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4.2 Os espaços do abandono

4.2.2 Orfanato e Educandário

Com relação ao espaço do Orfanato e o Educandário, como vimos no capítulo II deste trabalho, a prática do abandono de crianças era bastante comum sobretudo nos centros urbano. Vimos também que esse fenômeno teve um aumento considerável no período pós-Revolução Industrial, sendo que a Igreja Católica foi a pioneira no sentido de criar abrigos para os menores excluídos. Como a demanda se tornou superior com o passar do tempo, essas instituições religiosas que abrigavam as crianças abandonadas não as comportavam mais. Assim, na década de 1920, o governo brasileiro começou a implantar ações para tentar resolver a questão do abandono de crianças, construindo orfanatos, escolas profissionalizantes e escolas correcionais (para menores infratores).

De modo análogo, na obra temos a representação deste espaço refletido a partir das lembranças da infância de Catarina, posto que viveu em um Orfanato, sendo este o lugar que a abrigou desde que foi abandonada, e o Educandário onde estudava. O Orfanato da narrativa inclusive também contém uma Roda dos Expostos, tal como descrita no capítulo II, em que a criança abandonada era deixada às portas desse ambiente sem que soubessem a identidade daquele que a abandonava:

— Me recordo até de sua chegada, Era meu plantão na portaria, aquela noite. Tocou o sininho da “roda” e a “roda” girou pesada. Conhecia por demais o que ia acontecer. Lá estava a criança, de olhos muito abertos e calada, tão caladinha. Você sorriu como se já me conhecesse, sem estranhar o rosto ou o véu. Até do camisolo me recordo (PAIM, 1965, p. 109).

Tanto o Orfanato como o Educandário são mantidos pela Igreja Católica com algum vínculo de filantropia, haja vista que, também como já fora apontado, a viabilidade do estudo da personagem no Educandário se dava através da doação financeira de uma senhora burguesa (Madame Jordão). O trecho a seguir mostra que um portão é aquilo que divide fisicamente estes dois lugares. No entanto, tal divisória demarca também a exposta condição de menina abandonada, visto que só lhe era possível frequentar este último ambiente graças à caridade da Madame Jordão:

Naquela manhã, já assistiu à missa com o uniforme de aluna. Antes de transpor o portão que separava os dois pátios do recreio, Irmã Júlia tomou-a pelo braço e foi empurrando-a até o banco, sob a acácia amarela.

— Vê aquele portão?

Balanço a cabeça, sem afastar os olhos do portão cinzento. Folhas de zinco vedavam as grades, reforçando lhe o papel de separação. Não permitiam dúvidas sobre o significado de barreira entre os dois tipos de vida (PAIM, 1965, p.27).

Essa divisão entre os dois espaços faz com que a personagem esteja em uma espécie de fronteira, não somente espacial, física, mas de modo imaterial, sua subjetividade parece fragmentada em mundos opostos:

Dois anos de vida dupla. As badaladas do sino marcam o encerramento das aulas no Educandário, toma livros e cadernos para voltar ao Orfanato. Passou a aluna? Deixou de ser enjeitada? Oscilava entre as respostas, sem a definição se firmar. Mantinha-se no absurdo de quem fez morada em alto muro, metade do corpo de um lado, metade do outro. Posição sem conforto e perigosa: se à esquerda, não atingia a igualdade; à direita, dela se afastava. Até os recreios faziam contraste(PAIM, 1965, p. 30).

Ademais ela não se sente parte daquele ambiente, parece não conseguir se inserir na rotina com as demais meninas, nem mesmo nos momentos de jogos e interação: “Explodia o recreio da tarde, escapava-se de rodas e jogos. Sorrateira ia agachar-se por trás da moita maior” (PAIM, 1965, p. 42).

Na passagem seguinte, o narrador exprime uma espécie de prece que traduz uma certa inadequação de Catarina ao momento em que todas as meninas estão bordando sob as orientações de Irmã Júlia. Catarina, ao invés, preferia estar no Ginásio a estudar ou a mergulhar no mundo da sabedoria, mundo este que sentia ser seu, construído sobretudo a partir das leituras, quando imergia nos livros. Disso decorre a referência feita a Júlio Verne e as citações bíblicas.

