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4.2 Os espaços do abandono

4.2.3 A escada

Com relação à figura da escada, que também se faz presente na narrativa, podemos tecer as seguintes considerações: simbolicamente, ela representa uma verticalização em que a subida se refere ao progresso, a uma ascensão, e a descida a alguma perda. Diz-se que na arte está relacionada a um suporte para uma elevação espiritual.

Na obra, por sua vez, vemos que a imagem da escada se dá nos momentos em que a personagem estabelece uma comunicação entre o seu presente e passado, pois é sentada nela, e ao vigiar o sono da filha, que se encontra acometida por uma febre, que Catarina se evade nas estranhas de suas memórias: “No topo da escada, Catarina espera. “No terceiro dia, tudo se define” (PAIM, 1965, p. 12).

Encolhida no topo da escada, procura os ponteiros do despertador. Parado? Leva-o ao ouvido, igual a coração de ave assustada... Recosta-se contra o portal e a parede do lance da escada se faz horizonte. Mundo de pedra e cal, meio fantástico na luz escura da lâmpada azul, longínqua no teto do andar (PAIM, 1965, p. 14).

Não se trata, no entanto, de a personagem movimentar-se no sentido de descer ou subir fisicamente, mas esses movimentos parecem corresponder à mobilidade dos

seus pensamentos: “Recosta-se na poltrona e a adolescência se lhe oferece à memória, terreiro banhado de luar, tão claro que sem esforço nele se encontra a agulha perdida” (PAIM, 1965, p. 52).

A figura da escada pode ser representada como um tipo de cronotopo, definido por Bakhtin (2010) como uma relação em que artisticamente, há uma indissociabilidade entre o tempo e o espaço, ou seja, é possível que o espaço se intensifique e adentre o movimento do tempo, do enredo e da história, de modo que se torna possível verificar sinais do tempo no próprio espaço, e este, por sua vez, medido pelo tempo, havendo um cruzamento entre ambos.

Assim, observamos que na narrativa é no espaço da escada que a personagem circunscrita em um determinado tempo, o presente, se apropria de um outro tempo e se transpõe para o passado. Assim, ambos se entrecruzam e se condensam, trazendo para o enredo fatos, imagens e informações a respeito dos acontecimentos da vida de Catarina. Desse modo, vemos que a escada serve como um ponto de encontro da personagem com suas reminiscências, ou talvez com uma de suas tantas faces:

Que é um muro? O inteiriço? Muro de pedras. Pedra com pedra e pedra. Muitas pedras e argamassa, plural feito unidade. “Sou um muro, Catarina com Catarina e Catarina. Quem ligou as muitas? Quem as mantém ligadas? Vida? Tempo? Memória?” Abandonou compreender, agarrou-se à certeza de ser um bloco (PAIM, 1965, p. 58).

Ainda com relação a essas memórias evocadas pela protagonista, é possível analisá-las como um tipo de espaço mental, haja vista que é através delas que se abrem ao leitor imagens remissivas da infância da personagem. Nesse âmbito, elas se ajustam às premissas de Deleuze e Guattari (1997), para os quais o pensamento é uma série de movimentos de territorialização e desterritorialização, sendo a geografia, por seu turno, caracterizada não somente de forma física e humana, mas mental, assim como a paisagem. Eles alegam ainda que é possível realizar uma viagem em um mesmo lugar, sem que necessariamente ela se desenvolva em extensão, pois o que conta seria a intensidade já que pensar também é viajar.

Desse modo, na obra, Catarina retorna ao seu passado através do pensamento, o que se configura como uma espécie de deslocamento mental, trazendo para a trama informações, fatos e imagens da sua infância.

Considerando ainda as memórias como um tipo de espaço ficcional, Dourado conceitua labirinto como uma reorganização e não como confusão ou caos: “Uma ordem codificada e cifrada, sistemas de signos” (1974, p.5).

Dessa maneira, na obra, quando a personagem se entranha em suas reminiscências, parece buscar a razão de sua existência humana, ou seja, é através das lembranças do seu passado que procura compreender o presente: ser mãe, esposa, escritora, o seu estar no mundo ao tempo em que tenta compreender as marcas deixadas em si pelo abandono na infância: “Toma da candeia, mergulha nos corredores da memória procurando a si mesma num quarto estranho, em certa manhã de maio” (PAIM, 1965, p. 148). O que nos leva a supor que se trata de reorganização labiríntica sobre o sentido da sua vida: “— Um dia, Catarina, vai encarar sua vida como um todo, vai percorrer a estrada até onde ela se perde na ausência de memória. Desabam os compartimentos selados” (PAIM, 1965, p. 51).

Outrossim, Dourado (1997) afirma ainda que na narrativa labiríntica não se pode perder o fio e que para que esta seja um perfeito labirinto não se pode ter um ponto de chegada e outro de partida diferenciado, mas que podem ser os mesmos. Assim, também em O sino e a rosa, o ponto de chegada e de partida que se dá em torno do entrecruzamento do passado e do presente da personagem é o mesmo, pois ora a protagonista parte do passado (ponto de partida) para compreender o seu presente (ponto de chegada); e ora parte do seu momento atual, dos conflitos do momento presente (ponto de partida) que a levam a uma viagem de volta ao passado (ponto de chegada), mas não permanece ali, não é o seu destino final, visto que essa volta se dá somente para compreendê-lo e trazer respostas para o presente. Logo, esse movimento cíclico entre os dois momentos ocorre tal como acontece no labirinto, tornando tanto a entrada quanto a saída como um ponto indissociável, único.

Assim, as passagens memorialistas que a obra nos traz atreladas à imaginação da personagem se configuram como um espaço labiríntico.

Quem os não possui/ Quem garante que trechos do passado não explodam, galeria condenada de mina em abandono? O “não pise além”, que melhor tradução de prudência? Escada de mármore, torre do sino, trepadeira amarela: compartimentos selados. “Ressonem mortos, apartai-vos de mim”. Noite de vigília e espera de vida... Vai percorrer a estrada da vida até onde se perde na ausência de memória. Memória, armadilha dos tempos. Por que cair prisioneira? (PAIM 1965, p. 51)

A breve análise empreendida em torno da representação dos espaços dessa obra nos permitiu observar que eles estão diretamente imbricados com o fenômeno do abandono e carregam as imagens desse ato, seja de forma mais explícita como o Orfanato ou mesmo o Educandário, seja de modo que precise um olhar mais aprofundado, como o caso da escada e a casa.