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Não se entende por peregrino senão o que vai a casa de Santiago ou de lá retorna. (Dante Alighieri)

No século VIII, a península Ibérica estava quase completamente ocupada pelo Islã. Deflagrado um século antes na Arábia, esse fulminante expansionismo religioso, militar cultural e demográfico progrediu depressa Ásia adentro, avançando também em direção ao Norte e ao Ocidente até abarcar a maior parte das terras banhadas pelo Mediterrâneo. Era a primeira vez que a Europa cristã se via sitiada por um inimigo combativo e determinado. Pelo flanco mais ocidental, os muçulmanos ultrapassaram os Pirineus e chegaram a Poitiers, no atual centro- oeste francês, onde seu avanço foi detido em 732 pelas tropas do marjodomus franco Carlos Martel.

A população cristã da península ibérica foi submetida pelo invasor, exceto numa estreita faixa horizontal ao Norte, onde reinos visigodos como Astúrias e Navarra mantiveram a independência. Uma batalha importante vencida pelo rei das Astúrias no ano de 718, em Covadonga, foi mais tarde consagrada como ponto de partida para a Guerra da Reconquista, que só culminou em 1492 – o mesmo ano da chegada à América - com a expulsão definitiva dos mouros de Granada.

Foi na guerra contra os mouros que se construiu uma aliança entre a Igreja e o Estado na península Ibérica. Os ibéricos tinham uma cruzada para lutar, terras para recuperar e teriam também uma rota de peregrinação sagrada.

Em 813, sob o reinado de Afonso II das Astúrias, corre a história de que um camponês da Galícia, no extremo noroeste, próximo ao finisterrae, ―onde a

64 Neste excerto, são utilizadas referências de maneira geral, das seguintes obras: SINGUL,

Francisco. O Caminho de Santiago: a peregrinação ocidental na Idade Média. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999.; CARNEIRO, Sandra de Sá. A pé e com fé: brasileiros no Caminho de Santiago. São Paulo: CNPq/Pronex: Attar, 2007. GUIMARAES, Waldinei Comercio de Souza. O crepúsculo em Santiago : a jornada do peregrino rumo a religiosidade e a descoberta analítica. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião – PUC – SP. Disponível em:

http://aleph50018.pucsp.br/F/U8FEY2VPCQB5ENBRCTH9AIQYTA3E8ECJGGS8B5GIK4N6VHJN7A- 20838?func=service&doc_library=PSP01&doc_number=000217208&line_number=0001&func_code= WEB-BRIEF&service_type=MEDIA

terra acaba‖, tivera uma visão em que lhe aparecia um caminho de estrelas a sinalizar o Monte Libradón, sob o qual haveria um túmulo. O Bispo da jurisdição, Teodomiro, determinou que escavações fossem realizadas no local, e elas não tardaram a revelar uma arca de mármore, dentro da qual o Bispo anunciou que estavam os despojos do apóstolo Tiago.

Esse Santiago figura nas escrituras como irmão mais velho de João, supostamente o discípulo predileto de Cristo, ambos pescadores e filhos de Zebedeu. Teria sido Santiago que primeiro recebeu o pão na Santa Ceia, recém- partido por Cristo, e o segundo mártir da fé cristã, executado em Jerusalém no ano de 42, não sem antes ter pregado, segundo a tradição, na Espanha. Sua passagem pela península Ibérica é dada por lendária a ponto de o apóstolo Paulo escrever numa das Epístolas que desejava há muito anos chegar até vós, irei quando for para a Espanha (Romanos, 15, 24). Consta que havia costume, entre os cristãos primitivos, de sepultar os propagadores da fé ali onde haviam pregado, daí a crença de que os restos de Santiago estivessem em algum lugar da Espanha para onde teriam sido transportados por discípulos.

Atento aos acontecimentos, Afonso II mandou construir uma igreja no local, que passou a atrair devotos e recebeu o nome Santiago de Compostela, derivado da expressão latina ― campo de estrelas‖.

