições essenciais para a realização do matrimônio: indissolubilidade, monogamia, livre consentimento do casal e lócus único para a multiplicação da espécie. Definiu ainda o grau de consanguinidade, repelindo o casamento com parentes próximos, o que originou um sistema de parentesco novo na Europa. Com isso, a prática da adoção desapareceu embasada no sistema de herança desse período e os bens das famílias que não possuíssem herdeiros naturais deveriam ser legados para as obras de caridade da Igreja (MARCÍLIO, 1998, p.46).

Depois do século XIII, pobreza, ilegitimidade, defeitos e má saúde persistiram como os principais motivos que levavam os pais a abandonarem seus filhos. A concepção de pobreza é então entendida como a privação de um bem, uma situação de fraqueza e dependência temporária ou permanente. Com o surgimento das cidades, o novo espaço social, a miséria se tornava mais visível, não sendo mais respondida pelos modelos tradicionais de caridade. No final desse século, passa a ser empenhada também pelos leigos, e assumidas pelos governos, mesmo se mantido seu caráter religioso (MARCÍLIO, 1998, p.47).

Assim, com o renascimento das cidades, os hospitais passaram a ser assumidos também pelos municípios, muito embora o clero continuasse a assistir os desvalidos. Fora dos muros dos hospitais se colocava uma roda estendida por um colchão para que as crianças expostas fossem ali depositadas, de modo que não se sabia quem ali as deixava, disso nascia o modelo que viria instaurar a Roda dos Expostos. As crianças eram em seguida confiadas às amas-de-leite que as levavam para suas casas, a fim de criá-las e alimentá-las durante um certo período de tempo. Depois de desmamadas as crianças passavam a morar nos hospitais até por volta dos oitos ou dez anos, sendo logo após os meninos confiados a artesãos para que lhes ensinassem um ofício; e às meninas eram dados os dotes para facilitar na aquisição do matrimônio (MARCÍLIO, 1998, p.48).

No século XIV e XV, o número de desvalidos crescia consideravelmente e, em contrapartida, as ações de caridade haviam diminuído, tanto porque o ardor caritativo já não era mais o mesmo, como pelas crises econômicas, pois a fortuna dos doadores também havia reduzido. Assim, as autoridades municipais passaram a intervir diretamente na administração dos hospitais, controlando a parte financeira e a clientela. Outros hospícios de expostos foram criados com a inclusão da Roda. A primeira preocupação com as crianças ali expostas era de batizá-las, visto que já se concebia a criança como possuidora de uma alma. Depois do batismo, ela era entregue

a uma nutriz para o período de amamentação. Porém, um agravante se torna persistente nesse sistema: o índice de mortalidade infantil nessas instituições que sempre foi bastante elevado (MARCÍLIO, 1998, p.57).

As amas-de-leite eram mulheres que geralmente provinham das classes baixas sociais e, em sua grande maioria não possuíam noções básicas de higiene, nem orientações sobre cuidados com bebês, o que contribuía para o elevado índice de mortalidade infantil da época, condições estas que não eram muito diferentes das insalubres instalações dos hospitais que acolhiam as crianças (MARCÍLIO, 1998, p.66).

Durante o século XVII e no início do século XVIII, com a disseminação da moralidade, a ilegitimidade e o abandono de bebês demonstrou uma queda, que, no entanto, voltou a crescer na segunda metade do século XIX. O que resultou em movimentos de assistência à criança abandonada, bem como em uma nova concepção de pobreza atrelada a perigo social, posto que os pobres passam a ser vistos como mendicantes, preguiçosos e criminosos (MARCÍLIO, 1998, p.58).

O vigor moralista dessa época defendia a Roda dos Expostos como um meio de resguardar os bons costumes e as famílias, já que se preservava o anonimato dos expositores das crianças. Esse sistema de amparo difundiu-se por toda a Europa. As monarquias tidas como bem esclarecidas passaram também a adotar a filantropia como um modo de assistência às crianças desamparadas, pois entendia que tal tarefa incumbia ao Estado. Iniciam-se ainda nesse período operações de combate à mortalidade infantil desenvolvidas por médicos da filantropia higiênica que propunham alguns tratados sobre cuidados a criança (MARCÍLIO, 1998, p.62).

