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Antonímia contextual: por um tratamento dinâmico do tema

Duarte (2003, p.43) encerra o capítulo intitulado Oposições e contrastes, tecendo o seguinte comentário:

No nível do discurso, há que se reconhecer oposições entre lexemas (até mesmo entre sintagmas e grupos de frases). Não podem ser estudadas no domínio de um dicionário porque entram em cena os participantes do ato discursivo, o contexto discursivo em maior ou menor grau e o conhecimento de mundo partilhado entre emissor e receptor.

Embora adotemos, neste trabalho, as postulações teóricas da semântica formal e, conseqüentemente, abordemos o estudo da antonímia a partir de um enfoque abastrato- conceitual, restringindo-nos também aos limites da semântica lexical, não podemos deixar de fazer referência aos antônimos contextuais.

Por mais que, desde as duas últimas décadas do século XX, venha sendo discutida e contestada a velha prática semântica de considerar os signos léxicos isoladamente, ela, embora esteja amplamente minimizada, ainda tem voga no ensino de língua materna.

Elencar palavras descontextualizadas, a fim de que se lhes relacionem termos sinônimos e antônimos, constitui uma atividade por demais estéril. Essa postura está erroneamente embasada na concepção de antonímia como um fenômeno estático, pertencente ao eixo paradigmático. Assim, para que se processe uma relação antonímica, basta substituir um lexema por outro que se lhe oponha em sentido.

Obviamente, não estamos pretendendo negar a condição de relação substitutiva da antonímia, estamos buscando apenas destacar o caráter dinâmico dessa relação léxico- semântica de oposição de sentido e chamar a atenção para o fato de que “colocar um item como oposto a outro em contexto muitas vezes institui relações que no nível paradigmático e lógico não seria possível prever” (Lima, 2001, p. 158). Ou, como ressalta Hjelmslev (1975, p. 50):

As significações ditas léxicas de certos signos são sempre apenas significações contextuais artificialmente isoladas ou parafraseadas. Considerado isoladamente, signo algum tem significação. Toda significação de signo nasce de um contexto, quer entendamos por isso um contexto de situação ou um contexto explícito, o que vem a dar no mesmo ...

Geckeler (apud vilela, 1994, p.172) refere que a noção de antonímia contextual foi introduzida por Pohl em 1970. Para ele, os antônimos contextuais dependem de um contexto especial, seja lingüístico ou situacional. Em princípio, verde não constitui relação de oposição nem com vermelho nem com maduro. No entanto, esses termos podem formar pares antonímicos, quando se referem a certos significados semafóricos ou a frutas:

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a. Os pedestres só atravessam a rua em segurança, quando a luz verde do semáforo se apaga e se acende a luz vermelha.

b. Ana, por favor, ponha os abacates maduros sobre a mesa e guarde os abacates verdes.

Um bom exemplo da feição dinâmica da antonímia é a composição O Quereres, de Caetano Veloso, bastante citada por autores brasileiros quando tratam do tema em questão, devido aos diversos antônimos contextuais que consegue estabelecer:

O Quereres

Onde queres revólver sou coqueiro E onde queres dinheiro sou paixão Onde queres descanso sou desejo E onde sou só desejo queres não E onde não queres nada nada falta E onde voas bem alto eu sou o chão E onde pisas no chão minha alma salta E ganha liberdade na amplidão

Onde queres família sou maluco E onde queres romântico, burguês Onde queres Leblon sou Pernambuco E onde queres eunuco, garanhão E onde queres o sim e o não, talvez Onde vês eu não vislumbro razão Onde queres o lobo eu sou o irmão E onde queres cowboy eu sou chinês Ah! bruta flor do querer

Ah! bruta flor, bruta flor...

Onde queres o ato eu sou o espírito E onde queres ternura eu sou tesão

Onde queres o livre, decassílabo E onde buscas o anjo eu sou mulher Onde queres prazer sou o que dói E onde queres tortura, mansidão Onde queres um lar, revolução E onde queres bandido eu sou o herói Eu queria querer-te e amar o amor Construir-nos dulcíssima prisão E encontrar a mais justa adequação Tudo métrica e rima e nunca dor Mas a vida é real e de viés

E vê só que cilada o amor me armou Eu te quero (e não queres) como sou Não te quero (e não queres) como és Ah! bruta flor do querer

Ah! bruta flor, bruta flor

Onde queres comício, flipper-vídeo E onde queres romance, rock’n roll Onde queres a lua eu sou o sol Onde a pura natura, o inseticídio E onde queres mistério eu sou a luz Onde queres um canto, o mundo inteiro Onde queres quaresma, fevereiro E onde queres coqueiro eu sou obus O quereres e o estares sempre a fim

Do que em mim é de mim tão desigual Faz-me querer-te bem, querer-te mal Bem a ti, mal ao quereres assim Infinitivamente pessoal

E eu querendo querer-te sem ter fim E, querendo-te, aprender o total

Do querer que há e do que não há em mim

Eis as oposições presentes na canção:

A ANTONÍMIA CONTEXTUAL

Dinheiro x paixão O anjo x mulher

Descanso x desejo Tortura x mansidão

Família x maluco Um lar x revolução

Romântico x burguês Bandido x herói

Leblon x Pernambuco Comício x flipper-vídeo Eunuco x garanhão Romance x rock’n roll O sim e o não x o talvez A lua x o sol

O lobo x o irmão A pura natura x o inseticídio

Cowboy x chinês Mistério x a luz

O ato x o espírito Um canto x o mundo inteiro

Ternura x tesão Quaresma x fevereiro

O livre x decassílabo Coqueiro x obus

Revólver x coqueiro _______________

Claro está que a muitos desses termos, descontextualizadamente, não corresponderia qualquer antônimo.

Lima (2001, p. 158s), defendendo um tratamento dinâmico da semântica lexical, aponta, com propriedade, no caso da antonímia, que “mesmo quando temos uma oposição que é possível estabelecer em abstrato, a definição dos sentidos não acontece a partir da memória

lexical apenas, mas é muito influenciada pelo contexto”. Para respaldar sua argumentação, a autora fornece o seguinte exemplo:

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“Um homem, recém-chegado a uma cidade do interior, chegou a uma rinha de cachorros e resolveu fazer uma aposta. Como não conhecia os animais resolveu perguntar a outro que também estava assistindo às brigas”:

- O senhor é daqui? - Sou, sim senhor.

- O senhor conhece os cachorros? Qual é o melhor, o branco ou o preto? - O preto é melhor...

- Quer dizer que o preto é bom, o preto é melhor. - O preto é melhor...

O sujeito resolveu apostar R$ 50.00 no cachorro preto. Quando a briga começou o cachorro branco quase mata o preto.

- Mas amigo, como é que o senhor me diz que o preto é bom?

- O senhor me perguntou quem era melhor... O branco é mais pelvelso”.

Fica claro, então, que os significados não estão previamente definidos no nível paradigmático. No exemplo acima, as acepções dos pares bom : ruim ; melhor : pior só são plenamente fixadas no contexto.

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