Em 844 nas proximidades nas proximidades de Logroño, o rei Ramiro I das Astúrias perdia uma batalha para as tropas do Sultão Abderramã II quando o fantasma do apóstolo Santiago montando um cavalo branco e armado como cavaleiro, com lança e escudo, irrompe entre suas fileiras e as exorta a segui-lo numa carga heróica contra os infiéis, que da a improvável vitória aos asturianos. O mito de Santiago logo se consolidou entre os peninsulares e começou a atrair viajantes que vinham a seu suposto sepulcro fazer um pedido, agradecer uma graça, pagar uma promessa ou expiar uma culpa. A igreja passou a conceder indulgências ,documentos que anistiavam pecados,a quem fizesse a empreitada. Com o passar do tempo,estabeleceram-se rotas que provinham do leste da Península,da França ou da Inglaterra para se reunir em Puente La Reina , de onde o percurso único seguia diretamente para o rumo oeste, em paralelo à linha

reta dos montes Cantábricos ,que separam o norte da Espanha e o Atlântico até Santiago.

Como o santuário fica a cerca de cinquenta quilômetros do oceano , passou a ser costume,entre os peregrinos ,regressar com uma concha de vieira,a prova de que havia estado lá,e também uma referência aos pescadores que teriam levado os restos mortais do apóstolo para o país do qual ele viria a ser padroeiro;assim,a concha passou a ser o emblema da peregrinação.

Para quem partia de algum lugar além dos Pireneus,a viagem de ida e volta poderia durar meses,anos em certos casos. Nas condições precárias em que era feita a travessia, muitos peregrinos adoeciam pelo caminho, o que semeou mosteiros no percurso,destinados a dar hospedagem e atendimento médico aos peregrinos.

Ao longo dos séculos ,o caminho de Santiago é um veio profundo onde se combinam repertórios de crenças na órbita de um misticismo cristão ampliado e eclético.Uma tradição católica vincula cada um dos doze apóstolos a uma dada virtude;a de Santiago é a esperança. Quem percorre o caminho geralmente espera encontrar algum sinal que o (re)aproximem de Deus,os outros homens e de si mesmo.Trata-se de um sinal de religare65.

Essa é a fonte em busca da qual acorrem as multidões de peregrinos que ,em nosso tempo, voltaram a percorrer o antigo trajeto agora oficialmente fixado e demarcado por sinais a cada duzentos metros. Uma rede de albergues ligados à arquidiocese de Compostela oferece abrigo ao longo da marcha.Para conceder uma indulgência,a igreja católica aceita um percurso de pelo menos cem quilômetros antes de chegar a Santiago de Compostela, transpostos de preferência a pé,mas também em bicicleta ou até a cavalo;nos albergues e igrejas do trajeto, o passaporte do peregrino é carimbado a fim de evitar fraudes.

65 O ano de 2010 é o ano Jubilar Compostelano. É celebrado desde a Idade Média, por disposição

papal, quando o dia do apóstolo Santiago Maior (25 de julho) coincide com um Domingo, o que sucede habitualmente cada 6,5,6 e 11 anos. As exigências formais da Igreja para ganhar o Jubileu são: visitar a catedral de Santiago, onde se encontra o corpo de Santiago e rezar pelo menos uma oração. Também é exigida a confissão e comunhão no mesmo dia da peregrinação ou quinze dias antes ou depois desta, mas estes sacramentos podem ser cumpridos em qualquer lugar, e não obrigatoriamente na catedral compostelana.

Estimasse que cinquenta e cinco mil pessoas tenham percorrido algum trecho válido do caminho no ano de dois mil .Apenas uma minoria desses peregrinos teria feito o percurso chamado caminho francês cuja extensão é de setecentos e setenta e quatro quilômetros entre a fronteira com a França e a cidade do apóstolo,seguindo as pegadas de um número incalculável de precursores,geração após geração desde tempos remotos.