“Coluna de fogo, me leve de volta ao Ginásio. Não quero mãos de fada, prefiro uma cabeça feito a de Júlio Verne. Moisés tirou água da rocha, quero escutar a lira de Davi. Josué parou o sol, quero somente ver a face do jovem Salomão, ouvir sua voz de sabedoria. Coluna de fogo, me leve para o Ginásio, troco o fio de ouro de Irmã Júlia pelo lápis vermelho de Madre Tereza. Coluna de fogo, me tire do caminho do bastidor gigante, quero chegar ao quadro-negro de espada na mão” (PAIM, 1965, p. 78).

Dessa forma, o Orfanato se configura como o espaço do abandono por excelência, pois ilustra bem o drama vivido pela personagem. Como podemos

constatar ainda pelo seguinte trecho em que se descreve a solidão em um quarto deste lugar:

Confiscado o pequeno quarto, agora regalia que não se justificava, voltou a ocupar a cama no ângulo da lamparina, do dormitório das maiores. Quarenta camas iguais, quarenta sonos vagamente aclarados pela chama solitária [...] Permanecia sempre aberta a pequena janela. Muitas vezes, o camisolão solto e a cabeça pesada dos pensamentos da adolescência, debruçou-se naquela janela [...] Pensava na adoção, a pender de requisito insuspeitado (PAIM, 1965, p. 71).

Há momentos em que a personagem, ao observar a rotina nesse lugar, reflete sobre a incerteza do seu futuro e o das suas companheiras de orfanato:

Junto das companheiras, reajustava-se no destino de abandonada, os meses de ginásio ganhando atmosfera de sonho, irreais o “Pirilampo” e Tiradentes. Se falhasse o projeto de instrução, ia na maioridade manter-se de labirinto, bordado, fivolitê, chochê ou inhanduti. Os anos rolariam, sempre de agulha na mão. Podia casar-se, ter filhos, casa e marido (PAIM, 1965, p. 76)? Interessante notar como pequenos detalhes das lembranças desses espaços também remetem ao abandono, por exemplo, os uniformes que as meninas usavam: “Olhava, quase sem ver, a atividade no canto da sala, naquele bastidor gigante montado em valete. Os vestidos de xadrez cor de terra vestiam de maior tristeza as moças que ouviam as explicações de Irmã Júlia” (PAIM, 1965, p. 77). A oração “os vestidos de xadrez cor de terra vestiam de maior tristeza as moças” realça a tristeza e a melancolia que habita tanto aquele lugar quanto a elas mesmas.

Tendo em vista a similaridade dos espaços desta narrativa com os espaços reais que configuraram a história do abandono de crianças, ainda nos cabe mencionar o que Deleuze e Guattari (1997, p.55) argumentam acerca do Estado, sendo este marcado não pela presença de um chefe, um líder, mas pela conservação de mecanismos de poder. E a religião, por seu turno, é um desses aparelhos, isto é, uma de suas peças, já que ela preza pela conservação do absoluto, tendendo sempre a homogeneizar o pensamento.

Assim, de acordo com essa acepção, podemos inferir que, de modo semelhante, na obra em análise, o Orfanato e o Educandário tendem a ser essa representação do Estado, visto que sua função é manter e preservar a ordem tanto no plano institucional (da prática religiosa), com suas normas e preceitos, como no sentido de tentar minimizar esse problema de desordem social que é o abandono de crianças e que

escapa do controle do Estado. Pois, como vimos no capítulo II, foi a Igreja que se incumbiu de ampará-los mesmo quando isso cabia ao Governo da época.

Desse modo, esses menores excluídos passam a situar-se à margem da sociedade, retratando um drama que resulta da falta de planejamento e cobertura do Estado. Sendo assim, o próprio Estado procura criar mecanismos de movê-los ao meio social numa tentativa de restituir a ordem e a conservação do seu poder. Nisto consiste uma investida em restituir para o regime aquilo que foge do seu controle. É, pois, como se configura a relação do interior com o exterior, na qual o Estado procura manter uma soberania, interiorizando e apropriando-se com um “fora”, isto é, o que se torna externo (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.23).

Poderíamos assim intuir que o Orfanato e o Educandário na narrativa são representações do Estado, ou seja, instrumentos de contenção de um desordenamento social; enquanto que a órfã (o menor abandonado) se afigura como uma personificação daqueles ou daquilo que escapa do controle do governo.