O século XVIII, inspirado pelo pensamento iluminista, é também caraterizado pela propagação das ideias associadas a uma mentalidade produtiva da sociedade e de críticas à Igreja. Disso decorrem algumas transformações tanto no plano ideológico quanto no social: surgiram, por exemplo, teorias que apoiavam a educação profissionalizante para crianças abandonadas. A mortalidade dos expostos passa a ser vista como um entrave para a sociedade, posto que as crianças poderiam ser de grande utilidade nos exércitos, em trabalhos pesados, ou mesmo nas novas colônias conquistadas pelos europeus. O assistencialismo passaria assim a ser considerado como utilitarista. Nessa perspectiva, a criança exposta é considerada em vista do progresso do Estado. E a caridade, nesse contexto, entendida não mais como como

uma inclinação espiritual, mas como uma tendência natural do ser humano (MARCÍLIO, 1998, p.71).

Os interesses pelos direitos do homem, também difundidos nesse período, estimularam as ações intervertidas do Estado, no que tangia à saúde pública e de assistência ao pobre. Subjacente a essa preocupação humana estava o interesse pela disciplina, a eficiência e ordem social. Dessa maneira, no século XIX, a filantropia e a caridade estavam ligadas por um mesmo objetivo: o controle social que buscava implantar o Estado da civilização, tentando suprimir a pobreza através de estratégias pedagógicas e educativas (MARCÍLIO, 1998, p.74).

Essa dinâmica contribui para o aumento da população. Entretanto, o problema da mortalidade infantil persistia e passa a ser considerado como uma perda para a nação, o que impulsionou os esforços das ideias iluministas para que a população adquirisse hábitos de higiene. Grande também era ainda nesse período o abandono de bebês, apesar da ilegitimidade começar a receber censura por parte da sociedade, o que fez multiplicar o número das Rodas de expostos. Porém, com os impasses financeiros, a elevação frenética de crianças de abandonadas continuou a gerar sérios problemas para a administração dos hospitais e das Rodas dos expostos (MARCÍLIO, 1998, p.76). Com os avanços técnicos foi possível desenvolver a amamentação artificial, através dos mecanismos de esterilização do leite, o que dispensou o trabalho das amas- de-leite, posteriormente levando também à extinção das Rodas dos Expostos, uma vez que o leite artificial foi também distribuído para as famílias carentes que não tinham condições de suster os seus bebês (MARCÍLIO, 1998, p.82).

Isso também trouxe mudanças para as estruturas dos hospitais, que de medicina caritativa, asilo para desamparados, passaram a ser um órgão de prevenção à saúde. Ademais, houve novas formas de lidar com as crianças desvalidas, que, a partir de então, e sobretudo através dessas medidas filantrópicas higienistas, passaram a receber novas formas de proteção com a criação de orfanatos, creches, colégios etc. Dessa maneira, no final do século XIX, as associações filantrópicas e religiosas empenharam- se em ajudar a classe pobre através da moralização educativa, a fim de restaurar a família, tida como a primeira cédula social de ajuda mútua. A adoção de criança, por sua vez, foi reintroduzida na legislação e, aos poucos, as crianças sem família vão conquistando seus direitos na ordem social (MARCÍLIO, 1998, p.84).

Fonte (2010, p.48) afirma que, nesse mesmo século o conceito de criança exposta passou a abranger tanto o seu enjeitamento pela família, como também àquelas

que eram abandonadas e entregues à caridade pública para serem criadas fora do seu contexto familiar, fosse por motivo de ilegitimidade ou por falta de subsídios básicos dos pais. Mas, no final do quartel do século XIX, houve uma diferenciação jurídica entre crianças expostas e abandonadas: sendo consideradas como as primeiras aquelas cujos pais eram desconhecidos e que as tinham enjeitado; e as segundas, filhas de pais conhecidos que as haviam desamparado. Tal classificação não representou nenhuma relevância do ponto de vista estatístico.

No século XX, mais especificamente em 1959, é promulgada a Declaração do Direitos da Crianças, sendo adotada pelas Nações Unidas. Depois da Segunda Guerra Mundial, a fase da filantropia dava-se por encerrada, visto que esta já não atendia às necessidades de assistência que se instauravam, nascendo assim uma nova fase de políticas públicas voltadas para o bem-estar social (MARCÍLIO, 1998, p.86).