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Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. (Manifesto Antropofágico)

A usurpação dos atributos divinos pela tecnologia mediática (midiofagia) se faz na sociedade contemporânea recuperando símbolos arcaicos e reconfigurando-os à luz dos aspectos modernos23. Os meios de comunicação eletrônicos interativos (mais precisamente, os computadores e outras tecnologias capazes de rede) apropriam- se de conteúdos arcaicos presentes no imaginário de uma cultura, ―devoram‖ os seus atributos, metabolizam e devolvem para a cultura a partir dos seus interesses. Essa ação de ―devoração‖ e metabolização, parece-nos, ser própria da cultura.

As tramas da cultura, traçadas pelo seu recurso simbólico de construção de sentido, encontram-se em reciclagem permanente. Ou seja, na cultura nada é eliminado, e sim, acumulado; o que significa que os conteúdos da codificação humana podem ser adaptados pelo tempo, mas jamais eliminados. E essa articulação de conteúdo apresenta suas raízes primitivas na estrutura básica do humano: a sua natureza gregária, que germina a partir de um "terreno específico onde se deve manifestar a mais pura e irrestrita criatividade humana" (BAITELLO JR, 1997: p.20): a cultura.

A expressão midiofagia é tributária do conceito de iconofagia designado por Norval Baitello Junior:

Iconofagia significa a devoração das imagens ou pelas imagens: corpos devorando imagens, ou imagens que devoram corpos. Essa ambiguidade é interessante porque, na verdade, os dois processos ocorrem. A Era da Iconofagia significa que vivemos em um tempo em que nos alimentamos de imagens e as imagens se alimentam de nós, dos nossos corpos. Esse processo ocorre quando passamos a viver muito mais como uma imagem do que como um corpo. Viramos escravos das imagens: temos de ter um corpo que seja uma imagem perfeita, temos de levar uma vida vivida em função da imagem, temos de ter uma carreira que seja uma imagem perfeita. Com isso, de repente notamos que o corpo como entidade original da vida passou a ser uma imagem e, portanto, não ter mais vida própria. (BAITELLO JR., 2005, p. 13)

23 Acerca dessa questão remetemos o leitor ao livro: CONTRERA, Malena Segura. O Mito na Mídia: a

A palavra iconofagia é inspirada na Antropofagia do modernista Oswald de Andrade e refere-se ao fenômeno típico da cultura no qual ocorre a apropriação (devoração) de elementos culturais. O fenômeno da Iconofagia remete à nossa condição contemporânea apontada por Walter Benjamin em seu notável artigo: "A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica".

Na esteira do pensador alemão, Baitello afirma que a sociedade contemporânea inventou máquinas reprodutoras de imagens e o desdobramento da reprodutibilidade é a multiplicação exacerbada de imagens, inflacionando o "valor de exposição". "O advento das imagens repetidas e idênticas que se distribuem no espaço público (...), inaugura o trânsito das imagens em superexposição à luz." (BAITELLO JR., 2005, p. 13).

Benjamin assumia uma posição otimista, pois imaginava que a reprodução das obras de arte (pelo livro, pelas artes gráficas, pela fotografia, pelo rádio, pelo fonógrafo e pelo cinema) permitiria à maioria das pessoas o acesso a criações que até então uns poucos podiam conhecer e fruir. Benjamin acreditava que houvesse não só a democratização da cultura e das artes, mas, sobretudo que estas pudessem colocar-se na perspectiva da crítica revolucionária. Na contramão da visão de Benjamin, Norval Baitello Junior assevera que:

"A era da reprodutibilidade técnica, contudo, muito mais abriu as portas para uma escalada das imagens visuais que começam a competir pelo espaço e pela atenção (vale dizer, pelo tempo de vida) das pessoas. E o excessivo, o descontrole, muito mais conduziu a um maior esvaziamento deste valor de exposição e até mesmo poder estar levando ao seu oposto, um crescente zero de comunicabilidade (incomunicação, sinalizando que houve um desvio de rota uma recidiva, no prognóstico positivo da reprodutibilidade técnica na sociedade contemporânea. (...) Ao invés de democratizar o acesso à informação e ao conhecimento, tal reprodutibilidade fez muito mais esvaziar o potencial revelador e esclarecedor das imagens por meio delas próprias e de seu uso indiscriminado e exacerbado." (BAITELLO JR., 2005, p. 14)

A iconofagia é um fenômeno potencializado pela indústria cultural e surge na emergência da sociedade do espetáculo. As imagens se devoram umas às outras, devorando-nos a nós mesmos, veículos, produtores e consumidores dessa profusão

infinita de formas, cores, movimentos e ruídos. A era da Iconofagia começa a se delinear quando ―ao consumir imagens, já não as consumimos por sua função janela (KAMPER), mas pela sua função biombo (FLUSSER)‖ (BAITELLO JR., 2005, p. 14). Ao devorar imagens anteriores, toda imagem se presta a ser devorada pelas imagens futuras, impedindo-nos de alcançar-lhes um fundamento, um alicerce sustentável de significação.

No caso específico abordado por esse capítulo, denominamos de midiofagia a ação que os meios eletrônicos interativos (mais precisamente, os computadores e outras tecnologias capazes de rede) e seus formatos, de apropriar-se (devorar) de conteúdos arcaicos da cultura, em particular os atributos divinos, e identificar-se com eles.

Em termos de etimologia, religião é o que liga, especificadamente o que liga o homem a Deus e os homens entre si, como afirmamos anteriormente. A religião engaja o homem de três maneiras: primeiramente, explicando a natureza e o significado do universo, ou justificando os caminhos de Deus para o homem; em segundo lugar, elucidando a função e o propósito do homem no universo, ou ensinando-lhe como libertar-se de suas limitações e terrores; em terceiro lugar, servindo como uma ligação entre os homens.

Para Émile Durkheim (1989), é fundamental para a realidade social da religião a distinção entre o sagrado e o profano. O profano é a dimensão humana constituída por tudo que podemos saber por meio dos sentidos. Trata-se da vida natural, cotidiana. Em contraste, o sagrado abrange tudo que existe além do mundo empírico. Como tal, o sagrado, inspira sentimentos de respeito. A religião é organizada principalmente em torno dos elementos sagrados da vida humana e cria condições para uma tentativa coletiva de construir uma ponte entre o sagrado e o profano (religare).

Max Weber (1999), em seus estudos a propósito da sociologia da religião, considerava que, ao problema humano do sentido e significação existencial, as religiões tradicionais, de maneira eficaz, ofereciam uma resposta final. Já as novas atitudes de religião, centradas na ética, tornam-se, pelo desenho institucional que assumem, um fator causal na determinação da ação social. Para Weber, as

concepções religiosas sempre foram cruciais e estiveram na gênese das sociedades humanas, pois o homem, como tal, sempre esteve à procura de sentido e de significado para a sua existência, não simplesmente como questão de ajustamento emocional, mas de segurança cognitiva ao enfrentar problemas de sofrimento e morte.